Aguarelas Finas, Le Corbusier | Maison La Roche, Paris

21 setembro 2018

Memórias de Adriano | Marguerite Yourcenar

A renúncia ao cavalo é um sacrifício ainda mais custoso: uma fera não passa de um adversário, mas um cavalo era um amigo.
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Não desprezo os homens. (…) Sei que são vãos, ignorantes, ávidos, inquietos, capazes de quase tudo para triunfar, para se fazer valer, mesmo aos seus próprios olhos, ou simplesmente para evitar o sofrimento. (…) O nosso grande erro é querer encontrar em cada um, em especial, as virtudes que eles não têm e desinteressarmo-nos de cultivar as que ele possui.
A natureza é opressora, dominadora, intensamente manipuladora.
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Mas uma técnica: queria encontrar a charneira em que a nossa vontade se articula ao destino, onde a disciplina secunda a natureza em vez de a refrear.
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Tinha ido passar alguns meses à Grécia. A política, pelo menos na aparência, não influi em nada nessa viagem. Foi uma excursão de prazer e de estudo: trouxe de lá algumas taças gravadas e livros que dividi com Plotina.
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Ia fazer quarenta anos. Se sucumbice nessa altura não restaria de mim mais que um nome numa série de grandes funcionários e uma inscrição grega em honra do arconte de Atenas. (…) Compreendi que poucos homens se realizam antes de morrer: considerei com mais piedade os seus trabalhos interrompidos.
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Antes que passassem dez dias fui acordado em plena noite pela chegada de um mensageiro: reconheci imediatamente um homem de confiança de Plotina. Trazia-me duas missivas. Uma, oficial, comunicava-me que Trajano, incapaz de suportar o movimento do mar, tinha … uma segunda carta, esta secreta, anunciava-me a sua morte, que Plotina me prometia ocultar durante o máximo tempo possível, dando-me assim a vantagem de ser a primeira pessoa prevenida. Parti imediatamente para Selinunte.
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À noite enormes mosquitos zumbiam em volta das luzes. Tentei demonstrar aos Gregos que não eram sempre eles os mais sábios e aos Judeus que não eram de modo algum os mais puros.
A Paz era o meu fim. (…) É tudo tão complicado nas questões humanas.
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Sou como os nossos escultores: o humano satisfaz-me; nele encontro tudo, até o eterno.
Os meus escultores desorientam-se um pouco com as minhas ideias; os piores caíam aqui e ali na languidez ou na ênfase; todavia, todos participavam mais ou menos no sonho.
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Toda a miséria, toda a brutalidade deviam ser interditas como insultos ao belo corpo da humanidade.
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Em vez de voltar para Roma, decidi consagrar alguns anos às províncias gregas e orientais do império: Atenas tornava-se cada vez mais a minha pátria, o meu centro. Empenhava-me em agradar aos Gregos e também em helenizar-me o mais possível …
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Num mundo onde tudo não é mais que turbilhão de forças, danças de átomos, onde tudo está ao mesmo tempo em cima e em baixo, na periferia e no centro, concebia mal a existência de um globo imóvel, de um ponto fixo que não fosse simultaneamente móvel. Outras vezes, os cálculos da precessão dos equinócios, estabelecidos outrora por Hiparco de Alexandria.
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Deitado de costas, com os olhos bem abertos, abandonando por algumas horas todos os cuidados humanos, entreguei-me, do anoitecer à madrugada, àquele mundo de chama e de cristal. Foi a mais bela das minhas viagens. O grande astro da constelação da Lira, estrela polar dos homens que hão de viver dezenas de milhares de anos depois de nós termos deixado de existir, resplandecia por cima da minha cabeça. (…)

in: Memórias de Adriano, de Marguerite Yourcenar, Livros RTP, Lisboa, 2017