Aguarelas Finas, Le Corbusier | Maison La Roche, Paris

28 dezembro 2021

A Divina Comédia | Dante Alighieri


Dir-se-ia que, muito avant la lettre, a escrita de Dante tem uma qualidade visualmente cinematográfica (…)

A Divina Comédia, que, «como todas as grandes obras canónicas, destrói a distinção entre escrita sagrada e secular», é também, entre muitas outras coisas, essa tensão vertiginosa entre micro e macrocosmos, esse confronto do indivíduo concreto com o universo dos seus saberes integrados, numa epopeia do conhecimento humano apostado na busca obsessiva de uma verdade do Ser, busca essa que, aqui culmina na visão de Deus, termo do arco sustentado que vai do desespero humano e da miséria humana a uma absoluta serenidade final. (…)

Conviveu com autores e outros artistas (sobretudo músicos e pintores), construiu a sua própria noção de modernidade estética, teve experiências sentimentais de vária ordem, das quais uma decisiva para a vida e para a sua obra, pelo menos no plano literário. (…)

Acresce que ele faz também a longa e irreversível experiência do exílio e da conspiração, sabendo-se condenado à morte, se regressar a Florença. Guiado pela sombra de Virgílio, primeiro, pelas presenças de Beatriz e de S. Bernardo, depois, acompanhado longamente por Estácio, entretanto fará a sua jornada transcendente, da abjeção das trevas à redenção da luz. (…)

(…)

Ó musas e alto empenho, me ajudai;

ó mente que escreveste do que vias,

tua nobreza aqui provar-se vai.

(…)

Eu sou Beatriz, ora a fazer-te andar;

do lugar venho a que voltar pretendo,

e amor me move, que me faz falar.

(…)

«Ora desçamos pois ao cego mundo»,

começou o poeta a empalidece:

«irei primeiro e tu irás segundo.»

(…)

É Homero, o poeta soberano;

o outro Horário sátiro que vem;

o outro Ovídeo e o último Lucano.

(…)


in: A Divina Comédia, de Dante Alighieri, Quetzal Editora, Lisboa, 2021

Obra de Arte: Inferno XXXIV, de Rui Chafes, («Se transmutem em longos cabelos femininos - e ganham corpo em ferro e desestabilizam, em suspensão, o espaço»), 2014

13 dezembro 2021

O Infinito Num Junco | Irene Vallejo

A Lenda de Alexandria não parou de crescer. Dois séculos depois de se escrever o diálogo de Gílide e da rapariga tentada, Alexandria foi o cenário de um dos maiores mitos eróticos de todos os tempos: a história de amor entre Cleópatra e Marco Aurélio. (…) Certa vez, durante uma madrugada alcoólica, num gesto de ostentação provocadora, ela dissolveu uma pérola de tamanho fabuloso em vinagre e bebeu-a. Por isso, Marco Aurélio escolheu um presente do qual não poderia desdenhar com um ar aborrecido: pôs aos seus pés duzentos mil volumes para a Grande Biblioteca. Em Alexandria, os livros eram combustível para as paixões. (…)

Ptolomeu instalou-se no Egipto, onde passaria o resto da sua vida. (…) Tudo ali era surpreendente: as pirâmides; as íbis; as tempestades de areia; as ondas de dunas; o galope dos camelos; os estranhos deuses com cabeça de animal; os eunucos; as perucas e as cabeças rapadas; as enchentes humanas nos dias de festa; os gatos sagrados, que era crime matar; os hieróglifos; as cerimónias palacianas; os templos à escala sobre-humana; o enorme poder dos sacerdotes; o negro e lamacento Nilo a arrastar-se pelo seu delta rumo ao mar; os crocodilos; as planícies onde as abundantes colheitas se alimentam dos ossos dos mortos; a cerveja; os hipopótamos; o deserto, onde nada permanece a salvo do tempo destruidor; o embalsamento; as múmias; a vida ritualizada; o amor pelo passado; o culto da morte. (…) Ptolomeu destinou grandes riquezas para a construção do Museu e da Biblioteca de Alexandria. (…)

Para um grego, um museu era um recinto sagrado em honra das musas, as filhas da Memória, as deusas da inspiração. A Academia de Platão e, mais tarde, o liceu de Aristóteles tinham a sua sede em pequenas florestas dedicadas às musas porque o exercício do pensamento e da educação podiam entender-se como atos metafóricos e luminosos de culto às nove musas. O museu de Ptolomeu chegou mais longe: foi uma das instituições mais ambiciosas do helenismo, uma versão primitiva dos nossos centros de investigação, universidades e laboratórios de ideias. Eram convidados para o Museu os melhores escritores, poetas, cientistas e filósofos da época. Os escolhidos mantinham o posto para sempre, libertados de qualquer preocupação material, para que pudessem dedicar todas as suas energias a pensar e a criar. Ptolomeu atribuía-lhes um salário, alojamento gratuito e um lugar num luxuoso refeitório coletivo. Para além disso, eximia-os de pagarem impostos, talvez o melhor presente em tempos de voracidade das arcas reais.

Durante séculos, o museu reuniu, como deseja Ptolomeu, uma resplandecente constelação de nomes: o matemático Euclides, que formulou os teoremas da geometria; Estratão, o maior físico da época; o astrónomo Aristarco de Samos; Erastóstenes, que calculou o perímetro da Terra com admirável exactidão; Herófilo, pioneiro da anatomia; Arquimedes, inventor da hidrostática; Dionísio de Trácia, que escreveu o primeiro tratado de gramática; os poetas Calímaco e Apolónio de Rodes. Em Alexandria nasceram teorias revolucionárias, como o modelo heliocêntrico do sistema solar, que resgatado no século XVI, provocaria a revolução copernicana e a condenação de Galileu. Quebrou-se o tabu das dissecações de cadáveres - e também, segundo as más-línguas, de presos vivos das prisões - que permitiram avançar na medicina. Desenvolveram-se novos ramos de saber, como a trigonometria, a gramática e a conservação de manuscritos. Ali, teve início o estudo filológico dos textos. (…)

A Biblioteca tinha um lugar essencial naquela pequena cidade de sábios. Poucas vezes na História se fez um esforço parecido, consciente e deliberado, para reunir num único lugar as mentes mais brilhantes da época. E nunca antes os melhores pensadores tiveram acesso a tantos livros, à memória do saber anterior, aos sussurros do passado com os quais aprender o ofício de pensar.

O Museu e a Biblioteca faziam parte do recinto do palácio, protegidos pelos muros da fortaleza. A vida daqueles primeiros investigadores profissionais era passada no isolamento do espaço fortificado. A sua rotina consistia em dar conferências, aulas e discussões públicas, mas, acima de tudo, era a silenciosa investigação que dominava. (…)

Desde os primeiros séculos da escrita até à Idade Média, a norma era ler em voz alta, para si próprio ou para os outros, e os escritores pronunciavam as frases à medida que as escreviam ouvindo assim a sua musicalidade. Os livros não eram uma canção que se cantava com a mente, como agora, mas sim uma melodia que saltava para os lábios e soava em voz alta. O leitor convertia-se no intérprete que lhe emprestava as suas cordas vocais. Um texto escrito entendia-se como uma partitura muito básica e por isso apareciam as palavras, uma atrás de outra, numa cadeia contínua sem separações nem sinais de pontuação- era preciso pronúncia-las para entendê-las. Quando se lia um livro costumava haver testemunhas. Eram frequentes as leituras em público, e os relatos que agradavam andavam de boca em boca. (…) 

Talvez por esse motivo, os primeiros a ler como você, em silêncio, em conversa muda com o escritor, tenham chamado poderosamente a atenção. No século IV, Agostinho de Hipona ficou tão intrigado ao ver o bispo Ambrósio de Milão ler desta forma que anotou nas suas Confissões. Era a primeira vez que alguém fazia algo assim à sua frente. (…)

A nossa pele é uma grande página em branco; o corpo, um livro. O tempo vai escrevendo pouco a pouco a sua história nas faces, nos ventres, nas barrigas, nos sexos, nas pernas. Acabados de chegar ao mundo, imprimem-nos na barriga um grande «O», no umbigo. Depois vão aparecendo lentamente outras letras. As linhas da mão. Os sinais, como pontos finais. Os riscos que os médicos deixam quando abrem a carne e depois a cosem. Com os anos, as cicatrizes, as rugas, as manchas e as ramificações varicosas traçam as sílabas que relatam a vida. (…)

Só há uma presença feminina no cânone literário grego: Safo. (…)

Safo - conta-o ela própria- era baixinha, morena e pouco atraente. Nasceu numa família aristocrática em decadência. Ao contrário de Cleobulina, não era filha de reis. O seu irmão esbanjou a fortuna da família, ou o que restava dela. Casaram-na com um estranho, como era habitual, e teve uma filha. Tudo a encaminhava para uma vida anónima. As mulheres gregas não escreviam poesia épica, claro. (…)

Safo escreveu: «Alguns dizem que nada é mais belo na negra terra do que um esquadrão de ginetes, ou de infantes, ou de naus. Mas eu digo que o mais belo é a pessoa amada.» Estas simples palavras escondem uma revolução mental. Quando foram escritas, no século VI a.C., quebraram os esquemas tradicionais. Num mundo profundamente autoritário, o poema surpreende porque múltiplas perspectivas, e até parece celebrar a liberdade do desacordo. Para além disso, atreve-se a questionar aquilo que a maioria admira: os desfiles, os exércitos, a exibição e o alarde de poder. (…) Diante das aborrecidas exibições de força guerreira, ela preferia sentir e evocar o desejo. «O mais belo é o que cada um ama.» Inesperado, este verso afirma que a beleza está primeiro no olhar do amante; que não desejamos quem nos parece mais atraente, mas sim parece-nos mais atraente porque o desejamos. Segundo Safo, quem ama cria a beleza; não se rende a ela como as pessoas costumam pensar. Desejar é um ato criativo, tal como escrever versos. Favorecida com o dom da música, a pequena e feia Safo podia decorar o minúsculo mundo que a rodeava com as suas paixões e embelezá-lo. (…) O seu casamento acabou e ela trocou as rotinas do lar por uma nova atividade (…) Sabemos que orientou um grupo de raparigas novas, filhas de famílias ilustres. Sabemos também que se apaixonou em momentos sucessivos por algumas delas - Átis, Dica, Irana, Anactória - e que juntas compunham poesia, faziam sacrifícios a Afrodite, entrançavam coroas de flores, sentiam desejo, acariciavam-se, cantavam e dançavam, alheias aos homens. (…) Dizem-nos que na ilha de Lesbos havia grupos parecidos, orientados por mulheres a quem a Safo considera inimigas. (…) Os gregos achavam que o amor era a principal força educadora. (…)

Num fragmento de apenas uma linha que chegou até nós por acaso, lemos: «eu afirmo que alguém se lembrará de todas nós.» E, embora aquela possibilidade parecesse ser quase impossível, após trinta séculos continuamos a ouvir a voz ténue daquela mulher baixinha.    


Ovídio foi um explorador de novos territórios literários, e o primeiro escritor a prestar uma atenção singularizada às suas leitoras. (…) Numa época de rápida expansão nos horizontes de leitura, Ovídio juntou-se com agrado à transgressão dos valores arcaicos e das velhas normas. A sua literatura jovem, inconformista e erótica atraía as romanas da época; ele sabia-o e jogava com os limites. Não via o abismo que pisava. (…) Ovídio lançou um olhar revolucionário sobre algumas questões essenciais na Roma do século I a.C.: o prazer, consentimento e a beleza. Naquela época os casamentos eram uma combinação entre famílias, que costumavam entregar raparigas adolescentes a homens poderosos já maduros. (…) Ovídio desfez todas essas convenções e clichés ao escrever que gostava de mulheres maduras, não de crianças. E que o seu prazer erótico precisava do prazer da sua companheira. Eis uma passagem de A Arte de Amar: «Prefiro uma amante que tenha ultrapassado os trinta e cinco anos e já tenha cabelos grisalhos na sua melena: que os apressados bebam o vinho novo; eu gosto mais de uma mulher madura que conheça o seu prazer. Tem experiência, que constitui todo o talento, e conhece mil posições no amor. A voluptuosidade nela não é falsa. E, quando a mulher goza ao mesmo tempo que o seu amante, é o cúmulo do prazer. Odeio o abraço em que um e outra não se entregam inteiramente. Odeio essas uniões que não deixam os dois exaustos. Odeio uma mulher que se entrega porque tem de fazê-lo, que não se humedece, que pensa nas suas tarefas. Não quero uma mulher que me dê prazer por dever. Que nenhuma mulher faça amor comigo por obrigação! Gosto que a sua voz traduza a sua alegria, que murmure que é preciso ir mais devagar, que ainda me devo conter. Gosto de ver a minha amante a usufruir com os olhos vencidos e que desfaleça e não permita que a acaricie mais.» (…)

A Arte de Amar foi considerado um livro imoral e perigoso. (…)

No ano 8, Ovídio, que tinha acabado de fazer cinquenta anos, foi desterrado repentinamente, através de édito imperial, para a aldeia de Tomi - a atual Constança, na Roménia. (…) O poeta partiu sozinho para o exílio. (…) Ovídio ia ficar separado de tudo aquilo que, na sua opinião, tornava a vida digna de ser vivida: amigos, amor, livros, conversas e, sobretudo, paz. (…) Sobreviveu nove anos, a enviar constantes súplicas para Roma e a escrever as suas Tristia, um precedente da carta De Profundis que séculos mais tarde redigiria desde a prisão outro grande bon vivant castigado, Oscar Wilde. (…)

A Arte de Amar, esse livrinho alegre e erótico, perseguido por um dos imperadores mais poderosos do Império e várias vezes proibido em épocas posteriores por ser obsceno e escandaloso, encontrou o caminho até às nossas bibliotecas. A sua história é a de um longo salvamento, levado a cabo século após século pelos leitores em quem Ovídio confiou, contra as autoridades. A subversão também cria clássicos.


Obra de Arte: Escultura de Safo, 1883, do Artista Italiano Francesco Confalonieri (1850-1925), Palácio Nacional da Ajuda, Lisboa

in: O Infinito Num Junco, de Irene Vallejo, Bertrand Editora, Lisboa, 2021

24 outubro 2021

Azul | História de uma Cor

 

O Sol | Ponto de Partida 

Os romanos, como antes deles os Gregos, conhecem o índigo asiático. Distinguem-no nitidamente do pastel-dos-tintureiros dos Celtas e dos Germanos e sabem que é uma tintura potente que vem das Índias, daí o seu nome em latim: indicum. Mas desconhecem a natureza vegetal desse produto e crêem tratar-se de uma pedra, porque o índigo chega do Oriente sob a forma de blocos compactos, resultantes do esmagamento das folhas, prensadas até se formar uma pasta que depois se pôs a secar. Pensam, por isso, que se trata de um mineral; alguns autores, seguindo Dioscórides, consideram-no até uma pedra semipreciosa, próxima do lápis-lazúli. Esta crença na natureza mineral do índigo perdurará na Europa até ao século XVI. (…)

A nova moda dos tons azuis a partir do século XIII é favorecida pelos progressos das tinturas e pelo desenvolvimento da cultura do pastel-dos-tintureiros, uma planta crucífera que cresce espontaneamente em solos argilosos em muitas regiões da Europa. O princípio corante, a indigotina, encontra-se essencialmente nas suas folhas. Desde cerca de 1230 que, tal como a garança, é objeto de uma verdadeira cultura industrial destinada a satisfazer a crescente procura por parte de fabricantes de tecidos e tintureiros. As operações necessárias para se obter o corante azul são longas e complexas. Uma vez colhidas, as folhas são moídas numa atafona até se conseguir uma pasta homogénea que é deixada a fermentar durante duas ou três semanas. Em seguida, com essa pasta - o célebre pastel - formam-se umas bolas ou «pães», de cerca de quinze centímetros de diâmetro, que ficam a secar sobre crivos, ao abrigo das intempéries. Ao cabo de algumas semanas, são por fim vendidas ao comerciante de pastel: é ele quem se encarrega de transformar essas bolas em tintura. Trabalho lento, delicado, sujador, nauseabundo, que requer uma mão-de-obra especializada - e por isso o pastel é um produto tão caro, apesar de o pastel-dos-tintureiros crescer facilmente em variadíssimos solos e de, para tingir, não ser preciso (ou quase não ser preciso) mordaçar, ao contrário do que sucede com as tinturas em vermelho. (…)

A nova moda dos azuis contribui para a fortuna dos tintureiros especializados nessa cor; pouco a pouco tomam a liderança da profissão, passando a ocupar o lugar até então detido pelos poderosos tintureiros de vermelho. (…)

O século XVII é de facto o grande século das investigações sobre a Natureza e a medida da luz. Desde 1666 que, a partir das célebres experiências do prisma, Isaac Newton decompõe a luz branca em raios de cor e descobre o espectro, uma nova ordem das cores no seio da qual o preto e o branco deixam de ter o seu lugar; a ciência vem assim confirmar o que a moral e a sociedade há muito praticam: a exclusão do preto e do branco do universo das cores. Uma ordem em que a posição central também já não é ocupada pelo vermelho, como nos sistemas antigos e medievais, mas sim pelo azul e pelo verde. Além disso, Newton mostra que a cor, que tem a sua origem na transmissão e na dispersão da luz, pode, tal como esta, medir-se. A partir de então a colorimetria invade as artes e as ciências. (…)

 in: Azul, História de uma Cor, de Michel Pastoureau, Orfeu Negro, Lisboa, 2016

Obra de Arte: O Sol | Ponto de Partida, de Ana Gaspar, Ecoline sobre papel Fabriano, 2019/2020

20 setembro 2021

Apologia de Sócrates | Platão

 O conhecimento é a base para a vida autêntica, a vida examinada que vale a pena viver, acima do senso comum e das tradições não examinadas.

Se há uma erótica socrática, este livro insinua-a é uma erótica do conhecimento, um conhecimento que funda o valor do indivíduo, protegendo a sua vida - ou o que hoje chamaríamos os seus direitos - ao conceder-lhe a possibilidade de pensar e verificar a verdade por si mesmo, nessa liberdade se sustentando, depois, a amizade aos outros, o amor, o bem estar, o deleite físico e espiritual, em suma, a felicidade. 

Há uma erótica socrática, a do seu ferocíssimo individualismo. Em nome da verdade, a livre expressão autoriza a cada indivíduo a faculdade de perguntar. (…)

E a felicidade requer que nos examinemos moralmente. (…) Como é que se pensa? Fazendo perguntas. (…)

Cada um de nós, homens, é o mais sábio de todos se, como Sócrates, se reconhecer que, na verdade, não tem valor nenhum o que julga ser o seu saber. (…)

Por consequência, os que são examinados por eles enfurecem-se comigo, em vez de se zangarem com eles, vindo dizer que Sócrates é um ignóbil que corrompe a juventude. (…)

Tenho o maior respeito e amor por vós, homens de Atenas, mas terei de obedecer ao deus e não a vós, e enquanto respirar e tiver forças não deixarei de filosofar. (…)

Não é do dinheiro que vem a virtude, é da virtude que vem o dinheiro e todas as outras coisas, para bem dos homens. (…)

Não vos enfureceis comigo por vos dizer mais uma verdade: não há ninguém no mundo que sobreviva, se genuinamente se vos opuser; a vós ou a outra maioria popular … Todo aquele que queira, na verdade, lutar pela justiça deve viver como um cidadão privado e não como uma figura pública, se deseja preservar a própria vida por algum tempo. (…)

 Nunca fui mestre de ninguém; (…) O que lhes agrada é testemunhar a forma como examino homens que pensam ser sábios quando não o são. (…) 

E, ainda melhor, continuaria o meu exame do verdadeiro e falso conhecimento, descobrindo lá quem é sábio, e quem finge ser sábio e não o é. (…)

Portanto, juizes, encarai a morte com esperança, e meditai nesta verdade - nenhum mal pode acontecer a um homem bom, nem na vida nem na morte. 


in: Apologia de Sócrates, de Platão, Guerra e Paz Editores, Lisboa, 2020

16 setembro 2021

Na Casa e no Museu Vieira da Silva


A partir de um eventual "fio de Ariane" … 

"Com que fios se tece a eternidade…" 

Suspenso, suspensão, delicado, poucas cores ou ausência de cor.

Apenas cru, branco, tonalidade suave clara.

Suavidade.

Clareza. Luz.

Linhas, linhas verticais.

Suspensão, fluidez.

Leveza, leve, fluído.

Transparência.

Linhas de cozer, ligar!

Ligação.

Como tecer a vida! Cozer, ligar as partes, unir tudo e deixar fluir, suspenso e ao sabor de quem passa!

Um por dia! Um dia de cada vez.

Mas, eis que surge um duplicado, um par de cada vez!

Quão fio de Ariane… tecendo a vida… ligando.

Frágil.

Fragilidade.

A linha que conduz a vida.


in: Ana Gaspar, em Residência Artística na Casa Maria Helena Vieira da Silva, Lisboa, de 3 a 13 de Agosto de 2021. 

18 julho 2021

Vieira da Silva | Artista Portuguesa

         

Sobre um fundo verde, irregularmente delimitado, pinceladas brancas sugerem uma escada de corda, pendurada numa estranha armação preta. Uma rapariguinha, vista de costas, está no meio dos degraus. Olhando para cima, está prestes a continuar a subida. A escolha do título deste Auto-Retrato (1932) surpreende o espectador. 

Quando Maria Helena Vieira da Silva realizou esta auto-representação da criança, suspensa entre o céu e terra, tinha 24 anos e retratara-se já várias vezes como jovem. O guache remete para o imaginário genuíno da sua infância. Conversas e entrevistas com a artista confirmam a importância dos primeiros anos de vida para a sua pintura. 

«As recordações, que guardo da minha vida, situam-se muito cedo. Comecei a viver aos dois anos. Comecei realmente a viver, a pensar … E essa vida tornou-se para mim um universo.»

A artista evoca com insistência o ambiente da casa do avô em Lisboa, onde viveu com a mãe de 1911 a 1926: «Cheguei à pintura, assim, em menina. Era a única criança numa casa muito grande, onde me perdia, onde havia muita coisa, muitos livros, mapas, pianos. Nesta casa, com a minha mãe, viúva desde muito nova, não tinha amiguinhas, não ia à escola… muitas vezes não havia ninguém … Ensinaram-me a ler quando era pequena, em português, em francês, em inglês, quase ao mesmo tempo e a tocar piano… Havia muitos livros ilustrados e eu olhava para as imagens e, ao mesmo tempo, lia, lia em qualquer sítio, sem restrição e podia mexer em tudo. Vivia assim, quase isolada, num mundo de adultos que escutava. E foi assim que cresci. Às vezes estava completamente só e às vezes estava triste, muito triste, mesmo muito triste. Refugiava-me então no mundo das cores e no mundo dos sons. Creio que tudo isto se fundia em mim num todo único.»

Para fugir ao enfado e à solidão seguia os conselhos dos adultos que lhe diziam: «Olha, olha os livros, olha a árvore, olha o pássaro … Ouve a música, ouve o barulho, ouve a chuva, ouve… é tão bonito! 

E diziam-lhe também: - Olha o céu, olha as estrelas!» e a rapariguinha folheava livros do avô e encontrou uma revista portuguesa ilustrada com representações de gravuras de Durer. (…)

Vieira nunca frequentou a escola. Foi instruída em casa, onde, a partir de 1919, começou a estudar três novas disciplinas- música, desenho e pintura. (…) A opção pela pintura revelou-se, contudo, definitiva. 

A partir de 1915 passou os verões em Sintra, numa casa que a mãe comprara. Situada na encosta do Palácio da Vila, abarcava uma vista que a fascinava. Ali desenhou os primeiros esboços da natureza. (…)

A vista de Sintra com as duas colinas quase simétricas no horizonte da pequena várzea guardaria para ela o carácter de uma visão, face à qual os seus futuros quadros teriam de se sair bem. 

Em 1932, em Paris, tentaria representá-la de cor em duas telas pequenas para explicar ao pintor Arpad Szenes a sua experiência. Foi também em Sintra, com dezassete anos, que Vieira leu sem parar, escondida numa árvore no jardim da casa, o Prometeu de Ésquilo. Tornou-se para ela uma parábola do Mundo: - «Todas as misérias do Homem já se encontram ali. Para mim foi uma grande descoberta, fiquei muito abalada. É de uma tal beleza, é de uma tal grandeza».

Com dezoito anos começou a questionar-se: - «Como fazer para pintar tudo isto e ser na mesma altura do meu tempo? Consolava-me dizendo que ia encontrar o caminho em Paris». Na companhia da mãe, no início de 1928, mudou-se para a capital francesa: - «Para o meu trabalho chegara o momento em que tinha necessidade de ir para Paris. Já não podia progredir em Lisboa. A pintura que aí fazia já não me satisfazia. Não sabia como fazer, nem que fazer. Começara, entretanto, a esculpir, o que me foi de grande utilidade porque me deu o contacto com o real.»

in: Vieira da Silva, Taschen, Lisboa, 1998

16 maio 2021

Um Ponto Verde no Espaço | Fundación Antonio Gala

A Terra, um Ponto Verde no espaço!

A Casa do Antonio Gala, Artista e Escritor-Poeta, recebeu-me muito bem, para criar um projeto artístico.

Esta Casa situada num antigo Convento do Século XVII, na cidade de Córdoba, em Espanha, designado por Convento do Corpo de Cristo. Um espaço em que o silêncio marca o tempo de reflexão e de profundidade espiritual e dele brota um Amor profundo cuja amplitude se eleva ao céu.

E, tendo como ponto de partida a própria casa, na qual estive uma semana, e em completo retiro espiritual, proporcionando-me um momento especial de criação conceptual, e permitindo-me um total despojamento.

Neste contexto, tão único e especial, nasceu um projeto artístico, também ele único, pois nunca voltará a repetir-se todo este processo físico e espiritual, cujo resultado aqui se demonstra sob o registo da fotografia.

O impacto de cada dia no meu corpo e na minha alma de artista e de mulher, provocou não só um êxtase de iluminação interior como uma dinâmica de dor e sofrimento pela existência de Ser. Todo este processo teve com certeza um resultado de elevação da alma e de um coração, aos mais profundos sentimentos, cuja sensibilidade se revelou através das caminhadas pela casa e pelos claustros em pleno silêncio.

O projeto foi-se revelando pela procura de um ponto verde na casa. Um ponto, um local, um lugar, ou seja um sítio onde brotassem flores e árvores, um pedaço de terra com erva fresca e água. Este ponto servia de ligação entre a terra e o céu, numa ligação entre as profundezas da alma e as que a elevam. Este ponto serviu para reflexão e para viagens ao interior e exterior de mim, e que me une a todo o Universo, através de um ponto verde neste Cosmo: a Terra.

Assim, foi neste contexto que persegui com passos determinados todos os cantos e recantos desta Casa, e levei comigo o Ponto Verde da Terra, e aí fui-me aproximando cada vez mais de cada momento único e especial para a minha conexão com as obras de arte ali expostas e com os lugares recolhidos deste espaço.

À medida que todo este processo se desenvolvia, também se desenvolvia em mim algo novo, cuja  transcendência me invadia de um modo transformador, e que sentia a cada segundo no meu corpo e alma.

Percorri então o Claustro com a fonte e a laranjeira, as arcadas, o Claustro com a relva, as árvores e a buganvília cor de rosa, a Biblioteca e os ateliês dos vários artistas residentes.





in: Um Ponto Verde no Espaço, de Ana Gaspar, Residência Artística na Fundação António Gala, em Córdoba, Espanha, Maio de 2021

14 abril 2021

A Simplicidade da Vida | Cor




"Uma das misteriosas leis da vida é que descobrimos sempre tarde demais os seus autênticos e essenciais valores: a juventude quando a perdemos, a saúde assim que nos abandona, e a liberdade, essa essência preciosíssima da nossa alma, só quando está a ponto de nos ser arrebatada ou quando já o foi."

in: Montaigne

Obra de Arte: tinta ecoline sobre papel japonês, 4 camadas unidas por linha e suportado por bambu, de Ana Paula Gaspar, "Índia", Abril de 2021

01 abril 2021

Criar Linhas | Percursos





 
 

É com Amor que tudo nasce.

É sem Amor que tudo morre.

É o ciclo infinito da Vida.


Obras:Criar Linhas/Percursos na Vida - Desenhos, de Ana Gaspar, 16. Março 2021

Poema: Amor, de Ana Gaspar, Março 2021

27 fevereiro 2021

Renasci - Obra/Poema


Já não sei se morri se nasci.

Já não sei se sou deste Planeta.

Ou, são os outros.

E, eu sou de outro.

Só sei que não sei para onde ir.


in: Renasci - Obra/Poema, de Ana Paula Gaspar, Serra do Louro, Portugal, 27 de Fevereiro 2021.

Obra: Linhas de Percurso Pessoal, Caneta sobre Papel, Janeiro de 2021

15 fevereiro 2021

Sentir e Saber | António Damásio

Esta abordagem começa com esses mesmos fenómenos mentais, quando nos empenhamos em observá-los usando a introspecção e anotando o que observamos. A introspecção tem os seus limites mas não tem nem rivais nem substitutos. Oferece-nos a única perspectiva direta sobre fenómenos que queremos entender e serviu memoravelmente os génios de William James, Sigmund Freud, Marcel Proust e Virginia Woolf. 

Os resultados da introspecção podem ser hoje enriquecidos pelos dados obtidos por diversos métodos que também visam fenómenos mentais mas que os investigam obliquamente e se dirigem a (1) manifestações comportamentais e (2) correlações biológicas, neurofisiológicas, físico-químicas e sociais. (…) Os textos que se seguem resultam da combinação destas abordagens com a introspecção. 

… há quatro mil milhões de anos. Mas a vida evoluiu sem palavras e sem pensamentos, sem sentimentos e sem raciocínio, desprovida de mentes e de consciência. Não obstante, os organismos vivos detetavam a presença de outros como eles e detetavam diversos elementos do seu ambiente. (…) Podemos dizer que «detetar» é uma forma primitiva de «sentir» e que resulta numa forma primitiva de «saber». Ainda mais curioso, os organismos vivos reagiam com inteligência ao que detetavam. Essa sua inteligência não se baseava na forma de conhecimento explícito que as nossas mentes empregam hoje em dia, dependendo, isso sim, de uma competência oculta que visava única e exclusivamente a sobrevivência. Esta inteligência não-explícita estava encarregue da curadoria da vida, gerindo-a de acordo com as regras e os regulamentos da homeostasia. 

… o objetivo da vida é a sobrevivência e a maneira mais lógica de conseguir sobreviver é seguir os ditames da homeostasia, o conjunto de procedimentos reguladores que possibilitam a vida logo quando esta floresceu nos primeiros organismos unicelulares. A seu tempo, quando os organismos multicelulares e multissistema entraram na moda - há cerca de três mil e quinhentos milhões de anos - a homeostasia passou a contar com a ajuda de dispositivos coordenadores recém-evoluídos e conhecidos como sistemas nervosos. Estava aberto o caminho para que esses sistemas nervosos passassem a gerir ações e a mapear estruturas e seguir-se-iam as imagens, e assim se deu origem às mentes. Centenas de milhares de anos depois, a homeostasia começou a ser regida em parte por essas mentes, essas mentes capazes de sentir e dotadas de consciência, que os sistemas nervosos haviam, entretanto, possibilitado. Os sentimentos, por um lado, e o raciocínio criativo, por outro, viriam a desempenhar papéis importantes na nova gerência da vida permitida pela consciência. (…)

No ramo da história da vida em que nos encontramos podemos identificar três fases evolutivas distintas e consecutivas. A primeira fase teve como auge o ser. A segunda é dominada pelo sentir (o sentir que se constrói com sentimentos e não com a mera possibilidade de detetar aquilo que nos rodeia). A terceira fase é definida pelo processo do saber. Curiosamente, algo de semelhante a essas três fases acontece na mesma sequência em todos os seres humanos contemporâneos. (…)

Somos marionetas nas mãos da dor e do prazer, ocasionalmente libertados pela nossa criatividade. (…)

Assim sendo, a consciência é um estado mental particular que resulta de um processo biológico com múltiplos contribuidores. O funcionamento do interior do corpo, dado a conhecer através do sistema nervoso interocetivo, fornece o componente do sentimento, ao passo que as outras operações do sistema nervoso central fornecem a imagética que descreve o mundo em torno do organismo bem como a sua estrutura musculosquelética. (…) Mente e corpo são co-proprietários exclusivos, absolutos e notorizados deste magnífico conjunto.

… nem todos os estados mentais são necessariamente conscientes. Vejo a consciência como um estado mental enriquecido. (…) São os sentimentos que trazem à mente os factos através dos quais sabemos, de imediato, que aquilo que naquele momento temos na mente nos pertence e nos está a acontecer. Os sentimentos permitem-nos experienciar e tornarmos-nos conscientes. (…)

Aquilo que começa a dar origem à consciência é o enriquecimento da mente com o tipo de conhecimentos que apontam para o organismo como sendo proprietário dessa mente. (…)

A consciência não emerge só porque o conteúdo foi integrado apropriadamente. O resultado da integração é o alargamento da capacidade mental mas a consciência não tem a ver com a quantidade dos conteúdos mentais, mas sim com o significado de certos conteúdos. Aquilo que começa a dar consciência ao meu conteúdo mental é a identificação de mim próprio como dono dos presentes conteúdos mentais. 

(…)

in: Sentir & Saber - A caminho da Consciência, de António Damásio, Círculo de Leitores (Temas e Debates), Lisboa, 2020