Aguarelas Finas, Le Corbusier | Maison La Roche, Paris

16 novembro 2020

Alexandrina Cereja | Ana Patrício

1. 

Alexandrina tinha vergonha daquela casa velha, de um amarelo desbotado, com dois ridículos limoeiros e uma nespereira num pequeno jardim quase impenetrável e incompreensível, entregue aos gatos. Também tinha vergonha do seu nome, porque mais ninguém se chamava Alexandrina. 

A mãe explicava às vezes que tinha ido, quando era nova, a uma festa, que bebera uns copos de vinho, e que sonhara depois com uma menina maravilhosa, chamada Alexandrina. 

E dizia que Alexandrina lembrava Alexandria, uma cidade no Egipto, cuja história incluía um Farol e uma Biblioteca. Às vezes Alexandrina tinha vontade de bater na mãe.

Mas aos onze anos as coisas mais simples parecem insuportáveis, e as coisas insólitas são aceites com naturalidade.

A casa e o nome eram as coisas mais simples da vida de Alexandrina e eram ao mesmo tempo as suas preocupações mais sérias. 

O resto da vida às vezes era triste, às vezes um bocadinho misterioso, às vezes assustava-a um pouco mas dava-lhe sempre a sensação de ser como as personagens dos livros; ainda que fosse uma vulgar rapariga de olhos e cabelos castanhos, essa sensação era reconfortante. 

2. 

O pai estava na América a estudar. Não era o seu verdadeiro pai, mas tinha um nome lindo: Renato. Era um médico importante de Lisboa, ainda muito novo e extremamente bonito, estava a especializar-se numa coisa que Alexandrina não sabia o que era, só que era parecido com Psiquiatria, mas mais complicado ainda - tinha a ver com descobertas novas que os americanos faziam e experimentavam.

Mandava-lhe todas as semanas um postal. Nunca a tratava pelo verdadeiro nome. Chamava-lhe Cereja, num pequeno código que tinham entre ambos, por ela gostar de cerejas.

Os postais da América eram incríveis. Alguns tinham música, outros vinham com perfume, e o pai escrevia sempre um PS: Toma conta da tua mãe!

Alexandrina sentia então uma momentânea responsabilidade, que depressa se dissipara. 

A mãe era linda. (…) Era louca e chamava-se Elisa. Raramente saía do quarto, onde bebia chávenas de chá e se enfeitava com lenços e pulseiras. Era uma mãe um bocadinho louca. (…)

7.

Alexandria passou o dia seguinte a limpar a casa. Telefonou à Daniela e disse que estava com febre, se ela não se importava de informar os professores. A Daniela disse que estava bem. 

Então, determinada, Alexandrina varreu todos os quartos, limpou as carpetes, fez as camas de lavado e lavou o chão gasto da cozinha, que ficou quase brilhante.

Pôs a roupa suja na máquina de lavar e telefonou para a clínica, de onde a informaram que a mãe não piorara, mas que ainda não recebia visitas.

A rapariga foi ao jardim, apanhou margaridas, rosas, camélias e umas outras flores amarelas e pequenas, que abundavam por ali. Enfeitou a casa toda com as flores.

Pé ante pé entrou no quarto da mãe, que cheirava a fumo e a fechado, e abriu a janela, para que o ar fresco da manhã lhe desse um ar saudável. 

Alexandrina despejou os cinzeiros, ajeitou as almofadas de veludo, apanhou os vestidos do chão e voltou a pendurá-los. Apanhou os livros espalhados e colocou-os nas prateleiras. Depois, numa jarra verde, de um vidro antigo, misturou todas as flores que trouxera do jardim. E achou que o quarto tinha ficado com um ar alegre. 

Em cima da cómoda estava aberto um caderno, onde se podia ver a letra incerta da mãe, mas Alexandrina não se atreveu a espreitar o que tinha escrito.

Fechou-o solenemente e deixou-o no lugar.

Estafada, sentou-se na cozinha a comer uma maçã- mas nem por um segundo lhe ocorreu pensar que tudo aquilo era injusto.

Durante cinco dias Alexandrina viveu completamente sozinha. (…)

Alexandrina disfarçou os soluços, limpou as lágrimas com as mãos, e respondeu que preferia ir para a avó Eduarda, para o campo. (…)

9.

As coisas na vida mudam às vezes tão rapidamente que quase não damos pela mudança. Aos onze anos é fácil adaptarmo-nos a tudo, principalmente à beleza.

E a Beira Alta era verde e bonita e a quinta da avó Eduarda um sítio óptimo para se viver.

Alexandrina aprendeu imenso sobre animais, sobre árvores de fruto e outras coisas interessantes.

Experimentou descer a correr uma pequena colina coberta de ervas altas, que levava a um riacho cristalino, e adorou a sensação. Parecia que tinha vivido sempre na Beira Alta.

Pela primeira vez na vida tinha muitas pessoas da sua idade para conviver. (…)

Alexandrina chegou à conclusão que uma escritora - agora já não acrescentava famosa tantas vezes - tinha que viver a proximidade da Natureza para ser realmente boa. E pensava que a mãe escrevia poemas porque crescera ali. (…)

Alexandrina gostava muito deles mas não tinha nenhuma vontade de voltar para Lisboa. Só quando fosse mais velha, para estudar literatura, grego e latim. (…)

Os nomes destes novos amigos tinham para Alexandrina um som doce, muito macio. (…)

10.

E assim a vida se desenlaçou como um novelo, como o decorrer das estações.

Um dia, quando Alexandrina já tinha treze anos, recebeu uma carta da mãe. A Câmara demolira a casa amarela e o Renato comprara uma casa ao pé do mar, numa terra chamada Azenhas do Mar. A mãe contava que cheirava sempre a mar, que ali era sempre feliz e convidara-a para ir viver com eles. E o Renato escreveu também: vem, Cereja!

Deu-lhe vontade de chorar. Lembrar-se dos postais da América, da casa amarela que agora era só uma estrada mais larga, por onde os autocarros podiam passar sem atropelos.

Lembrou-se do prédio moderno onde o pai vivia, daqueles fins-de-semana em que a convidavam por dever, e sentiu então que agora era dali, da Beira Alta, e de mais lugar nenhum.

(…)

E, como uma escritora verdadeira, saiu de casa, passeou lentamente até ao riacho, e pensou que a maior aventura da vida das pessoas era a amizade. Os seus livros, um dia, falariam disso.

 

in: Alexandrina Cereja, de Ana Patrício, Prémio Revelação 1996, Difel Editora