Aguarelas Finas, Le Corbusier | Maison La Roche, Paris

07 março 2024

A Cidadela Branca | Orhan Pamuk

Acreditar que um ser participa de uma vida desconhecida na qual o seu amor nos faria penetrar é, de tudo o que o amor exige para nascer, o mais importante e o que faz menosprezar tudo o resto. (Marcel Proust, Du Côté de Chez Swann)

Descobri este manuscrito em 1982, nos arquivos miseráveis do gabinete do Governador de Guebze, onde costumava passar uma semana todos os verões, uma semana a vasculhar o fundo de um baú poeirento onde se amontoavam a trouxe-mouxe os firmãs imperiais, os títulos de propriedade, as relações dos tribunais (…) O manuscrito atraiu-me logo a atenção pela elegante encadernação jaspeada de um azul de sonho, a caligrafia extremamente legível e o brilho que sobressaía entre todos os outros documentos oficiais desbotados. Na primeira página, uma letra diferente, pareceu-me, traçara um título, como para melhorar despertar a minha curiosidade: «o enteado do colchoeiro». Sem outra Indicação. Empreendi, de imediato e com um imenso prazer, a leitura deste livro em cujas margens e folhas em branco uma mão de criança desenhara personagens de cabeça minúscula e envergando fatos com múltiplos botões. Encantado com a minha descoberta, mas demasiado preguiçoso para copiar o manuscrito, decidi roubá-lo àquela balbúrdia que nem um jovem governador ousara qualificar como arquivos e meti-o discretamente na minha pasta. A princípio não sabia bem o que fazer com ele, senão lê-lo e relê-lo. (…)

Encontrar ligações entre as coisas é, creio eu, a doença dos nossos dias. (…)

Muitos crêem que a vida não está previamente determinada e que todas as histórias são na realidade uma cadeia de coincidências. No entanto, mesmo aqueles que partilham dessa convicção quando a certa altura da sua existência se põem a contemplar o passado, pensam que todos os acontecimentos que viveram eram na realidade inevitáveis. Eu mesmo atravessei um desses períodos. (…)

O Mestre descobrira, numa das drogarias de Istambul que visitava sucessivamente, uma pólvora cujo nome o próprio ervanário ignorava. (…)

Se é esta a minha convicção, é porque um homem, na velhice, procura muito mais a simetria, mesmo nas histórias que lê. (…)

Eu conseguira pôr algum dinheiro de lado, graças a pequenos trabalhos ou surripiando moedas ao Mestre. Antes de sair de casa, tirei o meu pecúlio do cofre (…) Saí precipitadamente de casa, tendo o cuidado de não tocar em nada. Soprava um ligeiro vento, enquanto avançava pelas ruas desertas do bairro. Não tinha senão uma ideia em mente: lavar as mãos. Saboreava o prazer de caminhar em silêncio da alvorada, de descer as veredas que levavam até ao Mar e sobretudo de lavar as mãos em todas as fontes do caminho, sempre a contemplar o Corno de Ouro. (…)

Os dias que vivi na ilha foram felizes, mas só mais tarde me dei conta disso. Alojei-me, por uma renda modesta, em casa de um pescador grego, que não tinha família. Tomara cuidado para não despertar a atenção e vivia na quietude. (…) Quando o tempo estava demasiado mau para ir à pesca, dava a volta à ilha a pé, entrava no recinto do mosteiro e chegava a adormecer tranquilamente à sombra das videiras. (…)

Foi o Mestre que pagou ao pescador o que lhe era devido. (…) Chegámos a casa antes do cair da noite. (…) Circulavam rumores de penúria. Istambul parecia uma cidade abandonada, aterradora. Eu sabia-o. (…) Eu surpreendia-me a observar com inveja a felicidade daquele homem que se bastava tão bem a si mesmo. (…)

Chego agora ao fim do meu livro. Os meus leitores mais inteligentes talvez já o tenham abandonado decidindo que a minha história terminara há muito. Houve tempo em que eu pensava a mesma coisa. (…)

Mas não me queixo disso; a solidão não me preocupa. Juntei muito dinheiro ao longo dos anos em que exerci o cargo de Primeiro Astrólogo do Sultão. Casei-me; tenho quatro filhos. Abandonei as minhas funções a tempo, talvez por saber prever a aproximação das infelicidades, com a intuição adquirida graças à minha profissão. (…) Retirei-me para Guebze, mandei construir esta mansão (…) nesta sala, a escrever e a sonhar. (…)


in: A Cidadela Branca, de Orhan Pamuk, Editorial Presença (5ª Edição), Lisboa, 2006 (Prémio Nobel da Literatura no ano de 2006)

08 fevereiro 2024

Balada da Praia dos Cães | José Cardoso Pires

Está de pijama de cetim. São sete da manhã no seu domicílio à Travessa da Sé, terceiro andar alto com vista para o Tejo. (…) Elias parece suspenso entre o jornal e o sono. Mas não: medita de facto, e na direção dum altar de fotografias armado em cima da cómoda. (…)

Elias está sem óculos, tem pálpebras pisadas e rugosas como as dos perus. (…)

Plantada na areia, há uma criatura a escutá-lo ou alheada em sono aparente, não se sabe. Um lagarto. Lizardo de seu nome, lagarto de estimação, corpo arenoso. Parece em eterna posição de arrancada, cabeça imóvel, pescoço para a frente, os compridos dedos das patas traseiras todos abertos e firmados no chão. Estás-te nas tintas, continua Elias, um olho nas sopas, outro no jornal (mas é ao lagarto que se dirige, é para ele que desabafa). Um rastilhante como tu tem mais em que pensar. (…)

Lizardo mantém-se impenetrável no seu planeta de vidro. É um dragão doméstico; pequeno mas dragão. E pré-histórico, sobranceiro ao tempo. O dono acerca-se dele para verificar o termóstato fixado na gaiola porque é mudança de estação e há que regular o calor. No verão tem muitas vezes que humedecer a areia para que o animal não se excite e não se ponha a bater o rabo com lembranças da fêmea ou de penhascos de sol a pino. (…)

Para uns o exótico está na paisagem, para outros na máquina. (…)

Vagueei todos estes anos por um mundo de mulheres, procurando-te. (…)


in: Balada da Praia dos Cães, de José Cardoso Pires, Biblioteca de Bolso Dom Quixote, 1982 (Grande Prémio de Romance e Novela, Associação Portuguesa de Escritores)

29 dezembro 2023

Elogio da Loucura | Erasmo de Roterdão

Sou realmente, tal como me veem, aquela verdadeira repartidora de bens, à qual os Latinos chamam Loucura e os Gregos demência. (…)

Pois o espelho da alma nunca mente. (…) "As grandes orelhas denunciam a tolice" (…)

Em resumo: é necessário que o sábio recorra a mim, a mim insisto, se por ventura quer ser pai. (…)

A responsável pela propagação da espécie humana é aquela parte do corpo tão louca e tão ridícula que nem se pode a ela aludir sem provocar o riso. (…) qual a mulher que aceitaria casar-se se conhecesse ou pensasse nos perigos do parto (…)

Ora, esta vida porventura merece ser chamada vida, se dela retirarmos o prazer? (…)

Quantas brincadeiras não dá a conhecer Mercúrio com as suas artimanhas e furtos? (…)

Além disso, desterrou a razão para um canto reduzido da cabeça, deixando todo o resto do corpo entregue à desordem. (…)

Contra mim só por atribuir-lhes a loucura, eu que, além de mulher, sou a loucura. (…) devem agradecer à loucura o facto de a muitos títulos serem mais felizes do que os homens. (…) as faces das mulheres se apresentam sempre mimosas, a voz sempre fina, a pele aveludada, como se vivessem numa espécie de perpétua mocidade? (…) que outra coisa almejam nesta vida que não seja agradar acima de tudo aos homens? (…) Ora, porventura se recomendam mais aos olhos dos homens por outro título que não seja o de loucura? (…) nos disparates que o homem diz quando está com uma mulher e nas patetices que faz sempre que estiver determinado a gozar dos deleites da fêmea. (…) Não há qualquer dúvida de que, faltando o condimento da loucura, não há nada que seja agradável. (…)

Coisas que são indispensáveis no dia-a-dia, dir-se-ia que esse sábio é uma estaca e não um ser humano. A tal ponto não consegue ser útil nem para si mesmo (…) emigrar para um deserto e aí em solidão gozar da sua sabedoria.(…)

Na verdade são dois os principais obstáculos para se alcançar o conhecimento das coisas: a vergonha, que obscurece com fumo o espírito, e o medo, que diante do perigo dissuade de cometer as façanhas. (…)

São mais afortunadas as artes que possuem maior parentesco com a loucura (…)

O cavalo, tem emoções semelhantes às humanas, passou a viver nas proximidades dos homens, também partilha da infelicidade humana (…) A tal ponto em todos os aspectos é mais alegre aquilo que a natureza criou do que quanto a arte fingiu. (…)

Ó mui louco sábio, (…) E a tal ponto ninguém deseja fazer-lhe mal que até os animais ferozes se abstêm de atacá-los, movidos por uma espécie de instinto natural diante da inocência. É que estão verdadeiramente consagrados às divindades, sobretudo a mim, e por isso não é sem razão que todos assim o honram. (…)

E conheçam agora, e não é para voltar ao desprezo, o dote dos loucos: e é que só eles São sinceros e verdadeiros. (…) Tudo aquilo que um louco tem no peito, mostra-o no rosto e manifesta-o pela palavra. Ao passo que os sábios possuem duas línguas, consoante lembra o mesmo Eurípedes: com uma delas dizem a verdade e, com a outra, o que julgarem conveniente de acordo com a ocasião. (…)

Eu, a célebre loucura, sou a única que a todos abraço sem distinção com tão pronta bondade. (…) Nem misturo o céu com a terra se alguém convidando os demais deuses, me deixa em casa. (…) 

Devem-me menos os poetas, embora por inerência da sua função, façam parte da minha corporação, como uma raça livre (…)

A suprema sabedoria é fingir a propósito a loucura. (…)

Atribui a sabedoria exclusivamente a Deus, deixando a loucura a todos os homens. (…)

A demência dos amantes é de todas a mais feliz. Quem ama arrebatadamente já não vive em si, mas naquilo que ama (…) quanto mais perfeito é o amor maior é a felicidade. (…) 

O espírito há de ser assimilado de modo maravilhoso por aquele supremo entendimento, porque este é infinitamente mais poderoso. (…) A tal ponto o espiritual leva a vantagem sobre o corpo, o invisível sobre o visível. 

Ora se mostram alegres, ora abatidos, ora riem, ora suspiram, em suma: totalmente fora de si: logo a seguir voltam a si, dizem que não sabem onde estiveram, se no corpo ou fora do corpo, despertos ou a dormir. (…) vindoura felicidade. 

 

in: Elogio da Loucura, de Erasmo de Roterdão, Edições 70, Lisboa, Novembro 2023

20 novembro 2023

Semente | Poema

Sou como uma semente 
Que reúne em si  
Todos os nutrientes do mundo

Sou pura natureza
Força de existir

Sou em mim o mundo 
O mundo é em mim

É um ciclo de eterno retorno
É a eternidade em si

Numa semente única 
Que reúne em si 
Todas as sementes do mundo.

in: Poema: Semente, de Ana Gaspar, escrito: 6 Novembro 2023.

11 novembro 2023

Demónios | Fiódor Dostoiévski

 Maio atingira o seu auge, os anoiteceres eram espantosos. O sabugueiro estava em flor. Os dois amigos encontravam-se todos os fins de tarde no jardim e ficavam até à noite no pavilhão, expondo mutuamente sentimentos e ideias, desabafando um com o outro. Havia momentos poéticos. Varvara Petrovna, sob influência da mudança do seu destino, falava mais do que de costume. Parecia procurar apoio no coração do amigo, e assim continuou várias noites seguidas. Uma ideia estranha iluminou de repente Stepan Trofímovitch: "Não poderia ser que a viúva inconsolável contasse com ele e aguardasse que, ao fim do ano de luto, ele a pedisse em casamento?" (…)

A meu ver, mesmo na velhice tinha uma aparência muito imponente. Além disso, que velhice é a dos cinquenta e três anos? Porém, por uma espécie de picardia cívica, não só não se fazia de jovem como parecia exibir a maturidade dos seus anos e, com o seu fato, alto e magro, com o cabelo até aos ombros, parecia um patriarca, ou melhor, o retrato do poeta Kukolnik, numa qualquer litografia dos anos trinta, sobretudo quando, no verão, se sentara no banco do jardim ao pôr-do-sol, poeticamente pensativo, debaixo dos lilaseiros em flor, apoiando-se com ambas as mãos na bengala, com um livro aberto ao seu lado. Quanto aos livros, direi que nos últimos tempos começara a afastar-se da leitura. (…)

Apaixonou-se de imediato pelo retrato, como é hábito de todas as meninas de internatos apaixonarem-se pela primeira coisa que lhes cai debaixo de olho, incluindo professores, preponderantemente de caligrafia e desenho. (…)

O pobre do Stepan Trofímovitch estava sozinho, sem suspeitar de nada. Triste e pensativo, havia muito que espreitava pela janela, a ver se aparecia algum companheiro seu. Mas ninguém queria aparecer. Na rua chuviscava, em casa estava a ficar frio, era preciso acender o fogão; Stepan Trofímovitch suspirou. De súbito surgiu-lhe diante dos olhos uma visão terrível: Varava Petrovna, com este tempo e a esta hora insólita! E a pé! Ficou tão espantado que se esqueceu de mudar de roupa e a recebeu tal como andava por casa, com o seu habitual casaquinho cor-de-rosa forrado de algodão. 

- Ma bonne amie! … - Exclamou em voz alta, indo ao encontro dela.

- Ainda bem que está sozinho: detesto os seus amigos! Fuma demais; meu Deus, que ar se respira nesta casa! Ainda não acabou o seu chá e já passa das onze! Para si, a desordem é prazer! O seu deleite é a casa emporcalhada! Que papel rasgado é este? (…)

Dizem-me os senhores: mexericos … Mas será só um que grita? Toda a cidade grita, e eu apenas oiço e concordo: não é proibido concordar.

- A cidade grita? Grita o quê? (…)

Não descreverei a beleza de Lisaveta Nikoláevna. Já bastava toda a cidade apregoar a beleza dela, embora algumas das nossas meninas e senhoras não concordassem, com indignação, com quem assim apregoava. Entre elas havia mesmo algumas que já tinham ganhado ódio a Lisaveta Nikoláevna por causa do orgulho dela em primeiro lugar (…) Na nossa cidade, até ao momento, nunca houvera amazonas; era natural que o aparecimento de Lisaveta Nikoláevna passeando-se a cavalo, sem ainda sequer ter feito as devidas visitas, ofendia a sociedade. Aliás já todos sabiam que ela cavalgava por prescrição médica, por isso, ao falarem disso, referiam-se causticamente ao seu estado de saúde. De facto, estava doente. Uma coisa que se lhe notava ao primeiro olhar era a inquietude doentia, nervosa e permanente. (…) Transparecia-lhe do ardor dos olhos escuros um qualquer poder; apresentava-se sempre num jeito «de vencedora e para voltar a vencer». Parecia orgulhosa, até ousada às vezes; não sei se chegara a ser bondosa; mas sei que queria muito sê-lo e se esforçava, se atormentava neste sentido. Havia na sua natureza, sem dúvida, muitas aspirações maravilhosas e os desejos mais justos; mas era como se tudo nela andasse eternamente à procura da sua medida, sem a encontrar, como se tudo fosse caótico, e emocionado, inquieto. Talvez tivesse exigências demasiado rigorosas para consigo mesma e nunca encontrasse forças interiores para satisfazer tais exigências. Sentou-se no divã e pôs-se a observar a sala. (…)

O homem tem medo da morte porque gosta da vida, é assim que eu entendo.  

- Observei - E é assim que manda a natureza. (…)

Quem se matar apenas para matar o medo, torna-se Deus, logo. (…)

«Se quiseres vencer o mundo, vence primeiro a ti próprio» (…)

Oh meu amigo, o matrimónio é a morte, moral de qualquer alma orgulhosa, de qualquer independência. A vida de casado vai depravar-me, sugar-me as energias, a coragem de servir a causa, nascerão filhos, que ainda por cima não serão provavelmente meus, ou seja, que não serão meus de certeza; o homem sábio não deve ter medo de olhar a verdade na cara. (…)


in: Demónios, de Fiódor Dostoiévski, Editorial Presença, Lisboa, 2023

23 outubro 2023

As Abelhas Cinzentas | Andrei Kurkov

 Sergey Sergeyich foi despertado pela aragem fria quando eram cerca de três horas da manhã. O fogão a lenha que tinha construído em pedra, segundo uma fotografia da Cozy Cottage, com uma pequena porta envidraçada e dois bicos, tinha deixado de produzir qualquer calor. Os dois baldes de lata a seu lado estavam vazios. Baixou a mão até ao que estava mais perto e os dedos tocaram no pó do carvão. (…)

Também ali só restava uma pessoa - Pashka Khmelenko, que estava reformado, tal como Sergey. Os dois tinham praticamente a mesma idade e eram inimigos desde os primeiros dias de escola. (…)

Os outros habitantes da pequena Starhorodivka quiseram partir assim que o conflito começou. Portanto, foram-se embora - porque receavam mais pelas suas vidas do que pelas suas propriedades, e o medo maior venceu. Mas a guerra não tinha levado Sergeyich a recear pela vida. Só o tinha deixado confuso, e, de repente, indiferente a tudo o que se passava ao seu redor. Foi como se tivesse perdido todo o sentimento, todos os sentidos, excepto um: o da responsabilidade. E esse sentido, que poderia deixá-lo numa aflição terrível a qualquer hora do dia, estava inteiramente focado num ponto: as suas abelhas. De momento, as abelhas estavam a hibernar. O interior dos telhados e dos quadros tinham sido reforçados com feltro. (…)

Em casa, por essa altura, não havia ninguém com quem Sergeyich pudesse conversar: a mulher e a filha já tinham desertado enquanto ele estava no mercado de produtores de Gorlivka. Tinham deixado uma ferida no seu coração. Mas ele persistiu. (…) Prosseguiu com a sua vida - e a sua vida era calma e satisfatória. No verão, apreciava o zumbido das abelhas; no inverno, a paz e a tranquilidade, a brancura da neve sobre os campos e a imobilidade absoluta dos céus cinzentos. (…)

Sergeyich passou o dia seguinte na cama, cuidando da própria saúde, como se fosse o seu próprio filho enfermo. Ouviu-se tossir como se estivesse fora do próprio corpo, dividido em dois: metade paciente, metade curandeiro. (…) Acaba por acontecer a todos os que vivem sozinhos. (…)

Mas isso era agora, fevereiro, quando o silêncio era tão frágil como um grão de pó num raio de sol. Dentro de um mês, talvez menos, ia soltar um exército de abelhas nesse silêncio. (…) Sergeyich sorriu perante os próprios pensamentos e deixou-se submergir por sonhos que evocaram a chegada da primavera. (…) A escuridão ganhava terreno, ia-se infiltrando pelas janelas. (…)

Tu é que tens sorte - disse Pashka, sacudindo a mão. - Adorava ter esse tipo de vida: não ouvir nada, não ver nada, não saber que dia da semana é (…)

Quando começou a conduzir o Lada para o quintal, começaram a cair pingos de chuva. Sergeyich desviou o olhar para o céu, e a chuva caiu a direito nos seus olhos abertos. As gotas também lhe caíram nos lábios e língua, e pareceu-lhe que eram salgados. Parecia que eram lágrimas celestiais em vez de chuva, como se o céu estivesse a chorar por ele, por Sergeyich, porque também ele não sabia se voltaria algum dia. E, se voltasse, fosse quando fosse, será que iria encontrar tudo o que deixava para trás? (…) Aquilo - as árvores, os portões, as portas e as janelas - tinha-o protegido como uma fortaleza, como um colete à prova de balas. (…)

Não, ele não ia passar pela sua casa apenas para dar corda ao relógio, mesmo que prometesse fazê-lo. Era inútil preocupar-se com o tempo, claro. O tempo só importa quando está lá alguém a contabilizar a sua passagem, a depender disso. E, se ninguém se ocupar dessa missão, também o tempo para e desaparece. (…) 

Porém, as abelhas não entendem o que é a guerra. As abelhas não conseguem passar da paz à guerra e de volta à paz, como fazem as pessoas. É preciso que tenham condições para cumprir a sua principal função - aquela que lhes foi atribuída pela natureza e por Deus: colher e espalhar pólen. Era por isso que tinha de as levar para um sítio mais tranquilo, onde o ar estivesse a encher-se aos poucos da doçura da vegetação primaveril, onde ao coro dessas ervas se juntasse, em breve, o coro das cerejeiras, macieiras, damasqueiros e acácias em flor. (…)

Tinha-se desacostumado de ajuntamentos coletivos. Três anos de abandono numa aldeia com Pashka tinham-no ensinado que podia ter-se pouca gente por perto e que nada de mal havia nisso. Por outro lado, esse isolamento quase absoluto podia ajudar uma pessoa a conhecer-se melhor a si própria, à sua própria vida. (…)

De manhã, abriu os olhos e não voltou a duvidar de que tinha entrado no paraíso. Viu-se num conto de fadas, em que a natureza não apenas serve as pessoas, mas chega a conceder-lhe dádivas; em que o sol espera que termine as suas tarefas do dia para partir; em que o ar está preenchido do tinido de sinos de sinos invisíveis e incontáveis; em que se pode ser livre e invisível; em que cada ser vivo - cada árvore, cada videira - tem a sua própria voz. (…)

De repente, uma dor aguda espetou-lhe o coração como uma faca. Sentiu inveja do falecido. Akhtem. Ocorreu-lhe que não tinha nenhum filho e que, se alguma coisa lhe acontecesse, as abelhas tornar-se-iam órfãs. Iriam morrer de doenças ou de parasitas ou, simplesmente, perecer por negligência. Tinha uma filha, claro, mas, na realidade, a sua ex-mulher, Vitalina, é que a tinha tido. De qualquer forma a sua filha não se interessava por abelhas - o amor às abelhas não se passa pelo leite da mãe. Esse pensamento estranho deixou-o perplexo. (…)

Para quê desperdiça-la quando a sua casa já não era uma tenda, mas sim o mundo inteiro ao seu redor, com todas as montanhas, árvores, vinhas, pássaros, ouriços e abelhas? (…)

 Sergeyich sentia-se fascinado pela sabedoria da natureza. Sempre que a sua sabedoria era visível e compreensível para si, comparava-a com as manifestações da vida humana - sempre em detrimento desta última. (…)

Enfim, pelo menos há alguém à minha espera, pensou Sergeyich, ao pisar o acelerador. 


in: As Abelhas Cinzentas, de Andrei Kurkov, Porto Editora, 2022

08 setembro 2023

Devia ser Proibido | Poema

Devia ser proibido:

Gaiolas para pássaros 

Grades em casas

Fechar os corações à chave.


Devia ser proibido:

Pôr grilos em gaiolas

Tapar os buracos das toupeiras

Rasgar a alma com mentiras.


Devia ser proibido:

Andar de saltos altos 

Para ver os outros mais baixos.

Enganar para possuir.


Devia ser proibido:

Fechar as portas à chave

Aliás, devia ser proibido as portas terem chave.

Não deveria sequer haver portas.


in: Devia ser Proibido, Poema de Ana Gaspar, Escrito no dia 11 de agosto 2023