Aguarelas Finas, Le Corbusier | Maison La Roche, Paris

03 maio 2020

O Culto do Chá | Wenceslau de Moraes

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Consta mais que, em certa noite, as pálpebras se lhe cerraram de fadiga, e o bom Darumá deixou-se adormecer, para só acordar pela manhã. Então, pedindo a alguém uma tesoura ou instrumento parecido, cortou a si próprio as pálpebras indignas e arremessou-as ao solo, num gesto de despeito … As pálpebras, por milagre, enraizaram, dando nascença a um gracioso arbusto nunca visto, que medrou mui de pronto e cujas folhas, tratadas de infusão pela água quente, foram um remédio precioso contra o sono e contra o cansaço das vigílias. Estava conhecido o chá; tem pois na China a sua origem, e é coisa santa, como se acaba de provar. Crê quem quer; mas devo advertir que este livro foi escrito para crentes.
Da China, veio o chá para as terras de Nippon, mas não se sabe quando.
Velhas crónicas mencionam (no dizer dos entendidos neste caso melindroso) que, em 729 da era cristã, durante uma festa religiosa de espavento, o imperador Shomu oferecia chá a bonzos de alta jerarquia; mas fica-se ignorando se já antes seria conhecido … Parece que um bom abade budista, Dengyo Daishi, foi o primeiro que obteve a planta em solo japonês, em 805; o chá era então já uma beberagem favorita entre os bonzos chineses, que dela se serviam durante as vigílias prolongadas das suas práticas noturnas. Mais recentemente, ainda outro bonzo, Eisei, tendo ido à China, de lá voltou, trazendo as sementes preciosas, e no monte Sefuri, em Chikuzen, cuidou da sua sementeira. Pouco depois, ainda mais outro bonzo (sempre os bonzos!) de nome Mioyé, colhendo de Eisei os vários segredos de cultura, novas sementes adquiriu, e em Toga-no-o e em Uji, lugares vizinhos de Quioto, atentamente se entreteve em cultivar o chá; em Uji, de preferência, foram os resultados excelentes. Dois séculos depois, cerca de 1400, o shogun (generalíssimo) Ashikawa Yoshimitsu imprimiu vigoroso impulso às plantações de Uji, as quais tanto foram prosperando, mercê da riqueza do torrão, que de então até hoje o chá daquele sítio tem sido celebrado como o melhor de todo o Império; dele exclusivamente se serve o imperador.
O Japão é a terra das camélias …
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Passando, em horas de ócio, junto dos campos de chá, dos quais sinto prazer em acercar-me, palestro com os aldeões e aprendo noções várias respeitantes à delicada planta. Não pode ser transplantada, nem se multiplica por estacas ou por enxerto, só por sementeira se propaga. Os países quentes, como os países frios, são-lhe nocivos; prospera nos climas temperados, nos sítios lavados de ar e de luz, vizinhos dos cursos de água, convindo um ligeiro declive ao solo de cultura. Os arbustos são dispostos em renques paralelos, de norte a sul, para que o sol lhes bata em cheio desde pela manhã até à noite; … No fim de quatro anos, já o arbusto se presta à primeira colheita; mas são as velhas plantas, de cem anos, de duzentos anos, as que melhor produzem.
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Quem quiser tomar conhecimento com a planta de chá, nas melhores condições de prosperidade e em mais belas galas de aspecto pitoresco, tem de ir até Uji, distante quinze milhas de Quioto; escolhendo de preferência um dos primeiros dias de Maio, quando os rebentos novos começam vicejando, o que marca o início da faina da colheita. Faina e festa;
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As moças de Uji estreiam kimonos novos para o caso, arregaçando as mangas com fitas escarlates; amarram em turbante em volta dos cabelos toalhas de cor azul-e-branca; e assim, esbeltas, graciosíssimas, em ranchos de dez, de doze companheiras, dirigirem-se ao trabalho. É então um encanto para os olhos ir a gente surpreende-las no afã do seu mister, dispersas pelas campinas fora, como borboletas; indo de um ramo a outro ramo, de um arbusto a outro arbusto, por vezes ocultando-se entre o verde mais denso da folhagem. Os dedos róseos, miudinhos, a escorrerem de orvalho e multiplicando-se em gestos delicados, vão colhendo os rebentos tenros do chá e atirando-os a grandes ceiras dispostas pelo chão;
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No Japão, toda a gente toma chá - ricos e pobres, nobres e plebeus - bebe-se na ocasião das refeições e a toda a hora, a pequeninos goles. No lar, quando entra o visitante, oferece-se-lhe, após as reverências, uma almofada de regalo e uma chávena de chá.
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Nos templos famosos, em Quioto, por exemplo, o bonzo oferece chá ao peregrino antes de lhe mostrar as relíquias e os museus.
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Um restaurante, na pitoresca linguagem japonesa, diz-se uma Chaya - que quer dizer - casa de chá. De sorte que a chávena de chá, que acompanha os bons dias dados a quem chega, não constitui simplesmente uma norma rotineira, um hábito banal, tornou-se como um símbolo da doce hospitalidade japonesa, um rito de bonomia desta gente, exercido religiosamente entre amigos, entre estranhos também, porque ao estranho, que larga à porta as sandálias, vem ao nosso lar e nos saúda, deve-se já um sorriso e a sua parte de conforto.
Na casa, nua de móveis, porém mimosa de asseios requintados, figura sempre o braseiro sobre a esteira, e nas brasas vai fervilhando a chaleira de ferro cheia de água; o Bon (uma bandeja) está cerca, contendo o bule, as cinco chávenas (cinco porquê? talvez por serem cinco os dedos em cada mãozita japonesa), os cinco pires de madeira ou de metal, o cofre de estanho contendo o chá em folhas e ainda o pequenino recipiente em porcelana chamado yuzamashi, cuja ordinária serventia vai muito em breve conhecer-se. O sentido artístico japonês deprava-se naturalmente na indústria de hoje, em grande parte com destino à exportação para a Europa e para a América;
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O Chá japonês tem a virtude de mitigar a sede. Assim se explica o hábito dos japoneses não beberem água; mesmo na força dos calores, em pleno Agosto, a chávena de chá, saboreada a goles, lhes dá pleno consolo. Aponta-se-lhe mais outros condões: excita ligeiramente o organismo, combate o cansaço das vigílias, predispõe ao bem-estar, infiltra no cérebro não sei que subtil embriaguez, lúcida todavia, que nos torna mais afectivos às sensações de agrado e mais aptos às elaborações do pensamento.

in: O Culto do Chá, de Wenceslau de Moraes, Relógio d'Água Editores, Lisboa, 2008