Aguarelas Finas, Le Corbusier | Maison La Roche, Paris

18 julho 2016

Calígula | Albert Camus

Helicon
E que querias tu?

Calígula
A Lua

Helicon
Bem sabes que nunca penso. Sou demasiado inteligente para isso.

Calígula
… Não estou doido, parece-me mesmo que nunca fui tão razoável. Simplesmente, senti de repente necessidade do impossível.
… Tenho, portanto, necessidade da Lua ou da felicidade, ou da imortalidade, de qualquer coisa de demente, talvez, mas que não seja deste mundo.
… Os homens morrem e não são felizes.
… Porque lhes falta um professor que conheça aquilo que ensina.

Cipião
… que fazer sofrer é a única maneira de agente se enganar.

Calígula
… devem obrigatoriamente deserdar os filhos e testemunhar imediatamente a favor do Estado.
… Governar é roubar, toda a gente o sabe.
… por mim, roubarei francamente.
Acreditava, como toda a gente, que estar desesperado era uma doença da alma. Estava enganado, o corpo é que sofre.
… Como é duro, como é amargo a gente tornar-se um Homem!
… para que me serve esse poder tão espantoso, se não posso alterar a ordem das coisas, se não posso fazer com que o Sol se ponha a Oriente, e com que decresça o sofrimento, se não posso impedir os seres de morrerem?
… Quero misturar o Céu com a Terra, confundir a beleza com a feldade, fazer explodir o riso, do sofrimento.
… quando a Lua for minha…

Cesónia
Nunca poderás negar o amor.

Calígula
O amor, Cesónia! Aprendi que não é nada.

Cherea
O que é insuportável é ver dissipar-se o sentido desta vida, ver desaparecer a nossa razão de existir.

Calígula
Qual é o castigo para os escravos preguiçosos?
O Chicote, suponho.

Cesónia
… as tuas mãos cheias de flores e de crimes.
… as tuas alegrias sem futuro…
… sacia-nos para sempre no teu coração negro e sujo.

Calígula
… Provei a esses deuses ilusórios que um homem, se tiver vontade, pode exercer sem aprendizagem o ridículo ofício deles.
… Compreendi simplesmente que só há uma maneira de nos igualarmos aos deuses e é tornarmo-nos tão cruéis como eles.
… se exerço este poder é por compensação.

Cipião
Por compensação? A quê?

Calígula
À estupidez e ao ódio dos deuses.
… Não Cipião, isto não é arte dramática! O erro de todos esses homens é não acreditarem o suficientemente no teatro. Se não fosse isso, saberiam que a qualquer homem é permitido representar as tragédias celestes e tornar-se deus. Basta endurecer o coração.
… Um homem honrado é um animal tão raro neste mundo, que a minha vista não o pode suportar durante muito tempo. Preciso de ficar só para saborear este grande momento.

Cherea
Tens alguma coisa de particular a dizer-me?

Calígula
Não. Cherea.
… Tenho necessidade de falar com alguém que seja inteligente.
… Cherea, acreditas que dois homens cuja alma e cuja altivez sejam iguais possam, ao menos uma vez na vida, abrir o coração e falar, como se estivessem nus, um diante do outro, despojados dos preconceitos, dos interesses particulares e das mentiras em que vivem?

Cherea
Penso que é possível, Caius. Mas julgo-te incapaz de o fazer.

Calígula
Tens razão. Só queria saber se pensavas como eu. Cubramo-nos então de máscaras. Utilizemos as nossas mentiras. Falemos como quem se bate, sempre em guarda. Porque é que não gostas de mim. Cherea?

Cherea
Porque em ti não há nada de que se possa gostar. Porque estas coisas não se controlam. E também, porque te compreendo o bastante para não te amar, e porque se não pode gostar, noutrem, daquilo que recalcamos em nós.

Calígula
Porquê odiares-me?

Cherea
Nisso, enganas-te Caius. Não te odeio. Apenas te julgo prejudicial e cruel, egoísta e vaidoso. Mas não te posso odiar, porque sei que és infeliz. E não te posso desprezar, porque sei que não és cobarde.

Calígula
Tu és inteligente, e a inteligência, ou se paga ou se nega. Eu pago. Mas tu, porque não queres negá-la, nem pagá-la?

Cherea
Porque tenho desejo de viver e de ser feliz. Creio que não se pode ter, indo até ao fim do absurdo, nem uma coisa nem outra. Sou como toda a gente. Para me sentir livre. Acontece que, às vezes, desejo a morte daqueles que amo, e convido mulheres que as leis da família ou da amizade me impediam de convidar. Para ser lógico, teria mesmo de matar ou de possuir. Mas penso que estas ideias vagas não têm importância. Se toda a gente se metesse a realizá-las, não poderíamos viver nem ser felizes. E insisto, é isso o que me importa.

Calígula
É preciso, então, que acredites em alguma ideia superior.

Cherea
Acredito que há acções belas e outras que o não são.
(…)

Velho Patrício
Não te importas de deixar de fazer filosofia? Horroriza-me.

Cherea
Reconheçamos, ao menos, que este homem exerce uma inegável influência. Obriga a pensar. Obriga toda a gente a pensar. A insegurança, eis o que o faz pensar. E é por isso que tantos ódios o perseguem.

Calígula
Então é porque há duas espécies de felicidade, e eu escolhi a dos assassinos. Porque sou feliz. Houve um tempo em que pensei atingir o limite da dor: pode-se ir mais longe ainda! (…)
… Mas o seu verdadeiro sofrimento não é tão fútil: é perceber que nem sequer o desgosto dura! Até a dor não faz sentido. (…)
… Sei que nada dura! Oh! Saber isto! Fomos só dois ou três, na história, que tivemos a verdadeira experiência disto, que pudemos atingir esta felicidade demente. (…)
… Vivo, mato, exerço o poder delirante do destruidor, ao pé do qual o do criador parece uma macaquice.
… enfim, a solidão eterna do desejo.


in: Calígula seguido de o Equívoco, de Albert Camus, Editora Livros do Brasil, Lisboa, 2002