Aguarelas Finas, Le Corbusier | Maison La Roche, Paris

13 abril 2024

Istambul | Bettany Hughes

Alguns destes habitantes de Istambul da Idade da Pedra andaram descalços, outros usaram sapatos de couro delicadamente produzidos, talvez até tamancos de madeira, idênticos aos utilizados nos hamames da atual cidade. (…)

Quando passamos tempo na companhia de Istambul, urge ter em mente que esta é uma história de uma cidade e também uma história do mar. (…)

As águas fazem história e escondem-na. Assim, os primeiros habitantes de Istambul, os nativos, dão o seu testemunho de forma tácita; a sua história tem de ser retirada da terra e das águas escuras do Bósforo. A população helénica imigrante de Istambul é que apregoa a sua presença. Os gregos, que inventaram a noção de história e que, por conseguinte, ambicionavam aí inscrever-se, afiançavam que a antiga colónia de Bizâncio lhe pertenceu (…) dizem-nos que estes gregos primeros nos foram, de facto, os pioneiros da tecnologia do velejar. De forma única, terão sido capazes de cartografar as suas rotas não só nas costas do Mediterrâneo, mas também em águas profundas. (Cerca de 1615 a. C.) (…)

Uma das «safiras» azuis entre as quais se diz que Istambul se localiza «como um «diamante» era o Bósforo. O Bósforo não é apenas uma exigente fronteira psicológica; também é complicado do ponto de vista físico. Aqui, a mescla entre a água salgada e a água doce, rodopia e redemoinha. Formas macias como o cetim moldam a superfície da água, um padrão mesmérico que esconde marés ferozes. O fluxo do canal ao longo da extensão de 35 quilómetros muda nove vezes entre o Mar Negro e o mar de Mármara. Um rio submerso recém-descoberto, um canal sub-marino, no leito do estreito propriamente dito, ajuda a explicar a natureza instável. Água e sedimentos a correr pelo maciço canal submerso gerado pela enchente  do Mar Negro enroscando-se na direção oposta do curso de água geral. (…)

Alcibíades abriu uma brecha no mundo clássico, tal como o fez na História. Companheiro do filósofo Sócrates no exército, seu futuro amante, era tudo aquilo que o pensador ateniense não era. Débil, obcecado  por sexo, desmedido, resplandecente, elegante, ordinário, Alcibíades seria descrito por autores antigos como «o adorado tirano de Atenas». Aristófanes escreveu que o povo de Atenas «se consome por ele, o odeia, mas anseia pelo seu regresso». Era irritantemente irresistível, e impossível de ignorar, pavoneando-se pela cidade de Atenas com um manto de cor púrpura, apesar de essas exibições pouco democráticas não serem vistas com bons olhos, recusando-se a tocar aulos (semelhante ao oboé), porque faziam com que a sua boca se enrugasse de uma forma pouco atraente, dando-se à bebida logo de manhã cedo e, segundo o poeta cómico Eupólide, iniciando-se a tendência de urinar (…) Alcibíades - egocêntrico, ceceoso, com os seus longos cabelos - parece ter estado no seu elemento ao fazer de Bizâncio e das cercanias o seu palco predilecto, não tardando a ser visto a calcorrear as águas entre a Ásia e a Europa. (…)

Estimulada pelo desejo de mercadorias de terras distantes que elevassem o estatuto, o comércio internacional garantiria o caráter, o estatuto e o prestígio de Bizâncio. Uma cidade que ligara o Extremo Oriente a um Oeste selvagem. Tornar-se-ia uma cidade pela qual valia a pena lutar e merecia ser protegida. Em vez de ser apenas uma recompensa militar bem localizada, graças à sua posição no extremo de continentes, as pessoas queriam estar ali por motivos emocionais e, em termos económicos, concretizaria o seu maciço potencial. Contudo, primeiro, Bizâncio tinha de granjear a sua reputação como uma cidade de essência, prazer e pecado. (…)

Em 73 d.C. Vespasiano incorporou formalmente Bizâncio como província do Império Romano, e depois fundou uma casa da moeda na sua antiga acrópole. Os engenheiros de Adriano também puseram as mãos à obra, dando início a um aqueduto algum tempo depois de 117 d. C. (…) abrindo uma nascente na floresta de Belgrado para abastecer a baixa da cidade. (…) Agora, oitocentos anos depois da fundação grega, Bizâncio começava a ter os sons, os sabores e os cheiros das outras cidades romanas (…) 

Enquanto isso, Cibele teria sido venerada nos seus santuários de pedra, Hécate nas muralhas da cidade e Dionísio louvado nos portos da cidade. No mosaico de credos religiosos que foi o Império Romano, o Cristianismo era, no século III d.C., ainda uma de muitas seitas que procuravam o seu lugar, conforme é ilustrado por uma carta eloquente enviada ao imperador Marco Aurélio. Escrita em 176 d.C por um Cristão chamado Atenágoras, a súplica da carta para que os romanos deixem de perseguir os cristãos. (…)

Assim que Constantino deixou claro que o cristianismo seria tolerado no seu império, não tardou a construir-se uma igreja no interior do próprio anfiteatro, e os cristãos passaram a ser ali enterrados depois das suas mortes naturais, onde outrora tinham sido massacrados para diversão de terceiros. (…)

De repente, aquelas luzes de Constantino criaram outras imagens: não mais Leda, mãe espartana de Helena de Tróia, seria raptada por Zeus transmutado em cisne, nem Eros esvoaçaria a disparar as suas dolorosas flechas, mas uma série de peixes e cruzes - que surgiriam às dezenas nas escavações na insigne Istambul. (…)

Constava que um anjo velara pela reconstrução de Hagia Sofia e que a sua estrutura era abençoada, porque  Justino utilizara madeira da Arca de Noé no seu interior. Originalmente edificada na antiga acrópole grega por Constantino, O Grande, depois reconstruída por Teodósio, incendiada, reutilizada por Justiniano e construída de novo após destruição causada pelos motins, a cúpula distintiva desta Igreja da Santa Sabedoria (com 55 metros de altura) parecia estar suspensa nos céus por uma corrente dourada. Durante mais de um milénio, Hagia Sofia seria o maior edifício religioso do mundo. (…)

Os banhos de Zeuxipo e o Grande Palácio foram restaurados, e os sistemas de abastecimento de água renovados. (…) Istambul localiza-se sobre uma série de falhas geológicas. (…)

Quem subisse o Bósforo de barco desde o Mar de Mármara há quinhentos anos, conseguiria distinguir duas cidades diferentes, a Istambul muçulmana a assomar na costa ocidental, e o distrito infiel, a terra dos Gavur ou Giaour (não muçulmana), em frente, na costa ocidental do Corno de Ouro. Enquanto a própria Istambul se tornou mais verdejante, a terra dos Giaour ficou cada vez mais apinhada de armazéns e casas em cima umas das outras. (…)

Em 2006, as autoridades de Istambul plantaram três milhões de bolbos de tulipas à volta da cidade. (…)

A caligrafia podia ser feita em pergaminho, papel ou até em delicadas folhas caídas. Estes requintados escritos também começaram a ser apreciados no ocidente. (…)

Durante pelo menos vinte e cinco séculos, Istambul tem sido uma cidade que muitos desejam e precisam. Oriente e Ocidente continuam a querer impressionar a corte da Turquia. Desde a sua fundação grega - como Bizâncio, depois como Constantinopla cristã e, por fim, sob o califado de Islambol - que Istambul foi buscar forças à convicção de ser uma cidade protegida pela graça divina. Hagia Sofia, que já foi igreja e mesquita, erigida sobre um santuário pagão, sustentada pela fé, pelo tempo e pelo esforço humano, cujas curvas há muito são eco das sete colinas de Istambul. (…) 

Istambul não é onde o Oriente se encontra com o Ocidente, mas onde o Oriente e o Ocidente se entreolham com atenção e nostalgia, por vezes ofendidos com aquilo que veem, mas interessados em saber que partilham sonhos, história e sangue. (…) 


in: Istambul, a História de Três Cidades, de Bettany Hughes, Planeta Livros Portugal - Crítica, Nov. 2023

19 março 2024

A Vida Nova | Orhan Pamuk

Um dia li um livro e toda a minha vida mudou. 

Desde a primeira página, sofri com tanta força o poder do livro que senti o meu corpo apartado da cadeira e da mesa a que me sentava. No entanto, ao mesmo tempo que experimentava a sensação de que o meu corpo se afastava de mim, todo o meu ser continuava, mais do que nunca, sentado na cadeira, à mesa, e o livro manifestava todo o seu poder não só na minha alma, mas em tudo o que compunha a minha identidade. Era uma influência tão forte que me parecia que a luz emanada das páginas me atingiu como um jorro: o seu brilho cegara toda a minha inteligência, mas, ao mesmo tempo, tornara-a mais cintilante. Fiquei com a certeza de que esta luz iria reconstruir-me, que graças a ela deixaria de percorrer os caminhos já trilhados. Vislumbrei as sombras de uma vida ainda por conhecer e por adoptar. (…) Toda a minha vida mudava à medida que lia palavras novas, virando novas páginas; sentia-me tão pouco preparado para tudo o que iria acontecer-me, tão desarmado que, ao cabo de algum tempo, desviei os olhos, como para me proteger da força que jorrava das páginas. Foi com terror que notei que o mundo à minha volta se transformava completamente, e invadiu-me um sentimento de solidão que até então nunca experimentara - como se me achasse sozinho num país de que ignorava a língua, os costumes e a geografia. Depressa a impotência nascida deste sentimento de solidão me levou a agarrar-me cada vez mais ao livro; era ele que iria ensinar-me o que fazer neste país desconhecido onde me achava perdido, dizer-me aquilo em que podia acreditar, o que nele podia observar, a direção que a minha vida ia tomar. Continuava a ler; página atrás de página, como se estudasse um guia que me orientaria através desta terra desconhecida e selvagem. Tinha vontade de lhe dizer: vem em meu socorro, ajuda-me a descobrir a vida nova sem muitos sofrimentos nem desgraças. Mas sabia também que esta vida nova se ia construindo a partir das palavras e do que lia. (…)

Adivinhei desde o princípio que o livro tinha sido escrito para mim, e era por isso, não que as suas palavras fossem extraordinárias e brilhantes. (…)

Eu gostava muito da minha mãe, era uma bela mulher, distinta, competente e compreensiva, e eu sentia-me culpado porque lia esse livro e penetrara num mundo que não era o dela. (…)

Tinha medo de dizer a mim mesmo que o livro poderia ser um mistério imaginado tão-somente para a minha pessoa. (…)

 Por um breve instante invadiu-me uma tristeza de me fazer vir as lágrimas aos olhos, mas recompus-me com orgulho: deveria abrir o meu coração, sim, mas aqueles que doravante escolhesse entre os que viviam já no universo do livro. (…)

Tinha medo da solidão. Medo de ter compreendido mal o livro, o que não era de estranhar num idiota como eu; medo de não aprofundar as coisas ou, pelo contrário, de as aprofundar demasiado; quero eu dizer: de não poder ser como toda a gente, de me tornar louco de amor, ou de descobrir os mistérios do universo e me tornar ridículo passando o tempo a contar a minha vida a pessoas sem qualquer desejo de a conhecerem (…) de acabar por perceber que o mundo é definitivamente muito mais cruel do que eu imaginava e de não conseguir agradar às raparigas bonitas (…).

No dia seguinte apaixonei-me. O amor era tão perturbante como a luz que jorrava do livro e me atingia no rosto, e, com todo o seu peso, provava que a minha vida já tinha saído dos eixos (…). 

Nevara durante a noite, a neve acumulada nos parapeitos das janelas, nos passeios e nos telhados. O livro, que eu tinha deixado aberto em cima da mesa, envolvido por esta impressionante luz branca parecia ainda mais anódino, mais inocente; o que o tornava aterrador. (…)

Ao contrário de tudo o que se conta sobre o amor nos filmes, afastei-me sem pensar, sentindo-me extremamente miserável. (…) Primeiro, os corvos bateram as asas com cólera por cima da minha cabeça, depois instalaram-se nos ramos para me vigiarem melhor (…).

O homem a quem a leitura de um livro mudara a vida toda, que se apaixonara, que descobrira que se seguiria o rumo de uma vida nova - era eu. (…) De cada vez que a heroína tomara a palavra, o ecrã tingia-se da mesma cor violácea do casaco de Janan (…) Porquê esta solidão que, à noite, cai sobre mim como um falcão? (…)

A maioria das pessoas não quer uma vida nova nem um mundo novo. Foi por isso que mataram o autor do livro. (…)

O amor mostra-nos o caminho, desembaraça-nos de toda a tralha da vida quotidiana e, percebo isso agora, acaba por nos conduzir rumo ao segredo do coração. É para lá que vamos agora. (…)

E enquanto ela se debatia, ó meu Anjo, beijei-a a ponto de lhe fazer sangrar os lábios, com todas as minhas forças, com todo o meu desejo e com toda a minha fúria. (…) O sofrimento entre as minhas pernas tornou-se intolerável, eu morria de desejo de me expandir, de explodir, de, por fim, me relaxar. O meu desejo tornou-se ainda mais profundo, invadiu o mundo inteiro, um mundo novo de que ignorava tudo. Esperava, com lágrimas nos olhos, todo a suar, esperava sem saber o que esperava, quando tudo explodiu, nem muito depressa nem muito devagar, na alegria e tudo se acalmou e desapareceu. (…)

Eu estava triste, porque percebia que as nossas viagens nunca mais voltariam a ser o que tinham sido. (…)

Reconheci-a pelos batimentos do meu coração (…) vi um extraordinário arco-íris. Quando as pessoas contemplam a natureza (…) quanto a mim, vejo na natureza uma mensagem eloquente, que me interroga, que me lembra que devo conservar intacta a minha vontade (…).

Descobria como tocar alguém podia transformar completamente os lugares, as camas, os quartos, os cheiros, as coisas, mesmo as mais vulgares. (…)

Servi-me de um café e fui sentar-me a um canto. (…)

Eu tinha envelhecido antes das idade, cansara-me depressa, caminhava o menos possível. (…)


in: A Vida Nova, de Orhan Pamuk, Edições ASA, Porto, 2007 (O autor foi Prémio Nobel da Literatura em 2006)

07 março 2024

A Cidadela Branca | Orhan Pamuk

Acreditar que um ser participa de uma vida desconhecida na qual o seu amor nos faria penetrar é, de tudo o que o amor exige para nascer, o mais importante e o que faz menosprezar tudo o resto. (Marcel Proust, Du Côté de Chez Swann)

Descobri este manuscrito em 1982, nos arquivos miseráveis do gabinete do Governador de Guebze, onde costumava passar uma semana todos os verões, uma semana a vasculhar o fundo de um baú poeirento onde se amontoavam a trouxe-mouxe os firmãs imperiais, os títulos de propriedade, as relações dos tribunais (…) O manuscrito atraiu-me logo a atenção pela elegante encadernação jaspeada de um azul de sonho, a caligrafia extremamente legível e o brilho que sobressaía entre todos os outros documentos oficiais desbotados. Na primeira página, uma letra diferente, pareceu-me, traçara um título, como para melhorar despertar a minha curiosidade: «o enteado do colchoeiro». Sem outra Indicação. Empreendi, de imediato e com um imenso prazer, a leitura deste livro em cujas margens e folhas em branco uma mão de criança desenhara personagens de cabeça minúscula e envergando fatos com múltiplos botões. Encantado com a minha descoberta, mas demasiado preguiçoso para copiar o manuscrito, decidi roubá-lo àquela balbúrdia que nem um jovem governador ousara qualificar como arquivos e meti-o discretamente na minha pasta. A princípio não sabia bem o que fazer com ele, senão lê-lo e relê-lo. (…)

Encontrar ligações entre as coisas é, creio eu, a doença dos nossos dias. (…)

Muitos crêem que a vida não está previamente determinada e que todas as histórias são na realidade uma cadeia de coincidências. No entanto, mesmo aqueles que partilham dessa convicção quando a certa altura da sua existência se põem a contemplar o passado, pensam que todos os acontecimentos que viveram eram na realidade inevitáveis. Eu mesmo atravessei um desses períodos. (…)

O Mestre descobrira, numa das drogarias de Istambul que visitava sucessivamente, uma pólvora cujo nome o próprio ervanário ignorava. (…)

Se é esta a minha convicção, é porque um homem, na velhice, procura muito mais a simetria, mesmo nas histórias que lê. (…)

Eu conseguira pôr algum dinheiro de lado, graças a pequenos trabalhos ou surripiando moedas ao Mestre. Antes de sair de casa, tirei o meu pecúlio do cofre (…) Saí precipitadamente de casa, tendo o cuidado de não tocar em nada. Soprava um ligeiro vento, enquanto avançava pelas ruas desertas do bairro. Não tinha senão uma ideia em mente: lavar as mãos. Saboreava o prazer de caminhar em silêncio da alvorada, de descer as veredas que levavam até ao Mar e sobretudo de lavar as mãos em todas as fontes do caminho, sempre a contemplar o Corno de Ouro. (…)

Os dias que vivi na ilha foram felizes, mas só mais tarde me dei conta disso. Alojei-me, por uma renda modesta, em casa de um pescador grego, que não tinha família. Tomara cuidado para não despertar a atenção e vivia na quietude. (…) Quando o tempo estava demasiado mau para ir à pesca, dava a volta à ilha a pé, entrava no recinto do mosteiro e chegava a adormecer tranquilamente à sombra das videiras. (…)

Foi o Mestre que pagou ao pescador o que lhe era devido. (…) Chegámos a casa antes do cair da noite. (…) Circulavam rumores de penúria. Istambul parecia uma cidade abandonada, aterradora. Eu sabia-o. (…) Eu surpreendia-me a observar com inveja a felicidade daquele homem que se bastava tão bem a si mesmo. (…)

Chego agora ao fim do meu livro. Os meus leitores mais inteligentes talvez já o tenham abandonado decidindo que a minha história terminara há muito. Houve tempo em que eu pensava a mesma coisa. (…)

Mas não me queixo disso; a solidão não me preocupa. Juntei muito dinheiro ao longo dos anos em que exerci o cargo de Primeiro Astrólogo do Sultão. Casei-me; tenho quatro filhos. Abandonei as minhas funções a tempo, talvez por saber prever a aproximação das infelicidades, com a intuição adquirida graças à minha profissão. (…) Retirei-me para Guebze, mandei construir esta mansão (…) nesta sala, a escrever e a sonhar. (…)


in: A Cidadela Branca, de Orhan Pamuk, Editorial Presença (5ª Edição), Lisboa, 2006 (Prémio Nobel da Literatura no ano de 2006)

08 fevereiro 2024

Balada da Praia dos Cães | José Cardoso Pires

Está de pijama de cetim. São sete da manhã no seu domicílio à Travessa da Sé, terceiro andar alto com vista para o Tejo. (…) Elias parece suspenso entre o jornal e o sono. Mas não: medita de facto, e na direção dum altar de fotografias armado em cima da cómoda. (…)

Elias está sem óculos, tem pálpebras pisadas e rugosas como as dos perus. (…)

Plantada na areia, há uma criatura a escutá-lo ou alheada em sono aparente, não se sabe. Um lagarto. Lizardo de seu nome, lagarto de estimação, corpo arenoso. Parece em eterna posição de arrancada, cabeça imóvel, pescoço para a frente, os compridos dedos das patas traseiras todos abertos e firmados no chão. Estás-te nas tintas, continua Elias, um olho nas sopas, outro no jornal (mas é ao lagarto que se dirige, é para ele que desabafa). Um rastilhante como tu tem mais em que pensar. (…)

Lizardo mantém-se impenetrável no seu planeta de vidro. É um dragão doméstico; pequeno mas dragão. E pré-histórico, sobranceiro ao tempo. O dono acerca-se dele para verificar o termóstato fixado na gaiola porque é mudança de estação e há que regular o calor. No verão tem muitas vezes que humedecer a areia para que o animal não se excite e não se ponha a bater o rabo com lembranças da fêmea ou de penhascos de sol a pino. (…)

Para uns o exótico está na paisagem, para outros na máquina. (…)

Vagueei todos estes anos por um mundo de mulheres, procurando-te. (…)


in: Balada da Praia dos Cães, de José Cardoso Pires, Biblioteca de Bolso Dom Quixote, 1982 (Grande Prémio de Romance e Novela, Associação Portuguesa de Escritores)

29 dezembro 2023

Elogio da Loucura | Erasmo de Roterdão

Sou realmente, tal como me veem, aquela verdadeira repartidora de bens, à qual os Latinos chamam Loucura e os Gregos demência. (…)

Pois o espelho da alma nunca mente. (…) "As grandes orelhas denunciam a tolice" (…)

Em resumo: é necessário que o sábio recorra a mim, a mim insisto, se por ventura quer ser pai. (…)

A responsável pela propagação da espécie humana é aquela parte do corpo tão louca e tão ridícula que nem se pode a ela aludir sem provocar o riso. (…) qual a mulher que aceitaria casar-se se conhecesse ou pensasse nos perigos do parto (…)

Ora, esta vida porventura merece ser chamada vida, se dela retirarmos o prazer? (…)

Quantas brincadeiras não dá a conhecer Mercúrio com as suas artimanhas e furtos? (…)

Além disso, desterrou a razão para um canto reduzido da cabeça, deixando todo o resto do corpo entregue à desordem. (…)

Contra mim só por atribuir-lhes a loucura, eu que, além de mulher, sou a loucura. (…) devem agradecer à loucura o facto de a muitos títulos serem mais felizes do que os homens. (…) as faces das mulheres se apresentam sempre mimosas, a voz sempre fina, a pele aveludada, como se vivessem numa espécie de perpétua mocidade? (…) que outra coisa almejam nesta vida que não seja agradar acima de tudo aos homens? (…) Ora, porventura se recomendam mais aos olhos dos homens por outro título que não seja o de loucura? (…) nos disparates que o homem diz quando está com uma mulher e nas patetices que faz sempre que estiver determinado a gozar dos deleites da fêmea. (…) Não há qualquer dúvida de que, faltando o condimento da loucura, não há nada que seja agradável. (…)

Coisas que são indispensáveis no dia-a-dia, dir-se-ia que esse sábio é uma estaca e não um ser humano. A tal ponto não consegue ser útil nem para si mesmo (…) emigrar para um deserto e aí em solidão gozar da sua sabedoria.(…)

Na verdade são dois os principais obstáculos para se alcançar o conhecimento das coisas: a vergonha, que obscurece com fumo o espírito, e o medo, que diante do perigo dissuade de cometer as façanhas. (…)

São mais afortunadas as artes que possuem maior parentesco com a loucura (…)

O cavalo, tem emoções semelhantes às humanas, passou a viver nas proximidades dos homens, também partilha da infelicidade humana (…) A tal ponto em todos os aspectos é mais alegre aquilo que a natureza criou do que quanto a arte fingiu. (…)

Ó mui louco sábio, (…) E a tal ponto ninguém deseja fazer-lhe mal que até os animais ferozes se abstêm de atacá-los, movidos por uma espécie de instinto natural diante da inocência. É que estão verdadeiramente consagrados às divindades, sobretudo a mim, e por isso não é sem razão que todos assim o honram. (…)

E conheçam agora, e não é para voltar ao desprezo, o dote dos loucos: e é que só eles São sinceros e verdadeiros. (…) Tudo aquilo que um louco tem no peito, mostra-o no rosto e manifesta-o pela palavra. Ao passo que os sábios possuem duas línguas, consoante lembra o mesmo Eurípedes: com uma delas dizem a verdade e, com a outra, o que julgarem conveniente de acordo com a ocasião. (…)

Eu, a célebre loucura, sou a única que a todos abraço sem distinção com tão pronta bondade. (…) Nem misturo o céu com a terra se alguém convidando os demais deuses, me deixa em casa. (…) 

Devem-me menos os poetas, embora por inerência da sua função, façam parte da minha corporação, como uma raça livre (…)

A suprema sabedoria é fingir a propósito a loucura. (…)

Atribui a sabedoria exclusivamente a Deus, deixando a loucura a todos os homens. (…)

A demência dos amantes é de todas a mais feliz. Quem ama arrebatadamente já não vive em si, mas naquilo que ama (…) quanto mais perfeito é o amor maior é a felicidade. (…) 

O espírito há de ser assimilado de modo maravilhoso por aquele supremo entendimento, porque este é infinitamente mais poderoso. (…) A tal ponto o espiritual leva a vantagem sobre o corpo, o invisível sobre o visível. 

Ora se mostram alegres, ora abatidos, ora riem, ora suspiram, em suma: totalmente fora de si: logo a seguir voltam a si, dizem que não sabem onde estiveram, se no corpo ou fora do corpo, despertos ou a dormir. (…) vindoura felicidade. 

 

in: Elogio da Loucura, de Erasmo de Roterdão, Edições 70, Lisboa, Novembro 2023

20 novembro 2023

Semente | Poema

Sou como uma semente 
Que reúne em si  
Todos os nutrientes do mundo

Sou pura natureza
Força de existir

Sou em mim o mundo 
O mundo é em mim

É um ciclo de eterno retorno
É a eternidade em si

Numa semente única 
Que reúne em si 
Todas as sementes do mundo.

in: Poema: Semente, de Ana Gaspar, escrito: 6 Novembro 2023.

11 novembro 2023

Demónios | Fiódor Dostoiévski

 Maio atingira o seu auge, os anoiteceres eram espantosos. O sabugueiro estava em flor. Os dois amigos encontravam-se todos os fins de tarde no jardim e ficavam até à noite no pavilhão, expondo mutuamente sentimentos e ideias, desabafando um com o outro. Havia momentos poéticos. Varvara Petrovna, sob influência da mudança do seu destino, falava mais do que de costume. Parecia procurar apoio no coração do amigo, e assim continuou várias noites seguidas. Uma ideia estranha iluminou de repente Stepan Trofímovitch: "Não poderia ser que a viúva inconsolável contasse com ele e aguardasse que, ao fim do ano de luto, ele a pedisse em casamento?" (…)

A meu ver, mesmo na velhice tinha uma aparência muito imponente. Além disso, que velhice é a dos cinquenta e três anos? Porém, por uma espécie de picardia cívica, não só não se fazia de jovem como parecia exibir a maturidade dos seus anos e, com o seu fato, alto e magro, com o cabelo até aos ombros, parecia um patriarca, ou melhor, o retrato do poeta Kukolnik, numa qualquer litografia dos anos trinta, sobretudo quando, no verão, se sentara no banco do jardim ao pôr-do-sol, poeticamente pensativo, debaixo dos lilaseiros em flor, apoiando-se com ambas as mãos na bengala, com um livro aberto ao seu lado. Quanto aos livros, direi que nos últimos tempos começara a afastar-se da leitura. (…)

Apaixonou-se de imediato pelo retrato, como é hábito de todas as meninas de internatos apaixonarem-se pela primeira coisa que lhes cai debaixo de olho, incluindo professores, preponderantemente de caligrafia e desenho. (…)

O pobre do Stepan Trofímovitch estava sozinho, sem suspeitar de nada. Triste e pensativo, havia muito que espreitava pela janela, a ver se aparecia algum companheiro seu. Mas ninguém queria aparecer. Na rua chuviscava, em casa estava a ficar frio, era preciso acender o fogão; Stepan Trofímovitch suspirou. De súbito surgiu-lhe diante dos olhos uma visão terrível: Varava Petrovna, com este tempo e a esta hora insólita! E a pé! Ficou tão espantado que se esqueceu de mudar de roupa e a recebeu tal como andava por casa, com o seu habitual casaquinho cor-de-rosa forrado de algodão. 

- Ma bonne amie! … - Exclamou em voz alta, indo ao encontro dela.

- Ainda bem que está sozinho: detesto os seus amigos! Fuma demais; meu Deus, que ar se respira nesta casa! Ainda não acabou o seu chá e já passa das onze! Para si, a desordem é prazer! O seu deleite é a casa emporcalhada! Que papel rasgado é este? (…)

Dizem-me os senhores: mexericos … Mas será só um que grita? Toda a cidade grita, e eu apenas oiço e concordo: não é proibido concordar.

- A cidade grita? Grita o quê? (…)

Não descreverei a beleza de Lisaveta Nikoláevna. Já bastava toda a cidade apregoar a beleza dela, embora algumas das nossas meninas e senhoras não concordassem, com indignação, com quem assim apregoava. Entre elas havia mesmo algumas que já tinham ganhado ódio a Lisaveta Nikoláevna por causa do orgulho dela em primeiro lugar (…) Na nossa cidade, até ao momento, nunca houvera amazonas; era natural que o aparecimento de Lisaveta Nikoláevna passeando-se a cavalo, sem ainda sequer ter feito as devidas visitas, ofendia a sociedade. Aliás já todos sabiam que ela cavalgava por prescrição médica, por isso, ao falarem disso, referiam-se causticamente ao seu estado de saúde. De facto, estava doente. Uma coisa que se lhe notava ao primeiro olhar era a inquietude doentia, nervosa e permanente. (…) Transparecia-lhe do ardor dos olhos escuros um qualquer poder; apresentava-se sempre num jeito «de vencedora e para voltar a vencer». Parecia orgulhosa, até ousada às vezes; não sei se chegara a ser bondosa; mas sei que queria muito sê-lo e se esforçava, se atormentava neste sentido. Havia na sua natureza, sem dúvida, muitas aspirações maravilhosas e os desejos mais justos; mas era como se tudo nela andasse eternamente à procura da sua medida, sem a encontrar, como se tudo fosse caótico, e emocionado, inquieto. Talvez tivesse exigências demasiado rigorosas para consigo mesma e nunca encontrasse forças interiores para satisfazer tais exigências. Sentou-se no divã e pôs-se a observar a sala. (…)

O homem tem medo da morte porque gosta da vida, é assim que eu entendo.  

- Observei - E é assim que manda a natureza. (…)

Quem se matar apenas para matar o medo, torna-se Deus, logo. (…)

«Se quiseres vencer o mundo, vence primeiro a ti próprio» (…)

Oh meu amigo, o matrimónio é a morte, moral de qualquer alma orgulhosa, de qualquer independência. A vida de casado vai depravar-me, sugar-me as energias, a coragem de servir a causa, nascerão filhos, que ainda por cima não serão provavelmente meus, ou seja, que não serão meus de certeza; o homem sábio não deve ter medo de olhar a verdade na cara. (…)


in: Demónios, de Fiódor Dostoiévski, Editorial Presença, Lisboa, 2023