Aguarelas Finas, Le Corbusier | Maison La Roche, Paris

26 fevereiro 2016

A minha infância …

Lembro-me do cheiro da terra molhada
Quando chovia…
As primeiras chuvas de outono
O fim do verão…

Lembro-me da quinta…
Lembro-me de semear o feijão, um grão de cada vez, com um palmo de intervalo entre cada um…
Lembro-me de ajudar o meu pai e a minha mãe,
Ao fim de semana dedicavam-se a semear a terra,
Eram feijões, batatas, milho, hortaliças…
A terra era preparada, anteriormente era lavrada, e os regos eram feitos com enxada e eram todos certinhos e alinhados horizontalmente e verticalmente, como uma grelha…

Lembro-me de ter energia,
Lembro-me das oliveiras… de as trepar!
Recordo os momentos em que ajudava a preparar o almoço…
Descascar as batatas, cortar os grelos de nabiça, cozer o bacalhau e temperar tudo com azeite, das nossas oliveiras…

No verão…
Lembro as borboletas a voar de flor em flor,
As flores, tantas e tão variadas…
As suas cores, os cheiros, o céu azul…
O rio, a água transparente, um mergulho livre…

As lagartixas, as rãs e a fonte, uma nascente com água gelada e doce…
As caminhadas pela mata…
Andar de bicicleta, sozinha pela floresta de pinheiros…
Parar, respirar fundo e continuar!

Que saudades de ser feliz!
Que liberdade…
A simplicidade de estar…
Desfrutar simplesmente da natureza!

E no outono, nasciam os cogumelos…
E o prato delicioso da minha avó:
Cebola, azeite, cogumelos, batata e um ovo por cima!
Que cheirinho…

A maravilha da nossa terra…
O milagre da transformação através das estações do ano…
O tempo, a passagem do tempo…
Esse tempo que já não volta!

in: Diário, de Ana Paula de J. L. Gaspar, 7 de junho de 2014.

03 fevereiro 2016

Ovídeo | Arte de Amar

Livro III

Às Mulheres

Armas, eu as forneci aos Dánaos contra as Amazonas; armas me restam, ainda,
para te fornecer a ti, ó Pentesileia, e à tua gente.
Parti para a batalha em igualdade de condições; que vença quem a mãe Dione
favorecer, e o menino que voa sobre o mundo inteiro.
Não seria justo que enfrentásseis, despidas de armas, inimigos armados;
se assim fosse, também para vós a vitória seria uma vergonha, ó varões.

Uma Arte de Amar para as Mulheres

(…)
A mulher não desvia as chamas e as implacáveis flechas;
esses dardos, vejo eu que mais raramente são danosos aos homens.
Muitas vezes traem os homens; não tantas vezes as mulheres delicadas;
e, se procurares, poucos são os crimes de engano que nelas se encontram.
(…)
Qual foi a vossa perdição, eu vos direi: não soubeste amar;
faltou-vos arte; é a arte que faz perdurar o amor.
(…)
e disse-me, então: "que fizeram as pobres mulheres?
São um povo sem armas entregues a homens armados;
a eles, dois livros os tornaram peritos na arte;
também este grupo os teus preceitos têm de ensiná-lo.

Aproveitar a Juventude

Tende desde já na lembrança que a velhice há-de chegar;
e não deixeis, por isso, esvair-se tempo na ociosidade;
enquanto vos for consentido e conservardes, ainda, a idade da Primavera,
gozai; vão-se os anos, do mesmo modo que a água corrente;
nem a onda que passou voltará de novo a ser chamada,
nem a hora que passou logra tornar atrás.
(…)
Tempo há-de vir em que tu, que agora enjeitas os amantes,
hás-de dormir, enregelada e velha, na solidão da noite,
e não há-de a tua janela ser quebrada por briga nocturna,
nem vais encontrar, pela manhã, rosas espalhadas à tua porta.
Bem depressa, pobre de mim!, o corpo amolece de rugas,
e desaparece, no rosto que era luzidio, a cor,
e os cabelos brancos que juras que tinhas já em rapariga,
de súbito se espalham por toda a cabeça.
(…)

Cuidar da Beleza

(…)
A beleza é um dom dos deuses; da sua beleza, quão poucas se podem orgulhar!
Grande parte de vós não possui um tal dom.
(…)

A Poesia

Conhece a musa de Calímaco, conhece a do Poeta de Cós,
conhece, ainda, a do ancião de Teos, afeiçoado ao vinho;
conhece, também, Safo (pois que é que existe mais lascivo do que ela?)
e aquele que põe um pai a ridículo, vítima dos ardis do manhoso geta.
(…)

Homens a Evitar

Mas evitai os homens preocupados com a elegância e a beleza
e que têm o cabelo bem penteado;
o que vos dizem a vós, disseram-no já a mil mulheres;
vai deambulando e não se fixa em sítio algum e seu amor.
(…)
Há os que avançam a coberto de uma espécie enganosa de amor
e, por tais caminhos, são ganhos indecentes que buscam.
(…)
Talvez o mais elegante de entre todos eles
seja um ladrão e esteja a arder por amor do que trazes vestido.
"Devolve o que é meu!", gritam, muitas vezes, depois de roubadas, as mulheres,
(…)
Aprendei com as desgraças das outras a temer as vossas;
não se abra a vossa porta a um homem falso.

Amores Furtivos

(…)
Atenta nas palavras que lês; das próprias palavras terás de depreender
se está a fingir ou se as súplicas vêm do fundo do coração e da ansiedade;
depois de fazeres esperar um pouco, responde. A espera estimula sempre
os amantes, se for por tempo razoável.
Mas nem te entregues facilmente ao jovem que te namora
nem negues, de coração endurecido, o que ele te pede.
Faz com que alimente, à uma, temor e esperança; e, sempre que responderes,
mais firme se lhe torne a esperança e menos intenso o medo.
Palavras elegantes, mas usuais no convívio social, ó mulheres,
é o que deveis escrever! O ar vulgar da conversa dá gosto.
Ah, quantas vezes se inflamou diante de uma mensagem um amante inseguro!
Quantas vezes foi danosa uma língua bárbara a uma grande beleza!
(…)
Que se diga sempre ser mulher o amante a quem se escreve;
seja uma "ela", em vossas mensagens, o que devia ser um "ele".

Cultivar a Doçura

(…)
Olha quem te olha; a quem te sorri com doçura, sorri;
Faz-te um aceno? Responde, também tu, que percebeste o sinal.

Amar os Poetas

Quem nos impede de colher de temas elevados exemplos para coisas
banais e de não ter receio da palavra "chefe"?
Um bom chefe confia a um cem soldados, para com o bastão de vide os comandar,
a outro cavaleiros, a um terceiro entrega-lhe a guarda dos estandartes;
também vós, observai para que função cada um de nós é mais conforme
e ponde cada um no posto adequado:
o rico debe dar presentes; aquele que for versado em leis dê o seu apoio;
o que tem o dom da palavra que defenda, muitas vezes, a causa da sua cliente;
nós, que fazemos versos, devemos limitar-nos a enviar versos;
somos nós, mais que todos os outros, o tal coro capaz para o amor;
nós fazemos ouvir longe o pregão da beleza que nos encanta;
é famosa Némesis, Cíntia é famosa;
a estrela da tarde e os confins do Oriente conhecem Lícoris,
e muitos perguntam quem é a minha Corina;
acresce que não existe perfídia entre os divinos poetas,
e que a nossa arte nos molda, também, à sua feição;
e não nos move a ambição nem o amor da riqueza,
desprezamos o foro e cultivamos o leito e as sombras;
mas facilmente nos apegamos e deixamos-nos consumir num fogo abrasador
e sabemos amar com lealdade inquebrável.
(…)
existe um deus em nós e mantemos diálogo com o céu;
é das planuras do céu que nos vem a inspiração.

A Cada idade seu Encanto

(…)
O velho soldado ama sem dor e com sabedoria
e suporta muitas coisas que o recruta não consegue padecer;
e não rebenta com as portas nem lhes deita fogo com chamas terríveis,
nem se atira com as unhas ao rosto delicado da sua dama,
nem rasgará a sua túnica ou a túnica da amada,
nem fará de um cabelo arrancado causa de pranto.
Tais atitudes ficam bem a rapazinhos, no calor da idade e do amor;
aquele suportará cruéis feridas, de coração robustecido;
é em fogo lento, caramba!, que há-de arder, como feno húmido,
como a madeira acabada de cortar nos bosques da montanha.
(…)

Rivais: Não dar Ouvidos a Boatos

Aonde me leva a minha loucura? Porque avanço, de peito aberto,
contra o inimigo e me denuncio com os sinais que eu mesma forneço?
Não revela o pássaro ao caçador como pode ser caçado,
nem ensina o veado os cães assanhados a persegui-lo.
A vantagem ficará desvendada; eu, aquilo que comecei, fielmente o hei-de consumar
e às mulheres de Lemnos hei-de dar armas para me matarem.
Fazei (é fácil consegui-lo) que nós acreditemos no vosso amor;
para quem está apaixonado, a crença vem ao encontro do desejo.
(…)

in: Arte de Amar, de Ovídeo, Livros Cotovia, Lisboa, 2006

02 fevereiro 2016

Ovídio | Arte de Amar

Livro II

Introdução. 
Conservar o Amor

(…)
Não baste que a mulher venha até junto de ti, graças ao meu canto;
foi a minha arte que a cativou, é a minha arte que tem de preservá-la;
conservar o que se alcançou não é virtude menor do que bus.cá-lo;
aqui interfere o acaso, ali é a obra de arte.
Agora, mais que nunca, ó menino, ó Citereia, favorecei a minha empresa,
agora, ó Érato, já que tens nome de Amor.
Grandioso é o que me apresto a cantar: por que artes consegue segurar-se
o Amor, um menino tão vagabundo na vastidão do universo.
ligeiro é ele e possui um par de asas, com que voa;
bem difícil é pôr-lhes travão.
(…)

Amabilidade e Elegância

Guarda-te de tudo quanto é vedado! Para seres amado, sê amável,
coisa que te não darão apenas o rosto ou a beleza.
Ainda que sejas Nireu, a quem o velho Homero amava,
ou o delicado Hilas, arrebatado pelo crime das Náiades,
para conservares a tua amada e não teres a surpresa de ser por ela abandonado,
junta os bens do espírito às qualidades do corpo.
A beleza é um bem frágil; à medida que vão avançando os anos,
vai diminuindo e, por força da idade, vai murchando;
não ficam todo o tempo em flor as violetas nem os lírios de pétalas abertas,
e a roseira, depois de cair a flor, enrijece de espinhos, que é o que lhe resta.
Também a ti, ó jovem esbelto, te hão-de chegar os cabelos brancos,
e logo virão as rugas a sulcar-te o corpo.
Suaviza já o teu espírito, por forma a perdurar, e ajunta isso à tua beleza;
só ele logra permanecer até às preces derradeiras;
e não tenhas em menos conta educar o carácter por meio das boas artes
e aprender as duas línguas;
não era belo, mas era eloquente Ulisses,
e, no entanto, atormentou de amores deusas do mar.
(…)

Doçura e Bondade

A rectidão e a bondade, eis o que, em especial, cativa os corações;
a aspereza suscita o ódio e guerras cruéis.
(…)
É de doces palavras que tem de sustentar-se a brandura do amor.
(…)
Que a amante, pelo contrário, ouça sempre as palavras que deseja.
Não foi por mando de uma lei que viestes parar ao mesmo leito;
quem cumpre a sua função em vós é a lei do amor.
Doces meiguices e palavras aprazíveis ao ouvido
é o que tens de trazer-lhe, para ela ficar feliz com a tua vinda.
Não é aos ricos que venho ensinar a amar;
não tem qualquer precisão da minha arte aquele que é mãos largas;
já tem consigo o seu talento aquele que diz, sempre que lhe apetece: "aceita";
a esse cedo; agrada mais ele que os meus ensinamentos.
Eu sou o poeta dos pobres, pois foi pobre que amei;
já que não podia ofertar presentes, oferecia palavras;
que o pobre âme com recato, que receie ser maldizente o pobre
e suporte muitas coisas que não seriam capazes de tolerar os ricos.

Persistência

Se não for meiga quanto baste nem corresponder ao teu amor,
porfia e persiste. Acabará por tornar-se carinhosa.
Dobra-se, quando vergado com jeito, o ramo da árvore;
vais parti-lo, se puseres à prova a tua força;
com jeito, a nado se passam as águas; mas não serás capaz de vencer
o rio, se nadares contra a corrente que com as águas se arrasta;
o jeito doma os tigres e os leões da Numídia;
no campo, o boi acaba por subjugar-se, pouco a pouco, ao peso do arado.
(…)

Ceder e Servir

Cede quando ela teima; se cederes, sairás vencedor;
trata, apenas, de agir, como ela determinar.
Se ela contestar, contesta; o que aprovar, aprova-o;
o que afirmar, afirma-o; o que negar, deves negá-lo;
se rir, ri-te; se chorar, lembra-te tu de chorar;
seja ela a ditar as leis às tuas feições.

Robustez e Vigor 

O amor é uma espécie de serviço militar. Batei em retirada, gente indolente!
Tais estandartes não são para ser confiados a homens medrosos.
A noite e o Inverno e jornadas sem fim e dores terríveis
e toda a sorte de padecimentos, eis o que nos espera nos campos de doçura;
muitas vezes terás de suportar a chuva que cai das nuvens do céu
e muitas vezes vais dormir, enregelado, sobre a terra nua.
(…)

Prendas

(…)
ah, malditos sejam aqueles que com presentes enganam!

 Gerir a Ausência e a Saudade

Mas o vento a que soltaste as velas ao deixares a praia,
dele não deves servir-te, agora, depois de te tornares senhor do alto mar.
Enquanto dá passos incertos o novo amor, deve buscar no uso as suas forças;
se bem o souberes alimentar, com o tempo ficará firme.
O touro que te mete medo, costumavas tu, quando era vitelo, fazer-lhe festas;
a árvore à sombra da qual agora repousas, foi, antes, um arbusto;
nasce bem delgado, mas ganha forças, à medida que avança,
o rio e, por onde passa, uma imensidão de correntes vai recebendo.
Faz com que se acostume a ti; nada tem mais força que a habituação;
até a alcançares, não fujas a nenhum dissabor;
que te veja a todo o tempo, que a todo o tempo te escute,
que a noite e o dia lhe mostrem o teu rosto.
(…)

Amar com sabedoria

Aquele a quem a natureza concedeu beleza, seja graças a ela que dê nas vistas;
aquele que possui uma pele formosa durma muitas vezes de ombros à mostra;
o que tem uma conversa agradável evite os silêncios taciturnos;
o que canta com elegância, que cante; o que bebe com elegância, que beba.
(…)
Todo o que amar com sabedoria triunfará e quanto reclamar de minha arte, vai consegui-lo.

in: Arte de Amar, de Ovídio, Livros Cotovia, Lisboa, 2006