Aguarelas Finas, Le Corbusier | Maison La Roche, Paris

20 dezembro 2015

Ao Sol e à Lua | Colares

CAPÍTULO 9º
DOS CIPOS DO SOL E LUA

Outra memória de basas * digna de lembrar e de imitar dos fiéis, faziam os antigos e infiéis, como eu vi, quando me o Infante Dom Luis, vosso tio que Deus tem, levou a mostrar a Serra de Sintra, mandando-me para isso chamar a Lisboa, quando vim de Itália. E vimos em a foz do rio de Colares, prezada em outro tempo dos Romanos, sobre um pequeno outeiro junto do mar Oceano, um círculo ao redor cheio de cipos e memórias dos imperadores de Roma que vieram àquele lugar; e cada um punha um cipo com seu letreiro ao Sol Eterno e à Lua, a quem aquele promontório foi dos gentios dedicado.
O que nós, espiritualmente mudado, podemos converter em cipos ou embasamento dos pés das Cruzes que digo, em louvor e memória do verdadeiro Sol de justiça, (…).



11. OS CIPOS AO SOL E À LUA EM COLARES

Nota ao capítulo 9º

"Dos Cipos ao Sol e à Lua dá notícia Rezende em 1593. (…) O qual podia ter obtido a informação de Hollanda. (…)"
Na obra Cintra Pinturesca, ou Memória descriptiva da Villa e Cintra, Colares e seus arredores, da autoria do Visconde de Juromenha, publicada em Lisboa no ano de 1838, no parágrafo intitulado De algumas antiguidades romanas encontradas em Cintra, Colares e seus termos, vem o seguinte: "Nas abas da serra junto ao Oceano tinham eles (romanos) um sumptuoso templo consagrado ao Sol e à Lua, do qual existiam ruínas ainda em tempo de André de Resende, que as viu, e da sua dedicação se achou a inscrição do teor seguinte:

SOLI ET LVNAE
COECIVS ACCEDIVS PERENIS
LEG. AVG. PRO. PROVINCIA
LVSITANIAE

Quer dizer: "Cécio Accédio Pereno, Lugar - Tenente de Augusto na Província da Lusitânia, dedicou ao Sol e à Lua".
Na mesma obra se faz referência ao "grande número de inscrições romanas encontradas nos termos destas duas Vilas (Sintra e Colares)", donde conclui que "não deixa a mais pequena dúvida a julgar que estes conquistadores (romanos) tivessem feito o assento neste solo de mais de uma povoação considerável". E menciona uma lápide votiva na Ermida da Senhora de Milides junto a Colares também dedicada "ao Sol eterno e à Lua pela eternidade do Império e saúde do imperador César Septímio Severo…" além de numerosas lápides sepulcrais. (…)

in: Da Fábrica Que Falece à Cidade de Lisboa, de Francisco de Holanda, Livros Horizonte, 1984, p. 31, 90 e 91.



Após investigação histórica e arqueológica no sítio indicado pelos documentos assinalados, foram encontrados (2007) os elementos que demonstram a existência de um Santuário Romano consagrado ao Sol, à Lua e ao Oceano, ao centro das duas praias actuais em Colares: Praia das Maças e Praia Pequena. Local considerado o promontório mais ocidental do Império de Romano, e assinalado no mapa do século II d.c. do imperador Claudio Ptolomeu.
Após escavações arqueológicas (ainda em acção) foram encontrados um número considerável de vestígios que confirmaram a sua existência e ainda para além do monumento romano dedicado ao Sol e à Lua, encontrou-se ainda um Ribad (ritual muçulmano), bem como inscrições em pedra de origem grega tal como:

AO SOL, À LUA, AS DADIVAS GRAVADAS AS MUSAS

in: «SOLI INVICTO - Ao Sol Invencível», Conferência Comemorativa do Solstício de Inverno, por José Cardim Ribeiro, Museu Arqueológico de São Miguel de Odrinhas (Sintra), 19 de Dezembro de 2015.

29 outubro 2015

Odisseia | Homero


Musa, fala-me do herói dos mil estratagemas, que tanto errou depois de a sua astúcia ter feito saquear a acrópole sagrada de Tróade, que visitou as cidades e conheceu os costumes de tantos homens! Quão grandes tormentos o seu coração padeceu por sobre o mar, quando ele lutava pela vida e pelo regresso dos seus companheiros! Mas não conseguiu salvá-los apesar do seu desejo: o desvario deles perdeu-os, insensatos que devoraram os bois de Hélios Hiperíon. E este não os deixou ver o dia do regresso. Conta-nos a nós também estas aventuras, deusa nascida de Zeus, começando por onde te aprouver.
Nesse tempo todos os que haviam escapado ao brusco trespasse estavam já nos seus lares, salvos da batalha e do mar. Só Ulisses almejava ainda pelo regresso e pela esposa. Uma ninfa, Calipso, uma deusa augusta, retinha-o nas suas grutas profundas, ansiando por tê-lo como marido.

in: Odisseia, de Homero, Europa-América, 1990, p. 13.

29 setembro 2015

O Terceiro Chimpanzé | Jared Diamond

As pistas que nos levam a perceber quando, porquê e de que maneira deixámos de ser apenas outra espécie de grande mamífero surgiram de três tipos de dados científicos.
(…)
Uma questão fundamental tem que ver simplesmente com a dimensão das diferenças genéticas entre nós e os chimpanzés.
(…)

in: O Terceiro Chimpanzé, de Jared Diamond, Círculo de Leitores, 2014

05 agosto 2015

Gaivota | Richard Bach

Fernão passava os dias sozinho, a experimentar, fazendo centenas de voos rasos.
(…)
Cuidadoso como era, esforçando-se até ao limite, perdia o controle a alta velocidade.
(…)
Caiu outra vez no mesmo erro terrível, e, a cento e trinta quilómetros horários, foi como se tivesse sido atingido por dinamite.
(…)
As suas asas eram barras de chumbo despedaçado, mas o peso do fracasso era-lhe mais doloroso. Desejou, debilmente, que o peso fosse suficiente para o arrastar docemente até ao fundo, e acabar de uma vez.
(…)
O lugar de uma gaivota à noite é a costa, e a partir desse momento prometeu a si mesmo ser uma gaivota normal. Assim, todos ficariam felizes.
(…)
No entanto, não sentia remorsos de por não ter cumprido as promessas que fizera a si próprio.

in: Fernão Capelo Gaivota, de Richard Bach, Publicações Europa-América, Lisboa, 2001

14 julho 2015

Humanidade


O esperma não é uma pessoa, o óvulo também não o é, nem o embrião. A humanidade surge num homem, não com a sua forma (humana), mas com a sua relação (humana) com o mundo. O simples facto de estar no mundo não é suficiente; a barata também está no mundo. É necessária uma conexão, uma relação interactiva, um vínculo com a realidade tangível.

in: A Potência de Existir, de Michel Onfray, Campo da Comunicação, p. 186.

23 abril 2015

Criar imagens



"Não há arte sem um olhar que a veja como arte."
A arte em geral existe em virtude de um regime de identificação - de disjunção - que dá visibilidade e significação a práticas de arranjo de palavras, de arranjo expositivo das cores, de modelagem, dos volumes ou de evolução dos corpos, que decidem, por exemplo, o que é uma pintura, o que se faz ao pintar e o que se vê num mural ou numa tela pintados."

in: O Destino das Imagens, de Jacques Rancière, Orfeu Negro, Lisboa, 2011, p. 99 e 101.
Obras: Poemas e Desenhos, de Ana Paula Gaspar

16 março 2015

3 + 17 = 1 [Uma Linha]



A linha e o desenho das estruturas do pensamento.
As ligações neuronais e o significado adquirido pelas palavras.
Os conceitos e a sua significação.
As palavras que aqui se encontram escritas, estão organizadas em conjuntos de cerca de três, e são unidas por uma linha. Esta desenvolve-se e interliga-se com as seguintes, criando deste modo uma única linha, que apesar de única é interrompida por um espaço, espaço dedicado ao pensamento e à passagem para outro ano (esta ligação remete para o que corresponde a um ano lectivo, do ponto de vista académico).
Entenda-se por viagens um percurso efectuado entre Lisboa e Portalegre e Portalegre e Lisboa durante dezassete anos consecutivos e três enquanto estudante e também eles seguidos.
O sentido e a sua significação advém de um sentimento profundo no que diz respeito à consciencialização de um percurso e das várias oportunidades em cada viagem e em cada momento que o próprio percurso proporciona, pois viaja com ele e o corpo e a mente.
É um desenho a partir de uma linha. É uma linha a partir de um desenho.
É um desenho de um pensamento que não se vê, mas que se sente.
É um desenho da linha que desenha a palavra e esta adquire um significado num contexto de simbiose entre o riscar e a continuidade desse traço, risco, linha, cuja transformação ocorre e ganha importância maior na leitura e nas várias leituras ao longo do seu caminhar, do percorrer, do recordar e sobretudo do tomar consciência.
A mostra de uma "única" linha é a tentativa de unir o que foi também um "único" percurso, constituído de variados percursos e de diversos pensamentos, sintetizados numa ideia: partilhar e consciencializar de uma linha que afinal vai sendo a linha da Vida.
Um percurso, uma linha, um desenho, um olhar, um pensamento, um passeio…

in: 3 + 17 = 1 [Uma Linha], Exposição de Ana Gaspar, Instituto Politécnico de Portalegre, 11 de Março. 2015

02 março 2015

Franz Kafka | O Abutre e Outras Histórias

Resoluções

Sair de um estado de espírito miserável, mesmo que o tenhamos de fazer por pura força de vontade, deveria ser fácil. Eu forço-me a sair da cadeira, a caminhar até à mesa, a exercitar a minha cabeça e pescoço, a fazer os meus olhos brilharem, a apertar os músculos à volta deles. Desafio os meus próprios sentimentos, dou entusiasticamente as boas-vindas a A supondo que ele me vem ver, tolero amavelmente B na minha sala, engulo tudo o que é dito em casa de C, qualquer que seja a dor e a preocupação que tal me possa custar, em longas goladas.
No entanto, o que eu consiga, um único deslize, e um deslize não pode ser evitado, interromperá o processo todo, seja ele fácil ou doloroso, e terei de me reduzir novamente ao meu próprio círculo.
Portanto, talvez o melhor recurso seja ir passivamente ao encontro de tudo, fazer de mim mesmo uma massa inerte e, se sentir que estou a deixar-me levar, para que não me deixe convencer a dar um único passo desnecessário, olhar os outros fixamente com os olhos de um animal, não sentir remorso; em suma, reduzir ao mínimo qualquer réstia de vida que ainda me sobre, ou seja, ampliar a paz final do cemitério e não permitir que, para além dela, algo mais sobreviva.
Um movimento característico numa tal condição é passar o dedo mínimo ao longo das sobrancelhas.

in: Resoluções, de Franz Kafka, in: O Abutre e Outras Histórias, Estrofes e Versos, 2009, p. 89 e 90.

16 fevereiro 2015

Monólito | Pedro Vaz


 

A exposição Monólito, de Pedro Vaz, apresenta-nos um desafio que parte de três elementos: uma pedra, um mapa e um filme. Marco inicial, desenho de projecto, a pedra e o mapa funcionam como indícios que o filme revela, incitando-nos à própria descoberta.
Acompanhando um curso de água, como a linha de uma escrita pré-determinada da paisagem, este vídeo - parte obra documental, parte ficção - permite-nos testemunhar o itinerário de uma personagem (um alter ego a que o autor se refere como "ele") na sua deambulação metafórica.
Narrativa evocadora da viagem essencial, "Monólito" é o resultado de um encantamento (ou uma invocação) pela pedra, pelo uno, pelo caminho como processo artístico (de que o mapa é também símbolo), da libertação para a elevação, conduzindo à criação, cujo corolário iremos descobrir no jardim Botânico O Chão das Artes, escondido entre as árvores da Mata.

in: Monólito, Excerto do texto de Emília Ferreira, Casa da Cerca, Almada, 14 de Fevereiro de 2015

14 fevereiro 2015

Dafnis e Cloé | Longus

… A época do ano também os excitava. Era já o fim da Primavera e o princípio do Verão: a vegetação inteira resplandecia de vigor, com as árvores cobertas de fruta e os campos de trigo ceifado. Encantador era o ruído das cigarras, suave o odor dos frutos, agradável o balir das ovelhas. Dir-se-ia que por seu turno os ribeiros cantavam correndo devagar, que os ventos tocavam flauta nos pinheiros, que as maçãs se deixavam cair por terra sob o efeito do amor, que o sol, guloso de beleza, despia toda a gente. Dafnis, que toda aquela atmosfera excitava, entrava nos ribeiros, umas vezes para neles se banhar, outras para pescar os peixes irrequietos. Muitas vezes bebia neles também, pensado apagar a febre que sentia em si. Quanto a Cloé, depois de ter mungido as suas ovelhas e a maior parte das cabras, passava muito tempo a coalhar o leite, porque as moscas a incomodavam imenso e a picavam quando ela as enxotava. Depois do que, lavava a cara, engrinaldava-se com raminhos de pinheiro, punha à volta da cintura a pele de gazela e, enchia de vinho e de leite preparando uma bebida que partilhava com Dafnis.
Mas quando chegava o meio dia, eles tornavam-se prisioneiros dos próprios olhares. Ela, ao olhar para Dafnis despido, sentia-se arrebatada por aquela beleza perfeita e sentia-se aniquilada diante daquele rapaz no qual ela não conseguia encontrar nada a criticar. Ele, ao vê-la com a pele de gazela e a grinalda de pinheiro, a estender-lhe a escudela, julgava estar a olhar para uma das Ninfas da gruta. Ele pegava nos raminhos de pinheiro que ela tinha na cabeça e fazia para si uma grinalda, depois de a ter levada aos lábios. Por seu lado, enquanto ele tomava banho todo nu, ela agarrava na roupa dele para se vestir com ela, depois de a ter igualmente levado aos lábios. Às vezes, atiravam maçãs um ao outro, e arranjavam as cabeleiras penteando-se um ao outro. Ela, comparava a cabeleira de Dafnis, a sebes de murta porque era escura. Ele, comparava o rosto de Cloé a uma maçã porque ele era branco e rosado. Ensinava-lhe também a tocar flauta e, quando ela começava a soprar, ele tirava-lhe a flauta e fazia correr os lábios sobre as canas: parecia corrigir os erros, na realidade, através daquela flauta, eram de facto beijos que ele dava a Cloé. …

in: Dafnis e Cloé, de Longus, (Canto Nono), Editorial Teorema, 1996  

01 fevereiro 2015

Numa Alma …


Numa alma não cultivada os desejos são todos materiais: sexo, alimento, poder, prazer físico. O desejo da alma é a posse: posse do amado, da fama, da fortuna, do poder.

Numa alma harmoniosa esses objectivos são substituídos pelo desejo da posse das ideias puras: o bom (justo/injusto). O verdadeiro e o belo. Quer-se possuí-los mas para isso tem que se fazer um longo caminho de aperfeiçoamento espiritual que nos permita anular os desejos que nos afastam do mundo das ideias e cultivar os pensamentos abstractos.

in: Os Primórdios da Psicologia na Grécia, de Rodrigo de Sá-Saraiva, 2014, p. 9.

22 janeiro 2015

Rainer Maria Rilke | Cartas a Um Jovem Poeta

Paris, 17 de Fevereiro de 1903


Estimado Senhor,

A sua carta chegou-me há poucos dias. Quero agradecer-lhe a sua grande e amável confiança. Pouco mais posso fazer para além de agradecer. Não posso pronunciar-me sobre a qualidade dos seus versos, pois sou avesso a qualquer intenção crítica. Nada está mais longe de tocar numa obra de arte do que palavras críticas: delas resultam apenas mal-entendidos mais ou menos felizes. As coisas não são tão apreensíveis nem tão dizíveis como nos fazem crer; quase todos os eventos são inefáveis, desenrolam-se num espaço onde as palavras nunca entram, e os mais inefáveis entre eles são as obras de arte, existências misteriosas cuja vida, ao lado da nossa que se perde, perdura.
Tendo começado com este aviso, devo ainda dizer-lhe que os seus versos não têm um estilo próprio, embora traiam indícios silenciosos e velados de uma voz pessoal. Os mais evidentes encontram-se no seu último poema, «A minha alma». Há nele qualquer coisa que quer chegar à palavra e à forma. E no seu bonito poema «A Leopardi» talvez cresça já uma qualquer afinidade com esse grande solitário. Contudo, os seus poemas não têm ainda vida própria, não são autónomos, nem mesmo o seu último poema ou aquele que dedicou a Leopardi. A sua gentil carta, que acompanhava os poemas, veio esclarecer algumas das falhas que pressenti ao ler os seus versos sem que nesse momento conseguisse nomeá-las.
Pergunta-me se os seus versos são bons. Pergunta-me a mim. Já antes perguntou a outros. Envia-os a revistas. Compara-os com outros poemas, apoquenta-se quando algumas redacções rejeitam os seus esforços. Pois bem, e já que me permite aconselhá-lo, peço-lhe que desista de tudo isso. Está a olhar para fora de si, e é sobretudo isso que não deve fazer agora. Ninguém o pode aconselhar, ninguém o pode ajudar, ninguém. Há uma única via. Entre dentro de si. Investigue a razão que o leva a escrever, veja se ela lançou raízes no lugar mais recôndito do seu coração, pergunte se morreria caso fosse impedido de escrever. Acima de tudo, na hora mais silenciosa da noite, pergunte a si próprio: tenho de escrever? Escave dentro de si até encontrar uma resposta profunda. E se esta resposta for afirmativa, se puder enfrentar esta séria pergunta com um «tenho» simples e forte, então construa a sua vida de acordo com esta necessidade; a sua vida, mesmo nas horas mais indiferentes e pequenas, terá de ser um sinal e um testemunho deste ímpeto. Aproxime-se então da Natureza. Tente então dizer, como o primeiro homem, o que vê e o que vive e ama e perde. Não escreva poemas de amor; evite por ora as formas mais comuns e correntes: são elas as mais difíceis, pois só uma grande força, já amadurecida, conseguirá criar uma coisa própria por entre a abundância de boas e por vezes brilhantes prestações. Evite por isso os motivos gerais e prefira aqueles que o seu quotidiano lhe oferece; descreva as suas tristezas e desejos, os pensamentos passageiros e a fé numa qualquer beleza - descreva tudo isso com sinceridade íntima, tranquila, modesta, e para lhes dar expressão sirva-se das coisas que o rodeiam, das imagens dos seus sonhos e dos objectos das suas recordações. Se o seu dia-a-dia lhe parecer pobre, não o acuse de pobreza; acuse-se a si próprio, reconheça que não é ainda poeta o bastante para conseguir invocar as suas riquezas; pois para um criador não há pobreza e nenhum lugar é indiferente e pobre. E mesmo que estivesse numa prisão, cujas paredes separassem os ruídos do mundo dos seus sentidos, teria ainda e sempre a sua infância, essa riqueza preciosa e imperial, a câmara do tesouro da lembrança. Dirija a ela a sua atenção. Tente levantar as sensações submersas desse passado longínquo; a sua personalidade fortalecer-se-á, a sua solidão estender-se-á até se tornar uma casa à luz do cair da tarde ou do amanhecer, por onde o ruído dos outros passa à distância. E se, depois deste movimento de introspecção, depois deste mergulho no seu próprio mundo, se depois nascerem versos, já não lhe ocorrerá perguntar a alguém se eles são bons. Também não tentará despertar o interesse das revistas por estes trabalhos, pois vê-los-á como propriedade sua, natural e preciosa, como uma parte e uma voz da sua vida. A boa obra de arte nasce da necessidade. É esta origem, e nada mais, que determina o juízo do seu valor. Por esta razão, caro Senhor, não posso dar-lhe outro conselho para além deste: entre dentro de si e sonde as profundezas donde brota a sua vida; é nesta fonte que se encontrará a resposta à pergunta: tenho de criar? Admita a resposta, qualquer que ela seja, sem a interpretar. Talvez venha a descobrir que nasceu para ser artista. Nesse caso, aceite o seu destino, carregue o seu peso e grandeza, sem perguntar por proveitos que possam vir de fora. Pois o criador tem de ser um mundo para si mesmo, tem de encontrar tudo dentro de si e na Natureza a que se uniu.
Talvez aconteça que, depois desta descida dentro de si e da sua solidão, tenha que renunciar a ser poeta; (como disse, basta sentir que se consegue viver sem escrever para não dever sequer tentá-lo). Mas mesmo então este exame de consciência que o insto a fazer não terá sido em vão. A sua vida encontrará em todo o caso os seus próprios caminhos, e que eles sejam bons, ricos e longos é o que eu lhe desejo mais do que consigo dizer.
O que devo acrescentar ainda? Parece-me que tudo foi sublinhado com a importância devida. Queria apenas aconselhá-lo, por fim, a velar em silêncio e com seriedade pelo seu crescimento; não há perturbação mais violenta do que olhar para fora e esperar respostas exteriores a perguntas a que talvez só a sua sensibilidade mais íntima, nas horas de maior silêncio, poderá responder.
Foi com grande alegria que encontrei na sua carta o nome do Professor Horacek; tenho uma grande admiração por este amável erudito e uma gratidão acalentada ao longo dos anos. Peço-lhe que lhe transmita os meus sentimentos; é muita bondade dele lembrar-se ainda de mim, e sei dar-lhe o justo valor.
Devolvo-lhe os versos que amigavelmente me enviou. E agradeço-lhe uma vez a sua grande e amável confiança, de que tentei ser mais digno, através da sinceridade e boa-fé desta minha resposta, do que como estranho realmente sou.
Com grande estima e dedicação,

Rainer Maria Rilke

in: Cartas a um jovem Poeta, de Rainer Maria Rilke (Tradução de Isabel Castro Silva), Edições Quasi, (1875-1926)