Aguarelas Finas, Le Corbusier | Maison La Roche, Paris

13 agosto 2025

Uma Sociedade | Virginia Woolf

- Poesia! Poesia! - gritámos, impacientes.

- Lê-nos poesia! - Nem consigo descrever a desolação que se apoderou de nós quando ela abriu um pequeno volume e começou a declamar a verbosa e sentimental tolice que continha. (…)

- Deve ter sido escrito por uma mulher - atalhou uma de nós.

Mas não. Ela disse-nos que fora escrito por um jovem, um dos mais célebres poetas do momento. Mal podem imaginar o estado de choque em que esta descoberta nos deixou. (…)

Ficámos todas em silêncio; e, nesse silêncio, ouvia-se a desgraçada da Poll a soluçar: 

- Porquê que o meu pai me ensinou a ler? 

Clorinda foi a primeira a cair em si.

- A culpa é toda nossa - disse. Todas nós sabemos ler. Mas nenhuma de nós, tirando a Poll, se deu ao trabalho de o fazer. Eu, por exemplo tomei como certo que era dever de uma mulher passar a juventude a dar à luz. Venerava a minha mãe por ter tido dez filhos; a minha avó, que pôs quinze neste mundo; a minha própria ambição, devo confessar, era ter uma vintena. Ao longo de todo este tempo, sempre acreditámos que os homens eram igualmente laboriosos e que as suas obras tinham igual mérito. Enquanto dávamos à luz os filhos, eles, julgávamos nós, davam à luz os livros e as pinturas. Nós povoámos o mundo. Eles civilizaram-no. Mas, agora que sabemos ler, o que nos impede de julgar os resultados? Antes de trazermos outra criança ao mundo, devemos prometer que iremos descobrir a verdadeira natureza deste. 

Por isso, constituímo-nos numa sociedade destinada a fazer perguntas. (…)

- Desde Safo, não houve mais nenhuma mulher de primeira categoria … - começou a Eleanor, citando um semanário. (…)

- Assim, nunca mais chegaremos a nenhuma conclusão - queixou-se. - Como a civilização parece muito mais complexa do que imaginámos, não seria melhor limitarmos-nos à nossa questão original? Concordámos que o objetivo da vida era produzir boas pessoas e bons livros. (…)

- Assim que aprender a ler, só há uma coisa em que podes ensiná-la a acreditar, e é em si mesma. (…)

 

in: Uma Sociedade, de Virginia Woolf, Penguim Clássicos, Nº4, Lisboa, 2025

28 julho 2025

A Dama de Espadas | Puskine

O jogo interessa-me muito- disse Hermann - mas não posso arriscar o necessário para obter o supérfluo. 

- Hermann é alemão: é económico, está tudo dito - observou Tomski. - Mas, se há alguém a quem eu, neste caso, não compreenda, é a minha avó, a condenssa Ana Fédovna. (…) - Ora essa! - disse Narumof. - Que pode haver de estranho em que uma mulher de oitenta anos não jogue? (…) - Pois então, ouçam.

Antes de mais, importa dizer-lhes que a minha avó, há uns sessenta anos, foi a Paris, onde fez furor. Seguiam-na aos grupos; toda a gente queria ver a Vénus Moscovita. Richelieu, que lhe fez corte, quase se suicidou por ela não corresponder aos seus desejos. Nesse tempo as damas tomavam atitudes de rainhas. (…) Uma noite, na corte, a minha avó, que estava a jogar contra o duque de Orleães, perdeu (…) confessou a sua dívida ao meu avô; convidou-o a pagá-la. (…) Temia-a como ao fogo. (…) Em resumo, recusou-se a pagar. A avó deu-lhe uma bofetada e, para consumar a desgraça, foi dormir noutro quarto. (…) 

Mas, meu caro Conde - respondeu a minha avó - já lhe disse que não ficámos com dinheiro nenhum! - Nem é preciso - replicou Saint- Germain. - Ora faça favor de ouvir o que lhe vou dizer … E revelou-lhe então um segredo que qualquer de nós pagaria por um bom preço … Os jovens jogadores redobraram de atenção. Tomski acendeu o cachimbo, tirou uma fumaça e continuou: (…) 

Como está o tempo? Há vento, não? - Não, excelência - respondeu o criado de quarto - está muito agradável. - Vocês respondem sempre ao acaso. Abre a janela. Bem dizia eu! Está vento; e um vento desabrido. Manda desatrelar! Lisanka, não saímos. (…) "E é isto a minha vida!" pensou Lisavete Ivanovna. 

 Lisavete Ivanovana era na verdade, muito infeliz. (…) Era avara e comprazia-se num pio egoísmo, como todos os velhos para os quais o amor morreu e que são hostis ao presente. (…) Vestida e pintada à moda antiga, ficava sentada a um canto, adorno repugnante e obrigatório dos salões de baile. (…) Em sociedade, o seu papel era dos mais miseráveis. Todos a conheciam, ninguém reparava nela. (…)

A condessa não respondeu. Hermann apercebeu-se então de que estava morta. (…) Ninguém chorava (…) A condessa era tão velha que a sua morte não podia surpreender ninguém e há muito tempo os parentes a consideravam como já não fazendo parte deste mundo. (…) 

Mas a mulher vestida de branco aproximou-se mais, colocou-se diante dele e Hermann reconheceu a condessa. (…) Vim a tua casa contra a minha vontade - disse em voz firme - Mas foi-me ordenado que satisfizesse o teu pedido. Terno … sete … às … ganharão a seguir,  mas é preciso que jogues só uma carta por noite e que nunca mais voltes a jogar em toda a tua vida. Perdoar-te-ei a minha morte com a condição de casares com a minha protegida Lisavete Ivanovna. (…) e escreveu a narrativa da sua visão. (…) Hermann bebeu um copo de limonada e voltou para casa. (…)

O às ganha! Disse Hermann - A sua dama perdeu - disse Tchekalinski com suavidade. Hermann estremeceu: com efeito, em vez de um ás, tinha na mão a dama de espadas. Não acreditava no que lhe diziam os seus olhos, não compreendia qual a razão do seu equívoco. No mesmo instante pareceu-lhe que a dama de espadas piscava maliciosamente um olho e lhe sorria. De súbito, reparou na semelhança extraordinária … - A velha! - exclamou espantado. Tchekalinski recolhia as notas. (…)

Hermann enlouqueceu. (…) murmura numa obcecação contínua: «Terno, sete, às! Terno, sete, dama!»


in: A Dama de Espadas, de Puskine, Publicações Europa-América, Lisboa, Julho de 2007 (Diário de Notícias)

12 julho 2025

O Coração da Bruxa | Genevieve Gornichec

 Asgard era um lugar novo, apareceu uma bruxa vinda dos confins dos mundos. Conhecia muitos feitiços antigos, mas era especialmente habilidosa com seior, uma magia que permitia viajar para fora do corpo e adivinhar o futuro. (…)

Espetaram-lhe lanças e queimaram-na três vezes, e três vezes a bruxa renasceu. (…) Quando os Vanir souberam do modo como os Aesir a estavam a tratar, ficaram furiosos, e assim foi declarada a primeira guerra no cosmos. De terceira vez que renasceu, Gulleveig fugiu, no entanto, deixou algo para trás: o coração trespassado por uma lança e ainda a fumegar na pira. Foi aí que ele o encontrou. (…) 

Encontrou a bruxa a contemplar a deusa floresta e as montanhas que se viam ao longe (…) o sol brilhava, mas ela estava sentada à sombra, encostada ao tronco de uma árvore, com as mãos cruzadas no colo. (…)

És uma mulher difícil de encontrar (…) Estava ali para devolver o que ela deixara no salão de Odin (…) algo o atraía nesse dia, até à floresta de ferro, com o coração da bruxa no saco. (…) A princípio a bruxa não respondeu, optando por estudar o estranho homem que se aproximava. (…) Admiro sinceramente o teu trabalho. (…) consegues semear o caos onde quer que vás. Fazes com que os poderosos lutem pelos seus talentos. É realmente impressionante. - Não era essa a minha intenção - replicou a bruxa, passado um momento. (…)

Angrboda fez a sua casa no extremo oriental da Floresta de Ferro, onde as árvores se agarram precariamente às montanhas escarpadas (…)

Não sabia quanto tempo passara desde que se tinham encontrado junto ao rio, mas o seu cabelo castanho-claro já tinha crescido, liso e bonito. (…)

E assim Skadi construiu-lhe uma mesa, dois bancos e um estrado de cama, que encostaram à parede e cobriram com cobertores e peles (…) mas a melhor criação da caçadora foi a última: uma cadeira, para colocar junto à lareira. Angboda gravou-a com padrões e espirais e colocaram peles sobre o assento para ficar mais confortável. (…)

Desde que chegara à Floresta de Ferro, depois de ter sido queimada, os bosques tornavam-se mais verdes a cada primavera (…)

Loki (…) quando deixo o meu corpo sinto-me ligada a tudo. Sou parte de todos os mundos (…) coisas que ainda não aconteceram (…)

Ali ficaram a olhar uma para a outra (…) passou o dedo numa das espirais que gravara no braço à muito tempo! (…)

Havia aqui uma bruxa que deu à luz os lobos (…)

Com poções e feitiços curou os doentes (…) aquela ajuda parecia-lhe natural. (…)

Dormia quase sempre sozinha, sob a capa, nas florestas ou nas montanhas (…) os únicos ornamentos que possuía eram as contas de âmbar, o cinto e a faca (…) Por vezes a cabeça doía-lhe tanto que nem sequer conseguia andar (…) 

Concebe o último desejo a uma mulher morta - sussurrou Skadi (…) e deixa-me partilhar a tua cama, partilhá-la verdadeiramente, esta e todas as noites até ao fim. E, Angrboda assim fez. Os meses que se seguiram pareciam quase um sonho (…)

Quando o dera à luz, era apenas uma cobra verde, pequena, agora a sua cabeça assemelhava-se mais à de um dragão. (…)

Quando voltou a abrir os olhos (…) envolta dos ombros da amante. (…) Conseguiste. Está na hora. (…) 

(…) a faca de cabo de cifre de Angboda, aquela que usava no cinto (…) olhou para a espada à cintura de Skadi e perguntou: - Era do teu pai? (…)


in: O Coração da Bruxa, de Genevieve Gornichec, Editora Minotauro, 2023

10 junho 2025

Sobre a Serenidade do Homem Sábio | Séneca

O homem sábio está seguro, e nenhuma injúria nem insulto pode afectá-lo. (…)

Sim, irão tentar, mas a injúria não o alcançará. O homem sábio está tão longe dos seus inferiores, que nenhum impulso maligno manterá a sua força até o alcançar. (…)

Aliás, não sei se a sabedoria não se demonstra melhor pela calma no meio do incómodo. (…)

Sozinho e idoso (…) carrego comigo tudo o que alguma vez tive. (…)

As muralhas que protegem o homem sábio estão a salvo do fogo e das invasões hostis; não têm passagem; são altas, impermeáveis, divinas. (…)

Além disso, aquilo que fere deve ser mais forte, do que aquilo que é ferido. Ora a maldade não é mais do que a virtude, logo, o sábio não pode ser ferido. Só os maus tentam ferir os bons. Os homens bons vivem em paz e entre si; os maus são igualmente perversos com os bons e uns com os outros. (…)

Ora, o homem livre de erros não se perturba; ele é senhor de si mesmo, gozando de repouso mental profundo e tranquilo. (…) Pensa que o homem sábio pertence a esta classe - a dos homens que, pela prática longa e fiel, adquiriram força para suportar e causar toda a violência dos seus inimigos. (…)

Há outras coisas que atingem o homem sábio (…) como a dor física e a fraqueza, a perda de amigos e filhos, e a destruição de seu país em tempo de guerra (…) O que faz ele então? Recebe alguns golpes, mas quando se eleva acima deles, cura-os e põe-lhes fim. (…)

O homem sábio lida com todos os homens do mesmo modo, que o médico lida com todos os pacientes. (…) O sábio entende que aqueles que se pavoneiam em togas roxas, saudáveis e bronzeados, têm um problema mental, considera-os doentes e loucos. Por isso não se irrita com eles. (…)

A vergonha da pobreza atormenta alguns homens, e quem a esconde faz dela uma vergonha para si. Por isso se fores o primeiro a reconhecê-la, tiras o tapete dos que te insultam e escarnecem de ti - ninguém ri de quem começa por rir de si próprio. (…)

Por vezes perderemos até o que nos faria bem, enquanto torturados por essa dor feminina de ouvir algo que não é do nosso agrado. (…) A liberdade consiste em elevar a mente acima das injúrias e tornar-se alguém cujos prazeres vêm apenas de si próprio. (…)

Quanto mais nobre um homem for por nascimento, reputação ou herança, mais corajosamente se deve comportar, lembrando-se que os homens mais altos ficam na linha da frente na batalha. (…) Mantém o posto que te foi atribuído pela natureza. Perguntas tu: que posto é esse? O de ser homem. (…) Não lutes contra a tua própria vantagem e, até que tenhas encontrado o caminho para a verdade, mantém viva essa esperança na tua mente (…) É do interesse da humanidade que haja alguém inexpugnável, alguém contra quem a fortuna não tenha poder. (…)

Isso não pode ser feito sem ócio (…) Na verdade o pior dos nossos males é mudarmos os nossos vícios. (…) 

O dever de um homem é ser útil aos seus semelhantes; se possível a muitos deles; não o sendo, ser útil a alguns; não o sendo, ser útil aos seus vizinhos, e, não o sendo, a si mesmo. Pois, quando ele ajuda os outros, promove os interesses gerais da humanidade. (…)

Compreendamos que existem duas repúblicas: uma vasta e verdadeiramente «pública», que contém deuses e homens; (…) e outra à qual fomos designados pelo acidente do nascimento. (…) Alguns homens servem os dois Estados, o maior e o menor (…) Podemos servir a comunidade maior mesmo quando estamos em ócio. (…) Investigamos o que é virtude, se ela é uma ou muitos, se é a Natureza ou a Arte que torna os homens bons. (…)

A grande paixão pelo desconhecido (…) a nossa curiosidade (…) A Natureza deu-nos uma disposição inquiridora e, conhecendo bem a sua própria habilidade e beleza, produziu-nos para sermos espectadores das suas vastas obras. (…)

Porque mesmo a contemplação não é desprovida de ação. (…)

Além disso, há três tipos de vida, e é uma questão recorrente qual dos três é o melhor: o primeiro é dedicado ao prazer, o segundo à contemplação e o terceiro à ação. (…)

Um homem pode viver no ócio; não apenas suportando-o, mas escolhendo-o. (…)

      

in: Sobre a Serenidade de Um Homem Sábio, de Séneca, Publicado em Portugal por: Ideias de Ler, Porto, Janeiro de 2025

08 abril 2025

Eros | Anne Carson

 Foi Safo quem primeiro chamou a Eros amargo e doce. (…)

A experiência de muitos amantes validaria tal cronologia, especialmente na poesia, em que a maior parte dos amantes termina mal. (…) O amor e ódio constroem entre si a maquinaria do contacto humano. (…) «E o ódio começa onde o amor parte …» sussurra Annak. (…)

Eros derruba um amante com o choque entre quente e frio no poema de Anacreonte (…) ao passo que Sófocles compara a experiência a um pedaço de gelo a derreter em mãos quentes. (…)

O desejo não é simples. Em grego, o acto de amar é um acto de misturar, e o desejo derrete os membros. Fronteiras do corpo, categorias do pensamento confundem-se. O deus que derrete membros procede para quebrar o amante, como faria um inimigo no campo de batalha épico. (…)

A palavra grega Eros denota «escassez», «a carência», «desejo pelo que está em falta». O amante quer o que não tem. (…) Um espaço deve ser mantido, ou o desejo acaba. (…) 

Foi Safo quem assemelhou uma rapariga a uma maçã. (…)

Eros tem que ver com fronteiras. Ele existe porque certas fronteiras existem (…) a fronteira que engendra Eros: a fronteira de carne e ser entre ti e mim. (…) Quando necessito de ti, uma parte de mim desaparece: a minha necessidade de ti toma parte de mim. Assim raciocina o amante no limite de Eros. (…) Os seus pensamentos viram-se para questões de identidade pessoal: ele deve recuperar e reincorporar o que se perdeu para poder ser uma pessoa completa. (…)

Os interlocutores são levados a reconhecer que todo o desejo é anseio por aquilo que propriamente pertence àquele que deseja, mas foi de alguma forma perdido ou subtraído - ninguém explica como. (…) Assim, Sócrates dirige-se aos dois rapazes, os seus interlocutores, e diz: (…) o desejo e o amor e o anseio são dirigidos àquilo que se assemelha ao próprio, segundo parece. Por Isso (…) pertencem um ao outro. (…) 

O desejo muda o amante. «Como é curioso»: ele sente a mudança acontecer, mas não tem categorias à mão que a avaliem. A mudança dá-lhe um relance sobre uma versão do eu que ele ainda não conhecia. (…) O amante aprende à medida que a perde, a valorizar a entidade delimitada de si próprio. (…)

Quando as pessoas começam a aprender a ler e a escrever (…) se a presença ou ausência de literacia afeta o modo como uma pessoa entende o seu próprio corpo, sentidos e eu, esse efeito irá influenciar a vida erótica. (…) 

Controlar as fronteiras é possuir-se a si próprio. (…)

Asas e respiração transportam Eros do mesmo modo que asas e respiração comunicam palavras: torna-se aqui aparente uma analogia antiga entre linguagem e amor. (…)

A imaginação é o centro do desejo. Age no centro da metáfora. É essencial para a actividade da leitura e da escrita. (…) Ao escrever sobre desejo, os três poetas arcaicos criaram triângulos com as palavras. (…) envolver dois factores (amante e amado) em termos de três (amante, amado e o espaço entre eles, de alguma forma tornado real). (…)

O poder de mudar a realidade eroticamente. (…)

As palavras que lemos e as palavras que escrevemos nunca dizem exatamente o que queremos dizer (…) Eros está entre. (…)

O tempo passa. O tempo é um riacho que flui (…)

A este estranho poder que a escrita tem (…) No Fedro é um jovem que se apaixonou por um texto escrito. (…) A escrita Fedro, tem esse estranho poder, na verdade muito se assemelha à pintura. (…)

Jardins e escritores (tempo)… Amantes e leitores têm desejos semelhantes (…) No meio está o Eros. (…)

Como é que acontecimentos exteriores entram e tomam posse da psique de uma pessoa? Eros toma conta da mente e do corpo (…) Ninguém pode lutar contra Eros! (…)

Os fatos são os de que Eros muda tão drasticamente que pareces tornar-te uma pessoa diferente. (…)

Põe-nos asas na alma. (…) As asas são um instrumento de dano e de poder irresistível. (…) «Faz voar o meu coração» (…) 

Como poderia eu fugir a pé de quem me persegue com asas? (…) Têm raízes naturais em cada alma, um resíduo dos seus inícios imortais. (…) São as tuas asas a brotar. É o início daquilo que pretendes ser. (…)

A única preocupação do amante é estar com quem ama. (…)

Ao adicionar pt a Eros, os deuses criam Pteros, que é um jogo com a palavra grega Pteron, que significa «asa». (…) O desejo envolve uma «necessidade que dá asas». 

Pteros é mais verdadeiro que Eros. (…)

Eros, algo que se move no espaço intermédio. E é isso que há de mais erótico em Eros. (…) 

Uma cidade sem desejo é uma cidade sem imaginação. (…) Um acto de imaginação a que se chama phantasia. (…)  

Eros faz de todo o homem um poeta! (…)

Quando a mente se dispõe a conhecer abre-se um espaço do desejo e torna-se evidente a ficção (…)


in: Eros, Amargo e Doce, de Anne Carson, Edições 70, Lisboa, Out. 2024

21 fevereiro 2025

Lady Susan | Jane Austen

Minha querida Fanny:

Sou a criatura mais feliz do mundo, uma vez que acabo de receber uma proposta de casamento do senhor Watts. É a primeira que recebo e não sei como avaliá-la. Que triunfo o meu nome sobre as Dutton! Não tenho intenção de a aceitar, pelo menos é isso que penso, mas, como não estou completamente certa, dei-lhe uma resposta um tanto ambígua e fui-me embora. E agora, minha querida Fanny, queria que me aconselhasse se devo, ou não, aceitar a proposta. Mas, para que possa julgar os seus méritos e as circunstâncias da situação, far-lhe-ei um relato dos mesmos. Trata-se de um homem bastante mais velho, de uns trinta e dois anos, muito feio, tão feio que mal consigo olhar para ele. É extremamente desagradável e odeio-o mais do que a qualquer outra pessoa no mundo. Tem uma fortuna enorme e propõe -se pôr muitos bens em meu nome no contrato pré-nupcial, mas … goza de muito boa saúde. Resumindo, não sei que fazer. Se o rejeito, é perfeitamente capaz de ir pedir Sophia em casamento. Se ela recusar, pede a Georgiana e eu não seria capaz de ver nenhuma das duas casas antes de mim. Se aceito, sei que vou ser uma desgraçada o resto da minha vida, uma vez que tem um temperamento terrível, sendo irritante, extremamente ciumento e tão mesquinho, que viver a seu lado não é viver. (…) E prometeu-me que iria ter uma nova carruagem para a ocasião. No entanto, quase acabámos por discutir acerca da cor, porque eu insisti que deveria ser azul com pequenas bolas prateadas e ele declarou que deveria ser cor de chocolate e lisa. Para me provocar ainda mais, disse-me que deveria ser tão baixa como a antiga, de que era proprietário. Assim, juro que não me caso com ele. Disse-me que voltaria amanhã para conhecer a minha resposta final, pelo que julgo que devo agarrar enquanto posso. Sei que serei invejada pelas Dutton e poderei acompanhar Sophy e Georgiana em todos os bailes de inverno. Mas de que servirá tal coisa, se o mais provável é que não me deixe ir, dado que odeia dançar e é incapaz de pensar que alguém possa gostar de algo que ele odeia. Por outro lado, passa o dia a dizer que as mulheres deveriam estar sempre em casa e tolices do género. Acho que nunca me vou casar com ele. (…)

- Por favor, Sophy, diga-me, pretende casar-se?

- Casar-me! Não faço a menor intenção. Mas, porque é que me pergunta? Conhece alguém que quer pedir-me em casamento? (…)

- Por favor, minha senhora, não force a Menina Stanhope a comportar-se com delicadeza. Se ela não aceitar a minha mão, pode oferecê-la a outra pessoa, uma vez que, se é certo que sinto por ela especial predileção, acima das suas irmãs, é-me indiferente casar com qualquer uma das três.

Será possível imaginar alguém mais canalha! Sophy ficou vermelha de raiva e eu senti-me terrivelmente despeitada. 

- Bem, nesse caso - disse Mary em tom depreciativo - e uma vez que devo fazê-lo, casar-me-ei com o senhor Watts.  

- Sempre pensei, menina Stanhope, que fazendo um pedido como lhe fiz, e em condições tão vantajosas, não haveria grande dificuldade em aceitá-lo. (…)

- Lambre-se do estipulado para os meus alfinetes: duzentas libras por ano. 

- Cento e setenta e cinco, minha senhora. 

- Duzentas, caro senhor - disse a minha mãe. (…)

O senhor Watts dispunha-se a continuar, quando Mary o interrompeu, dizendo:

- Deve construir-me uma estufa muito elegante e enchê-la de plantas até ao teto. Tem de permitir passar todos os invernos em Bath, todas as primaveras na cidade, todos os verões em viagem e todos os outonos numas termas. Se estivermos em casa o resto do ano (Sophy e eu rimo-nos), terá de se responsabilizar pela  organização de bailes e festas durante o tempo todo. Tem de mandar construir um salão com esse objetivo e um teatro onde se possa representar. A primeira obra de teatro que aí se representará será Quem é o Homem e eu interpretarei Lady Bell Bloomer.

- E a menina Stanhope pode dizer-me o que vou obter em troca de tudo isso? - perguntou o senhor Watts.

- O que vai obter? Vai ver-me contente!

- Seria estranho que não o estivesse. No entanto, minha senhora, as suas expectativas são excessivamente altas para a mim e, agora, devo dirigir-me à menina Sophy. Talvez as dela não sejam tão elevadas. 

- Engana-se ao supor tal coisa, cavalheiro - disse Sophy - porque, apesar de as minhas expectativas não serem da mesma ordem que as da minha irmã, são tão elevadas como as dela, uma vez que quero que o meu marido tenha bom caráter e seja alegre. Que em todos os seus atos, pense na minha felicidade e que me ame com constância e sinceridade. 

O senhor Watts ficou a olhá-la perplexo. (…)

- Graças a Deus que se foi embora! Como o odeio!

Em vão, a mamã tentou explicar-lhe como era impróprio detestar a pessoa com quem se ia casar, ela continuou a falar da sua aversão àquele homem e do muito que gostaria de nunca mais o ver. Que belo casamento há de ser! 

Adeus, minha querida Anne.

Sua amiga afetuosa (…)


in: Lady Susan, Escritos da Juventude, de Jane Austen, Cranford Collection, 2022

14 janeiro 2025

Thomas More | Peter Ackroyd

 No ar, pairariam todos os odores da madeira, da pedra e do fumo, das ervas secas e das carnes assadas. (…) Estas famílias ricas da Idade Média tardia viviam confortavelmente. (…)

A vida escolar podia, porém, ser severa, e o castigo, ou a ameaça de castigo, era um aspeto permanente da educação de uma criança. Há toscas xilogravuras que nos mostram o interior de uma sala de aula; em algumas, o mestre segura um livro, noutras, empunha uma vara; em Utopia, More fala dos maus professores que preferem bater a educar os seus alunos. (…)

Em A Dialogue of Confort Against Tribulation, escrito na cela de prisão que foi a sua última morada neste mundo, More condenava o «buliço labirinto circular desse mal a que chamamos negócios». (…)

Andava agora constantemente rodeado por acompanhantes e a sua eminência na corte real era tal que, na Primavera do ano seguinte, foi-lhe concedido o lucrativo cargo de vice-tesoureiro. Neste papel, estava encarregado de supervisionar o trabalho da Fazenda, onde os funcionários registavam o apropriado desembolso ou coleta de taxas. (…) O vice-tesoureiro tinha direito ao titulo de cavaleiro, segundo o costume, e assim foi que Master More se viu transformado em Sir Thomas More. Tornara-se, nas palavras do próprio rei, «o nosso fiel e amado conselheiro Thomas More, agora feito cavaleiro». Era eques auratos, obrigado a usar a corrente de cavaleiro e esporas douradas quando montasse. Era um cavaleiro de ar jovial, mas por detrás desta assunção de condição continuava a haver uma tradição viva de honra e cavalheirismo que More teria absorvido de Chaucer, Malory e Lydgate: o «parfit gentil» cavaleiro era alguém que amava «a verdade e a honra, a liberdade e a cortesia». (…)

No seu Elogio da Loucura, Erasmo tinha já deixado claro que os loucos são na verdade sábios em comparação com a sabedoria vulgar do mundo, e More parecia ficar deliciado quando o duque de Norfolk lhe censurava a loucura e, em Coventry, troçou dele por ser «louco». Era louco como Sócrates e Luciano eram loucos; eram os verdadeiros sábios da humanidade que, na sua loucura, recusavam aceitar as loucuras da era. Quando Richard Pace foi criticado por usar uma capa de bobo numa mascarada, More terá supostamente respondido: «Não, não. Desculpai-o. É menos pernicioso para a comunidade quando os homens sábios se disfarçam de tolos na brincadeira do que quando os tolos se disfarçam de homens sábios a sério.»

O Bobo é maleável e sabe representar muitos papéis, como o próprio More fazia; e sabe também dizer a verdade através do humor. (…)

A guerra, a heresia e a anulação eram, pois, as três grandes preocupações que afligiam o espírito de More. (…)

More ajoelhou e o carrasco ofereceu-se para lhe vendar os olhos; mas ele recusou e cobriu o rosto com um pano de linho que levara consigo. (…) Assim terminou a vida de Thomas More, um dos poucos londrinos alguma vez canonizados e o primeiro laico inglês a ser beatificado como mártir.


in:  Thomas More, Biografia, de Peter Ackroyd, Bertrand Editora, Lisboa, 2003