Aguarelas Finas, Le Corbusier | Maison La Roche, Paris

19 dezembro 2016

Roma, 23 de Dezembro de 1903 | Rainer Maria Rilke

Meu caro Senhor Kappus,
não há-de ficar sem uma saudação da minha parte, agora que estamos à beira do Natal, e numa altura em que o Senhor, em plena festividade, suporta a sua solidão mais dificilmente que o costume. Mas ao notar que ela é grande, regozije-se com isso; pois o que seria (pergunte-se a si mesmo) uma solidão que não tivesse grandeza; só há uma solidão, e essa é grande e não é difícil de suportar, e quase todos a experimentam horas em que muito gostariam de a trocar por uma qualquer convivência, por mais banal e desprezível que seja, pela aparência de uma limitada harmonia com o primeiro que apareça, com o mais indigno… Mas talvez sejam precisamente essas as horas em que a solidão cresce; porque o seu crescer é doloroso como o crescer dos adolescentes e triste como o começo das primaveras. Mas não permita que isso o desoriente. Aquilo que faz falta é apenas isto: solidão, grande solidão interior. Entrar dentro de si mesmo e não estar com ninguém durante horas, - é isso que é preciso ser capaz de alcançar.  Ficar solitário, como se ficava solitário em criança, enquanto os adultos andavam para cá e para lá, enredados em coisas que pareciam importantes e grandes, porque as pessoas grandes pareciam tão ocupadas e porque nada se compreendia dos seus afazeres.
E quando um dia se percebe que as suas ocupações são miseráveis, que as suas profissões são algo de entorpecido e que já não estão ligadas à vida, então por que motivo não havemos de continuar a olhá-las, à maneira das crianças, como coisa estranha, a partir da profundidade do nosso próprio mundo, a partir da distância da nossa solidão que é, ela mesma, trabalho e dignidade e profissão? Por que motivo querer trocar o sábio não entender de uma criança pelas atitudes defensivas e pelo desprezo, já que não-entender é um estar só, ao passo que a defensiva e o desprezo são participação naquilo de que uma pessoa quer separar-se à custa desses meios.
Pense, caro Senhor, no mundo que transporta em si, e chame a esse pensamento o que quiser; seja recordação da infância de cada um ou anseio pelo próprio futuro, - esteja somente atento ao que se ergue dentro de si e coloque-o acima de tudo aquilo de que se apercebe à sua volta. O seu acontecer mais interior merece todo o seu amor, é nele que tem de trabalhar, seja de que modo for, e não perder demasiado tempo e demasiada coragem a clarificar a sua atitude para com as pessoas. Afinal, quem é que lhe diz que tem uma atitude? (…)

in: Cartas a um jovem Poeta, de Rainer Marie Rilke, Antígona, 2016, p. 61 a 65.

19 novembro 2016

Flores Murchas | Sebastião da Gama


… um cheiro doce
Que vai pra longe; longe de viagem,
Deixando as flores murchas pelo chão
Servindo apenas p'ra um herbolário
Pra estudo ou somente colecção.

in: Flores Murchas, de Sebastião da Gama, in: Diário, Obras Completas de Sebastião da Gama, p. 230.

18 outubro 2016

A Potência de Existir | Michel Onfray

A escultura de si.
Conservemos a antiga metáfora da escultura: Plotino utiliza-a nas Eneidas e incita cada um de nós a ser o escultor da sua própria estátua. Porque, a priori, o ser está vazio e oco. A posteriori, ele é o que foi feito e o que dele se faz. Trata-se de uma formulação moderna: a existência precede a essência. Cada um segue sendo, neste sentido, parcialmente responsável pelo seu ser e pelo seu futuro. Sucede o mesmo com o bloco de mármore bruto e sem identidade, enquanto o escopro do escultor não se decidir a conceder-lhe uma forma. Esta última não está oculta, em potência, na matéria, mas é produzida com o desenvolvimento de um trabalho. A obra constrói-se dia após dia, hora após hora, segundo após segundo. Cada instante contribui para o futuro.
Que se deve procurar produzir? Um Eu, um Si mesmo, uma Subjectividade radical. Uma identidade sem duplo. Uma realidade individual. Uma pessoa recta. Um estilo notável. Uma força única. Uma potência magnífica. Um cometa que traça um caminho inédito. Uma energia que inaugura um percurso luminoso no caos do cosmos. Uma bela individualidade, um temperamento, um carácter. Sem querer a obra-prima, sem visar a perfeição - o génio, o herói ou o santo - é necessário tender para a epifania de uma soberania inédita.
A tradição filosófica declara não gostar do Eu; ela apregoa, em todas as circunstâncias, o seu ódio ao Si. Muitos filósofos contemporâneos defendem, sem pestanejar, esta posição teórica, disseminando-se depois em obras e artigos com vista a oferecer os detalhes da infância própria, fornecer a biografia e dar testemunhos sobre a sua formação intelectual e primeira juventude. (…)
Esta esquizofrenia dá lugar a uma contradição: se eles estão certos ao condenarem o eu, então que se calem; se falam na primeira pessoa, então que façam concordar o seu pensamento com os seus desabafos. Sou a favor de uma necessária revisão teórica e de uma continuação da auto-análise existencial que, a meu ver, permite uma melhor compreensão da origem de um pensamento, daquilo que ele é e da direcção na qual ele se encaminha.

in: A Potência de Existir, de Michel Onfray, Editora Campo da Comunicação,  p. 97 e 98.

14 setembro 2016

Arts in Action | Portalegre 2016


Em Portalegre, uma cidade no Alto Alentejo de Portugal, recebeu em pleno verão de 2016, cerca de 70 jovens provenientes da Alemanha, Bélgica, Itália, Portugal e Suécia. Um projecto internacional desenvolvido e orientado por Altino Barradas, oriundo desta cidade e apaixonado pelos encontros multiculturais e diversificados um pouco por todo o mundo.

Um encontro designado por Arts in Action, que sob a forma de Residência Artística, iria permitir uma troca de experiências e de acções criativas em volta da cultura gastronómica, artística, citadina, de linguagens, de expressões corporais, intelectuais, de reconhecimento do território variado em ofertas, cuja dinâmica implica um crescimento afectivo e de partilha vasta.

Para este encontro foi definida a temática da Tapeçaria de Portalegre, trata-se de um dos patrimónios mais relevantes desta cidade, e neste projecto foram incluídos ambos os locais da cidade onde se podem encontrar as tapeçarias: a Manufactura de Portalegre e o Museu das Tapeçarias de Portalegre.

Após o convite de Fátima Reis para criar e orientar um Ensemble de Artes para esta iniciativa, e deste modo integrar ainda uma equipa de mais cinco ensambles: ginástica, canto, dança, percussão e vídeo; foi desde logo planeada uma estratégia de modo a dar resposta ao período de tempo necessário ao desenvolvimento das actividades criativas.

O projecto tinha desde o seu início como objectivo principal uma mostra pública na cidade de Portalegre. Ou seja, os resultados do trabalho diário de todos os ensambles seriam apresentados no dia 3 de Agosto de 2016, pelas 22h, na Praça da República, na cidade de Portalegre.

O tema decidido para o resultado final foi a Tapeçaria de Portalegre e o sub-tema: a manufactura da tapeçaria, ou seja, o seu processo de construção no tear. Deste modo, o tear, as tecedeiras, a lã, o desenho, o esquema das cores, a obra de arte e a aprovação final pelo artista. Todos estes pontos seriam representados e expressos em cenário público com actores e actrizes activos neste processo artístico; o que implicava que todos os participantes neste projecto iriam aparecer no resultado final. Este resultado implicava ainda uma ligação criativa e uma interacção entre todos os ensambles.

O Ensemble de Artes Plásticas abordou o tema: O Nosso Corpo é um Mecanismo, e como Sub- Tema: Os Nossos Cinco Sentidos. A partir de diversos mecanismos no processo de criação, a inspiração na natureza é determinante e assim o seu envolvimento neste projecto também o foi. Desde materiais naturais recolhidos no local à sua interligação e criação no espaço envolvente de peças artísticas cuja ligação à criatividade se estabeleceu com o corpo, a relação entre os corpos e a relação com a paisagem circundante. Incluiu-se ainda uma instalação de um "tear" ao ar livre e um percurso abrangente entre os elementos do grupo e a daí os respectivos resultados artísticos com a orientação criativa e plástica de autora do Ensemble: Ana Gaspar.

A seguinte transcrição mostra um dos momentos em que foi lido e representado este excerto, permitindo um encadeamento com todo o processo artístico da manufactura de uma tapeçaria: "(…) Nas férias as tecedeiras levavam os filhos para a manufactura e depois do lanche, as crianças dormiam no chão da manufactura. Era um espaço intimidante, mas belo, onde as crianças se calavam sem ninguém as mandar calar, como se soubessem que ali o som não fosse necessário, como se o que os filhos viam lhes bastasse ao espírito. (…)" in: Olho + Espírito Sónia Amor, Páteo, Portalegre, 2016



Fotografias: alguns resultados do Ensemble de Artes, 22 Julho a 5 Agosto, 2016

18 julho 2016

Calígula | Albert Camus

Helicon
E que querias tu?

Calígula
A Lua

Helicon
Bem sabes que nunca penso. Sou demasiado inteligente para isso.

Calígula
… Não estou doido, parece-me mesmo que nunca fui tão razoável. Simplesmente, senti de repente necessidade do impossível.
… Tenho, portanto, necessidade da Lua ou da felicidade, ou da imortalidade, de qualquer coisa de demente, talvez, mas que não seja deste mundo.
… Os homens morrem e não são felizes.
… Porque lhes falta um professor que conheça aquilo que ensina.

Cipião
… que fazer sofrer é a única maneira de agente se enganar.

Calígula
… devem obrigatoriamente deserdar os filhos e testemunhar imediatamente a favor do Estado.
… Governar é roubar, toda a gente o sabe.
… por mim, roubarei francamente.
Acreditava, como toda a gente, que estar desesperado era uma doença da alma. Estava enganado, o corpo é que sofre.
… Como é duro, como é amargo a gente tornar-se um Homem!
… para que me serve esse poder tão espantoso, se não posso alterar a ordem das coisas, se não posso fazer com que o Sol se ponha a Oriente, e com que decresça o sofrimento, se não posso impedir os seres de morrerem?
… Quero misturar o Céu com a Terra, confundir a beleza com a feldade, fazer explodir o riso, do sofrimento.
… quando a Lua for minha…

Cesónia
Nunca poderás negar o amor.

Calígula
O amor, Cesónia! Aprendi que não é nada.

Cherea
O que é insuportável é ver dissipar-se o sentido desta vida, ver desaparecer a nossa razão de existir.

Calígula
Qual é o castigo para os escravos preguiçosos?
O Chicote, suponho.

Cesónia
… as tuas mãos cheias de flores e de crimes.
… as tuas alegrias sem futuro…
… sacia-nos para sempre no teu coração negro e sujo.

Calígula
… Provei a esses deuses ilusórios que um homem, se tiver vontade, pode exercer sem aprendizagem o ridículo ofício deles.
… Compreendi simplesmente que só há uma maneira de nos igualarmos aos deuses e é tornarmo-nos tão cruéis como eles.
… se exerço este poder é por compensação.

Cipião
Por compensação? A quê?

Calígula
À estupidez e ao ódio dos deuses.
… Não Cipião, isto não é arte dramática! O erro de todos esses homens é não acreditarem o suficientemente no teatro. Se não fosse isso, saberiam que a qualquer homem é permitido representar as tragédias celestes e tornar-se deus. Basta endurecer o coração.
… Um homem honrado é um animal tão raro neste mundo, que a minha vista não o pode suportar durante muito tempo. Preciso de ficar só para saborear este grande momento.

Cherea
Tens alguma coisa de particular a dizer-me?

Calígula
Não. Cherea.
… Tenho necessidade de falar com alguém que seja inteligente.
… Cherea, acreditas que dois homens cuja alma e cuja altivez sejam iguais possam, ao menos uma vez na vida, abrir o coração e falar, como se estivessem nus, um diante do outro, despojados dos preconceitos, dos interesses particulares e das mentiras em que vivem?

Cherea
Penso que é possível, Caius. Mas julgo-te incapaz de o fazer.

Calígula
Tens razão. Só queria saber se pensavas como eu. Cubramo-nos então de máscaras. Utilizemos as nossas mentiras. Falemos como quem se bate, sempre em guarda. Porque é que não gostas de mim. Cherea?

Cherea
Porque em ti não há nada de que se possa gostar. Porque estas coisas não se controlam. E também, porque te compreendo o bastante para não te amar, e porque se não pode gostar, noutrem, daquilo que recalcamos em nós.

Calígula
Porquê odiares-me?

Cherea
Nisso, enganas-te Caius. Não te odeio. Apenas te julgo prejudicial e cruel, egoísta e vaidoso. Mas não te posso odiar, porque sei que és infeliz. E não te posso desprezar, porque sei que não és cobarde.

Calígula
Tu és inteligente, e a inteligência, ou se paga ou se nega. Eu pago. Mas tu, porque não queres negá-la, nem pagá-la?

Cherea
Porque tenho desejo de viver e de ser feliz. Creio que não se pode ter, indo até ao fim do absurdo, nem uma coisa nem outra. Sou como toda a gente. Para me sentir livre. Acontece que, às vezes, desejo a morte daqueles que amo, e convido mulheres que as leis da família ou da amizade me impediam de convidar. Para ser lógico, teria mesmo de matar ou de possuir. Mas penso que estas ideias vagas não têm importância. Se toda a gente se metesse a realizá-las, não poderíamos viver nem ser felizes. E insisto, é isso o que me importa.

Calígula
É preciso, então, que acredites em alguma ideia superior.

Cherea
Acredito que há acções belas e outras que o não são.
(…)

Velho Patrício
Não te importas de deixar de fazer filosofia? Horroriza-me.

Cherea
Reconheçamos, ao menos, que este homem exerce uma inegável influência. Obriga a pensar. Obriga toda a gente a pensar. A insegurança, eis o que o faz pensar. E é por isso que tantos ódios o perseguem.

Calígula
Então é porque há duas espécies de felicidade, e eu escolhi a dos assassinos. Porque sou feliz. Houve um tempo em que pensei atingir o limite da dor: pode-se ir mais longe ainda! (…)
… Mas o seu verdadeiro sofrimento não é tão fútil: é perceber que nem sequer o desgosto dura! Até a dor não faz sentido. (…)
… Sei que nada dura! Oh! Saber isto! Fomos só dois ou três, na história, que tivemos a verdadeira experiência disto, que pudemos atingir esta felicidade demente. (…)
… Vivo, mato, exerço o poder delirante do destruidor, ao pé do qual o do criador parece uma macaquice.
… enfim, a solidão eterna do desejo.


in: Calígula seguido de o Equívoco, de Albert Camus, Editora Livros do Brasil, Lisboa, 2002

04 junho 2016

Albert Camus | O Estrangeiro



Mas, pensando bem, nada tinha a dizer. Devo reconhecer, aliás, que o interesse que se tem em ouvir as pessoas não dura muito tempo.
(…)
Não me arrependia muito do que tinha feito. (…) Gostaria de lhe poder explicar cordialmente, quase com afeição, que nunca me arrependia verdadeiramente de nada.
(…)
Punha-me a escutar o coração. Não era capaz de imaginar que este barulho compassado, que me acompanhava há tanto tempo, podia um dia cessar. Nunca tive verdadeira imaginação.


in: O Estrangeiro, de Albert Camus, Livros do Brasil, 2016, p. 71, 72 e 81.

03 maio 2016

Tipografia | Eric Gill


Por outro lado, os que usam métodos humanos poderão atingir a perfeição mecânica, porque as escravaturas e as uniformizações do industrialismo são incompatíveis com a natureza dos homens.
A Tipografia Humana será, com frequência, comparativamente imperfeita & mesmo deselegante; mas, enquanto que uma certa deselegância não tem grande importância nas obras humanas, a deselegância não tem desculpa possível nas coisas produzidas pela máquina.
Assim, enquanto que na sociedade industrialista é, tecnicamente, fácil imprimir qualquer espécie de coisa, numa sociedade humana apenas é fácil imprimir uma espécie de coisa, mas há amplo espaço para a variedade e a experimentação no trabalho em si.
Quanto mais elaborado e fantasiado for o artigo industrial, mais repugnante se torna - a elaboração e a fantasia são indesculpáveis nestas coisas. Mas há todas as justificações para a elaboração e a fantasia nas obras dos seres humanos, desde que eles trabalhem e vivam de acordo com a razão; é educativo notar que, nos primórdios da impressão, quando a exuberância humana tinha amplo espaço, a impressão se caracteriza pela simplicidade e pela decência; mas que agora, quando tal exuberância já não existe no trabalhador (excepto quando está no trabalho), a impressão caracteriza-se por toda a espécie de exibicionismo grosseiro e por uma complexa indecência.
Mas, ai da humanidade, pois existe uma coisa chamada compromisso …

in: Ensaio sobre a Tipografia, de Eric Gill, Almedina, Coimbra, p. 97 e 98.

12 abril 2016

O Espelho de Vénus | Pintura


Vénus | Antiga deusa romana da vegetação e dos jardins, foi identificada com a Afrodite grega. Deste modo, na sua qualidade de mãe do herói Eneias, o fundador mítico do povo romano, foi considerada a antepassada da gens iulia (que se dizia descendente de Eneias) e a protectora da cidade de Roma.

in: O Espelho de Vénus, de Edward Burne-Jones (1833 - 1898), (Óleo sobre tela), 1895
in: Vénus, Dicionário Cultural da Mitologia Greco-Romana, Pub. Dom Quixote, p. 245.

07 abril 2016

Dignidade Perdida | Nietzsche


6 - Dignidade Perdida - A reflexão perdeu toda a sua dignidade da forma; ridicularizou-se o cerimonial e a atitude solene daquele que reflecte; e já não se poderia continuar a tolerar um homem sábio da velha escola.
Pensamos demasiado depressa, e pelo caminho, em plena marcha, no meio de negócios de toda a espécie, mesmo quando se trate do que há de mais sério; temos necessidade de pouca preparação, e até de pouca tranquilidade: é como se tivéssemos na cabeça uma máquina que girasse incessantemente e que progredisse o seu trabalho, mesmo nas piores condições.
Antigamente, quando alguém se queria pôr a pensar - era uma coisa provavelmente excepcional! - era coisa que se notava de imediato; notava-se que queria tornar-se mais sábio e que se preparava para uma ideia: seu rosto ganhava uma expressão como em oração e detinha-se na sua marcha; ficava até mesmo imóvel durante horas na rua, apoiado em uma perna ou nas duas, quando a ideia lhe 'surgia'. Perdia, então, a 'dignidade da coisa'.

in: A Ciência Gaia, de Friedrich Nietzsche, p. 41.

29 março 2016

O Solitário | Nietzsche


Odeio seguir alguém, como também conduzir.
Obedecer? Não! E governar, nunca!
Quem não se mete medo não consegue metê-lo a
ninguém,
Somente aquele que o inspira é capaz de comandar.
Já detesto comandar a mim mesmo!
Gosto, como os animais, das florestas e dos mares,
De me perder durante um tempo,
Permanecer a sonhar num recanto encantador,
E forçar-me a regressar de longe ao meu lar,
Atrair-me a mim próprio… de volta a mim.

in: Poema 33. O Solitário, de Friedrich Nietzsche, in: A Gaia Ciência, Martin Claret, 2013, p. 27.

17 março 2016

3 + 18 = 21 | Exposição

   

É com muito orgulho que apresento a minha Exposição na ESTG de Portalegre!
A criação de uma obra de arte a partir de uma linha de pensamento.
Uma linha que desenha paisagens, caminhos, viagens, sonhos…
Três (3) anos de viagens enquanto estudante, mais (+) dezoito (18) anos de viagens enquanto docente de ensino superior, igual (=) a vinte e um (21) anos de viagens, de estudos, leccionação, aprendizagem, partilha de conhecimento, aquisição de sabedoria.

in: 3 + 18 = 21, de Ana Paula Gaspar, ESTG de Portalegre, 14.Março - 14.Abril . 2016

04 março 2016

Musas Inspiradoras | Calíope



A minha musa seria Calíope, figura grega mítica e musa da poesia, ciência e eloquência, muitas vezes retratada com um papiro. Achei que seria interessante juntar esses dois elementos - o da figura da musa e o do papel como material onde o acto criativo se regista.

in: Calíope, de Daniela Krtsch

O que significa ter inspiração? De onde vem? Como a manter?
A inspiração tem sofrido várias nuances temporais, com uma constante: uma certa forma de linha directa com o divino. Para a história que nos importa contar e partindo da matriz grega, as musas de belas vozes parecem ter surgido no cenário em torno de Hesíodo. Era ele um jovem pastor quando algumas dessas figuras (em número incerto mas em inspiração certa, dirigida à música, dança e poesia) o instaram à criação. (…)
Para os mais distraídos, o mesmo é repetir a célebre máxima reclamada por diversos autores, de que 90% da inspiração é transpiração. Ou seja, que a inspiração não é, por regra fruto do acaso e de fortuitas epifanias, mas de trabalho contínuo, tempo, da capacidade de relacionar o conhecimento (outro nome para a memória) e da determinação em procurar caminhos inexplorados.

in: Musas Inspiradoras, de Emília Ferreira, Casa da Cerca, Almada, Fevereiro de 2016

26 fevereiro 2016

A minha infância …

Lembro-me do cheiro da terra molhada
Quando chovia…
As primeiras chuvas de outono
O fim do verão…

Lembro-me da quinta…
Lembro-me de semear o feijão, um grão de cada vez, com um palmo de intervalo entre cada um…
Lembro-me de ajudar o meu pai e a minha mãe,
Ao fim de semana dedicavam-se a semear a terra,
Eram feijões, batatas, milho, hortaliças…
A terra era preparada, anteriormente era lavrada, e os regos eram feitos com enxada e eram todos certinhos e alinhados horizontalmente e verticalmente, como uma grelha…

Lembro-me de ter energia,
Lembro-me das oliveiras… de as trepar!
Recordo os momentos em que ajudava a preparar o almoço…
Descascar as batatas, cortar os grelos de nabiça, cozer o bacalhau e temperar tudo com azeite, das nossas oliveiras…

No verão…
Lembro as borboletas a voar de flor em flor,
As flores, tantas e tão variadas…
As suas cores, os cheiros, o céu azul…
O rio, a água transparente, um mergulho livre…

As lagartixas, as rãs e a fonte, uma nascente com água gelada e doce…
As caminhadas pela mata…
Andar de bicicleta, sozinha pela floresta de pinheiros…
Parar, respirar fundo e continuar!

Que saudades de ser feliz!
Que liberdade…
A simplicidade de estar…
Desfrutar simplesmente da natureza!

E no outono, nasciam os cogumelos…
E o prato delicioso da minha avó:
Cebola, azeite, cogumelos, batata e um ovo por cima!
Que cheirinho…

A maravilha da nossa terra…
O milagre da transformação através das estações do ano…
O tempo, a passagem do tempo…
Esse tempo que já não volta!

in: Diário, de Ana Paula de J. L. Gaspar, 7 de junho de 2014.

03 fevereiro 2016

Ovídeo | Arte de Amar

Livro III

Às Mulheres

Armas, eu as forneci aos Dánaos contra as Amazonas; armas me restam, ainda,
para te fornecer a ti, ó Pentesileia, e à tua gente.
Parti para a batalha em igualdade de condições; que vença quem a mãe Dione
favorecer, e o menino que voa sobre o mundo inteiro.
Não seria justo que enfrentásseis, despidas de armas, inimigos armados;
se assim fosse, também para vós a vitória seria uma vergonha, ó varões.

Uma Arte de Amar para as Mulheres

(…)
A mulher não desvia as chamas e as implacáveis flechas;
esses dardos, vejo eu que mais raramente são danosos aos homens.
Muitas vezes traem os homens; não tantas vezes as mulheres delicadas;
e, se procurares, poucos são os crimes de engano que nelas se encontram.
(…)
Qual foi a vossa perdição, eu vos direi: não soubeste amar;
faltou-vos arte; é a arte que faz perdurar o amor.
(…)
e disse-me, então: "que fizeram as pobres mulheres?
São um povo sem armas entregues a homens armados;
a eles, dois livros os tornaram peritos na arte;
também este grupo os teus preceitos têm de ensiná-lo.

Aproveitar a Juventude

Tende desde já na lembrança que a velhice há-de chegar;
e não deixeis, por isso, esvair-se tempo na ociosidade;
enquanto vos for consentido e conservardes, ainda, a idade da Primavera,
gozai; vão-se os anos, do mesmo modo que a água corrente;
nem a onda que passou voltará de novo a ser chamada,
nem a hora que passou logra tornar atrás.
(…)
Tempo há-de vir em que tu, que agora enjeitas os amantes,
hás-de dormir, enregelada e velha, na solidão da noite,
e não há-de a tua janela ser quebrada por briga nocturna,
nem vais encontrar, pela manhã, rosas espalhadas à tua porta.
Bem depressa, pobre de mim!, o corpo amolece de rugas,
e desaparece, no rosto que era luzidio, a cor,
e os cabelos brancos que juras que tinhas já em rapariga,
de súbito se espalham por toda a cabeça.
(…)

Cuidar da Beleza

(…)
A beleza é um dom dos deuses; da sua beleza, quão poucas se podem orgulhar!
Grande parte de vós não possui um tal dom.
(…)

A Poesia

Conhece a musa de Calímaco, conhece a do Poeta de Cós,
conhece, ainda, a do ancião de Teos, afeiçoado ao vinho;
conhece, também, Safo (pois que é que existe mais lascivo do que ela?)
e aquele que põe um pai a ridículo, vítima dos ardis do manhoso geta.
(…)

Homens a Evitar

Mas evitai os homens preocupados com a elegância e a beleza
e que têm o cabelo bem penteado;
o que vos dizem a vós, disseram-no já a mil mulheres;
vai deambulando e não se fixa em sítio algum e seu amor.
(…)
Há os que avançam a coberto de uma espécie enganosa de amor
e, por tais caminhos, são ganhos indecentes que buscam.
(…)
Talvez o mais elegante de entre todos eles
seja um ladrão e esteja a arder por amor do que trazes vestido.
"Devolve o que é meu!", gritam, muitas vezes, depois de roubadas, as mulheres,
(…)
Aprendei com as desgraças das outras a temer as vossas;
não se abra a vossa porta a um homem falso.

Amores Furtivos

(…)
Atenta nas palavras que lês; das próprias palavras terás de depreender
se está a fingir ou se as súplicas vêm do fundo do coração e da ansiedade;
depois de fazeres esperar um pouco, responde. A espera estimula sempre
os amantes, se for por tempo razoável.
Mas nem te entregues facilmente ao jovem que te namora
nem negues, de coração endurecido, o que ele te pede.
Faz com que alimente, à uma, temor e esperança; e, sempre que responderes,
mais firme se lhe torne a esperança e menos intenso o medo.
Palavras elegantes, mas usuais no convívio social, ó mulheres,
é o que deveis escrever! O ar vulgar da conversa dá gosto.
Ah, quantas vezes se inflamou diante de uma mensagem um amante inseguro!
Quantas vezes foi danosa uma língua bárbara a uma grande beleza!
(…)
Que se diga sempre ser mulher o amante a quem se escreve;
seja uma "ela", em vossas mensagens, o que devia ser um "ele".

Cultivar a Doçura

(…)
Olha quem te olha; a quem te sorri com doçura, sorri;
Faz-te um aceno? Responde, também tu, que percebeste o sinal.

Amar os Poetas

Quem nos impede de colher de temas elevados exemplos para coisas
banais e de não ter receio da palavra "chefe"?
Um bom chefe confia a um cem soldados, para com o bastão de vide os comandar,
a outro cavaleiros, a um terceiro entrega-lhe a guarda dos estandartes;
também vós, observai para que função cada um de nós é mais conforme
e ponde cada um no posto adequado:
o rico debe dar presentes; aquele que for versado em leis dê o seu apoio;
o que tem o dom da palavra que defenda, muitas vezes, a causa da sua cliente;
nós, que fazemos versos, devemos limitar-nos a enviar versos;
somos nós, mais que todos os outros, o tal coro capaz para o amor;
nós fazemos ouvir longe o pregão da beleza que nos encanta;
é famosa Némesis, Cíntia é famosa;
a estrela da tarde e os confins do Oriente conhecem Lícoris,
e muitos perguntam quem é a minha Corina;
acresce que não existe perfídia entre os divinos poetas,
e que a nossa arte nos molda, também, à sua feição;
e não nos move a ambição nem o amor da riqueza,
desprezamos o foro e cultivamos o leito e as sombras;
mas facilmente nos apegamos e deixamos-nos consumir num fogo abrasador
e sabemos amar com lealdade inquebrável.
(…)
existe um deus em nós e mantemos diálogo com o céu;
é das planuras do céu que nos vem a inspiração.

A Cada idade seu Encanto

(…)
O velho soldado ama sem dor e com sabedoria
e suporta muitas coisas que o recruta não consegue padecer;
e não rebenta com as portas nem lhes deita fogo com chamas terríveis,
nem se atira com as unhas ao rosto delicado da sua dama,
nem rasgará a sua túnica ou a túnica da amada,
nem fará de um cabelo arrancado causa de pranto.
Tais atitudes ficam bem a rapazinhos, no calor da idade e do amor;
aquele suportará cruéis feridas, de coração robustecido;
é em fogo lento, caramba!, que há-de arder, como feno húmido,
como a madeira acabada de cortar nos bosques da montanha.
(…)

Rivais: Não dar Ouvidos a Boatos

Aonde me leva a minha loucura? Porque avanço, de peito aberto,
contra o inimigo e me denuncio com os sinais que eu mesma forneço?
Não revela o pássaro ao caçador como pode ser caçado,
nem ensina o veado os cães assanhados a persegui-lo.
A vantagem ficará desvendada; eu, aquilo que comecei, fielmente o hei-de consumar
e às mulheres de Lemnos hei-de dar armas para me matarem.
Fazei (é fácil consegui-lo) que nós acreditemos no vosso amor;
para quem está apaixonado, a crença vem ao encontro do desejo.
(…)

in: Arte de Amar, de Ovídeo, Livros Cotovia, Lisboa, 2006

02 fevereiro 2016

Ovídio | Arte de Amar

Livro II

Introdução. 
Conservar o Amor

(…)
Não baste que a mulher venha até junto de ti, graças ao meu canto;
foi a minha arte que a cativou, é a minha arte que tem de preservá-la;
conservar o que se alcançou não é virtude menor do que bus.cá-lo;
aqui interfere o acaso, ali é a obra de arte.
Agora, mais que nunca, ó menino, ó Citereia, favorecei a minha empresa,
agora, ó Érato, já que tens nome de Amor.
Grandioso é o que me apresto a cantar: por que artes consegue segurar-se
o Amor, um menino tão vagabundo na vastidão do universo.
ligeiro é ele e possui um par de asas, com que voa;
bem difícil é pôr-lhes travão.
(…)

Amabilidade e Elegância

Guarda-te de tudo quanto é vedado! Para seres amado, sê amável,
coisa que te não darão apenas o rosto ou a beleza.
Ainda que sejas Nireu, a quem o velho Homero amava,
ou o delicado Hilas, arrebatado pelo crime das Náiades,
para conservares a tua amada e não teres a surpresa de ser por ela abandonado,
junta os bens do espírito às qualidades do corpo.
A beleza é um bem frágil; à medida que vão avançando os anos,
vai diminuindo e, por força da idade, vai murchando;
não ficam todo o tempo em flor as violetas nem os lírios de pétalas abertas,
e a roseira, depois de cair a flor, enrijece de espinhos, que é o que lhe resta.
Também a ti, ó jovem esbelto, te hão-de chegar os cabelos brancos,
e logo virão as rugas a sulcar-te o corpo.
Suaviza já o teu espírito, por forma a perdurar, e ajunta isso à tua beleza;
só ele logra permanecer até às preces derradeiras;
e não tenhas em menos conta educar o carácter por meio das boas artes
e aprender as duas línguas;
não era belo, mas era eloquente Ulisses,
e, no entanto, atormentou de amores deusas do mar.
(…)

Doçura e Bondade

A rectidão e a bondade, eis o que, em especial, cativa os corações;
a aspereza suscita o ódio e guerras cruéis.
(…)
É de doces palavras que tem de sustentar-se a brandura do amor.
(…)
Que a amante, pelo contrário, ouça sempre as palavras que deseja.
Não foi por mando de uma lei que viestes parar ao mesmo leito;
quem cumpre a sua função em vós é a lei do amor.
Doces meiguices e palavras aprazíveis ao ouvido
é o que tens de trazer-lhe, para ela ficar feliz com a tua vinda.
Não é aos ricos que venho ensinar a amar;
não tem qualquer precisão da minha arte aquele que é mãos largas;
já tem consigo o seu talento aquele que diz, sempre que lhe apetece: "aceita";
a esse cedo; agrada mais ele que os meus ensinamentos.
Eu sou o poeta dos pobres, pois foi pobre que amei;
já que não podia ofertar presentes, oferecia palavras;
que o pobre âme com recato, que receie ser maldizente o pobre
e suporte muitas coisas que não seriam capazes de tolerar os ricos.

Persistência

Se não for meiga quanto baste nem corresponder ao teu amor,
porfia e persiste. Acabará por tornar-se carinhosa.
Dobra-se, quando vergado com jeito, o ramo da árvore;
vais parti-lo, se puseres à prova a tua força;
com jeito, a nado se passam as águas; mas não serás capaz de vencer
o rio, se nadares contra a corrente que com as águas se arrasta;
o jeito doma os tigres e os leões da Numídia;
no campo, o boi acaba por subjugar-se, pouco a pouco, ao peso do arado.
(…)

Ceder e Servir

Cede quando ela teima; se cederes, sairás vencedor;
trata, apenas, de agir, como ela determinar.
Se ela contestar, contesta; o que aprovar, aprova-o;
o que afirmar, afirma-o; o que negar, deves negá-lo;
se rir, ri-te; se chorar, lembra-te tu de chorar;
seja ela a ditar as leis às tuas feições.

Robustez e Vigor 

O amor é uma espécie de serviço militar. Batei em retirada, gente indolente!
Tais estandartes não são para ser confiados a homens medrosos.
A noite e o Inverno e jornadas sem fim e dores terríveis
e toda a sorte de padecimentos, eis o que nos espera nos campos de doçura;
muitas vezes terás de suportar a chuva que cai das nuvens do céu
e muitas vezes vais dormir, enregelado, sobre a terra nua.
(…)

Prendas

(…)
ah, malditos sejam aqueles que com presentes enganam!

 Gerir a Ausência e a Saudade

Mas o vento a que soltaste as velas ao deixares a praia,
dele não deves servir-te, agora, depois de te tornares senhor do alto mar.
Enquanto dá passos incertos o novo amor, deve buscar no uso as suas forças;
se bem o souberes alimentar, com o tempo ficará firme.
O touro que te mete medo, costumavas tu, quando era vitelo, fazer-lhe festas;
a árvore à sombra da qual agora repousas, foi, antes, um arbusto;
nasce bem delgado, mas ganha forças, à medida que avança,
o rio e, por onde passa, uma imensidão de correntes vai recebendo.
Faz com que se acostume a ti; nada tem mais força que a habituação;
até a alcançares, não fujas a nenhum dissabor;
que te veja a todo o tempo, que a todo o tempo te escute,
que a noite e o dia lhe mostrem o teu rosto.
(…)

Amar com sabedoria

Aquele a quem a natureza concedeu beleza, seja graças a ela que dê nas vistas;
aquele que possui uma pele formosa durma muitas vezes de ombros à mostra;
o que tem uma conversa agradável evite os silêncios taciturnos;
o que canta com elegância, que cante; o que bebe com elegância, que beba.
(…)
Todo o que amar com sabedoria triunfará e quanto reclamar de minha arte, vai consegui-lo.

in: Arte de Amar, de Ovídio, Livros Cotovia, Lisboa, 2006

22 janeiro 2016

Ovídio | Arte de Amar

Livro I

O mestre do Amor

Se alguém das nossas gentes não conhece a arte de amar,
leia este canto; e, depois de o ter lido, entregue-se, com sabedoria, ao amor.
É a arte e as velas e os remos que fazem mover as naus,
é a arte que faz mover, ligeira, a quadriga. É a arte que deve reger o Amor.
(…)

Plano

Antes de mais, o que quiseres amar, trata de procurá-lo,
tu que acabas de entrar, feito soldado, em novo exército;
logo depois, hás-de empenhar-te em fazer ceder aquela que te agradou;
em terceiro lugar, farás por que dure tempo o amor.
(…)

A Procura

Enquanto te for consentido e puderes, solto de amarras, caminhar por toda a parte,
escolhe aquela a quem hás-de dizer: "só tu me agradas!"
(…)

O Banquete

Facilitam, também, a aproximação os banquetes, à mesa;
há qualquer coisa além do vinho, que aí deves buscar.
(…)

A mulher e o Desejo

Antes de mais, tem confiança no teu coração de que todas podem ser conquistadas; e vais conquistá-las; basta que estendas as redes.
Mais depressa, na Primavera, se hão-de calar os pardais, e, no Verão, as cigarras,
e o cão de Ménalo voltará costas à lebre
do que resistirá a mulher ao jovem que com doçura a quer namorar.
Até mesmo aquela que podes supor que não quer… quer.
Tal como Vénus furtiva é grata ao homem, assim o é também à mulher;
o homem disfarça mal; ela é com mais recato que alimenta o desejo.
Se a nós, homens, nos der mais jeito não sermos os primeiros a pedir,
logo a mulher, vencida, há-de assumir o papel de quem pede.
Na mansidão do prado, é a fêmea que solta mugidos ao touro,
é a fêmea sempre que relincha ao cavalo de rijos cascos.
(…)

A Paixão Feminina

Todos estes actos foram movidos por paixão de mulheres;
é mais intensa que a nossa e possui fúria bem maior.
(…)

A Arte da Palavra

Aprende as boas artes, esse é o meu conselho, ó juventude de Roma,
e não apenas para defender réus temerosos;
tal como o povo e o juiz severo e os eleitos do senado,
assim também a mulher, vencida, há-de render as mãos à tua eloquência. (…)
Se te ler e não quiser responder, não a forces;
procura, apenas, que leia as tuas palavras delicadas até ao fim;
Se quiser ler, há-de querer responder ao que leu;
a resposta chega com seu ritmo e seu passo;
talvez te chegue, primeiro, uma carta triste,
a pedir-te que não mais a procures;
se pede, é porque receia que não aconteça; se não pede, deseja que insistas.
Prossegue! Bem cedo verás realizado o teu desejo.

in: Arte de Amar, de Ovídio, Livros Cotovia, Lisboa, 2006