Aguarelas Finas, Le Corbusier | Maison La Roche, Paris

30 setembro 2025

Perto do Coração Selvagem | Clarice Lispector

 Mente-se e cai-se na verdade. (…) Ser livre era seguir-se afinal e eis de novo o caminho traçado. Ela só veria o que já possuía dentro de si. Perdido pois o gosto de imaginar. (…)

Lembro-me de um estudo cromático de Bach e perco a inteligência (…) Quem sou? (…)

Piedade é a minha forma de amor. (…) Por ter sofrido e continuar docemente. A dor cansada numa lágrima simplificada. Mas agora já é desejo de poesia, isso eu confesso, Deus. Durmamos de mãos dadas. O mundo rola e em alguma parte há coisas que não conheço. (…)

Era um pouco de febre sim. Se existisse pecado, ela pecara. Toda a sua vida fora um erro, ela era fútil. Onde estava a mulher da voz? Onde estavam as mulheres apenas fêmeas? (…)

Ser feliz é para se conseguir o quê? (…) Não gosto de me divertir, disse Joana com orgulho. (…)

Desceu das rochas, caminhou fracamente pela praia solitária até receber a água nos pés. (…) Era uma coisa que vinha do mar, que vinha do gosto de sal na boca, e dela, dela própria. Não era tristeza, uma alegria quase horrível (…)

A impossibilidade de ultrapassar a eternidade era a eternidade. (…)

O pensamento só era igual à música criando-se. (…)

Era a segunda vertigem num só dia! (…) Com mais raiva de tudo (…) No entanto, não era raiva, era amor. Amor tão forte que só se esgotava no ódio. (…) Sozinha. (…)

Liberdade é pouco, o que desejo ainda não tem nome. (…) Grito-me. (…) O movimento explica a forma. (…)

A plenitude tornou-se dolorosa e pesada e Joana era uma nuvem prestes a chover. (…) Sofrer pelo que a tornara terrivelmente feliz! (…) Sabia que o professor adoecera e fora abandonado pela mulher. (…) 

Porque tudo segue o caminho da inspiração. O início de toda a construção é porquê? (…)

Jamais se entregara. (…) É que tudo o que tenho não se pode dar. (…) Tudo o que sei nunca aprendi e nunca poderei ensinar. (…)

A solidão está misturada à minha essência. (…) Está gravado em mim que o amor cessa na morte. (…) Pois seu corpo, nunca precisava de ninguém, era livre. (…)

Eternidade é não ser. (…) Imortal para todo o sempre. (…) Uma nova matéria e não sabia (…)

Nada impedirá meu caminho até à morte-sem-medo, de qualquer luta ou descanso me levantarei forte e bela como um cavalo novo. 


in: Perto do Coração Selvagem, de Clarice Lispector, Companhia das Letras, Lisboa, Março 2025