Aguarelas Finas, Le Corbusier | Maison La Roche, Paris

03 março 2020

Eu Dou Dinamite! | Sue Prideaux

Invulgarmente sensível à música … os antepassados de Nietzsche eram gente modesta da Saxônia, camponeses (…) a família de Nietzsche tinha de facto uma forte tendência para a instabilidade mental e neurológica.
«Desde a infância que procurei a solidão, e era nos momentos em que conseguia entregar-me a mim mesmo sem que me perturbassem que me sentia melhor. E isso acontecia geralmente no templo ao ar livre da natureza, que era a minha verdadeira alegria. (…) da minha seriedade (…) quando tinha doze anos invoquei para mim mesmo uma trindade maravilhosa … foi assim que comecei a filosofar.»
(…)
… as guerras religiosas dos anos 1500 e 1600. Quando a luta terminou e o catolicismo romano foi rejeitado, o príncipe-eleitor da Saxônia, que apoiara Martinho Lutero … foi uma das mais importantes escolas de latim fundada em 1528 … acrescentou o ensino do hebraico ao latim e ao grego. (…)
… o Bund alemão moldado com base na estrutura da Grécia antiga: um sistema de pequenos Estados que existiam separada e criativamente no seio da unidade artística e intelectual. (…) O conhecimento era evolutivo, com ele vinha a Bildung, a evolução do próprio estudioso, um processo de crescimento espiritual mediante a aquisição de conhecimento, que Von Humboldt descrevia como uma interação harmoniosa entre a personalidade e a natureza do próprio estudante. (…)
A sua paixão pela música, manteve-se … reuniam-se em volta do rapaz corpulento de óculos grossos e cabelo comprido puxado para trás, sentado desajeitadamente no banco do piano. (…) A teoria herética da evolução, de Darwin … e três pensadores que iriam inquietar o seu pensamento criativo durante anos: Emerson, o filósofo e poeta grego Empedocles, e o filósofo e poeta alemão Fried. Holderlin. (…)
«Se quiseres alcançar a paz de espírito e a felicidade, então tem fé, se quiseres ser um discípulo da verdade, então procura. (…) Toda a vida é um anseio por um estado impossível e por conseguinte toda a vida é um sofrimento.» (…)
Schopenhauer, por outro lado foi profundamente influenciado pelo estudo das filosofias budista e hindu com ênfase de renúncia no sofrimento, destino e fado, e no facto de os desejos, quando satisfeitos, só darem origem a novos desejos. (…) Para Schopenhauer, a música era única arte capaz de revelar a verdade acerca da natureza do próprio ser.
«O sublime não deverá ser procurado nas coisas da natureza, mas sim nas nossas próprias ideias.»
(…) Burckhardt e Wagner viriam a ser duas grandes influências no pensamento de Nietzsche nos anos seguintes.
… Tal como a procriação depende da dualidade dos sexos, também o desenvolvimento contínuo da arte e da cultura, ao longo das épocas depende da dualidade do apolíneo e do dionisíaco. Tal como os dois sexos, estão envolvidos numa luta constante apenas interrompida por períodos temporários de reconciliação. (…) As qualidades de Apolo podem ser resumidas … ao aparente … representação … O mundo de Apolo é constituído por indivíduos morais, racionais (…) As artes que pertencem a Dionísio são a música e a tragédia. Na Grécia antiga, como homem e animal. Representava um mundo encantado de experiências extraordinárias que transcendia as fronteiras existenciais. Deus do vinho … da loucura ritual e de êxtase, do teatro, da máscara, da imitação e da ilusão … transformados por ela. (…) A música e a tragédia são capazes de apagar o espírito individual e de despertar impulsos … enquanto o espírito é transportado … Embriaguez, música, canto e dança eram as actividades onde o principium individuationis se perdia. Estava aqui a resposta dionisíaca ao sofrimento da vida.
(…)
Nietzsche sabia que a sua Lhama era uma mulher inteligente. E tratava-a como tal. Nisso, era alguém fora do comum para a sua época. Durante toda a sua vida valorizou as mulheres inteligentes e estabeleceu amizades próximas e douradoras com elas. Só se apaixonou por mulheres inteligentes - a começar por Cosima - Não gostava de mulheres ignorantes e preconceituosas. (…)
O seu Seminário sobre Safo foi cancelado devido à falta de participantes. (…)
«O educador tem de ajudar o aluno a conhecer o seu próprio caráter.» (…)
Mas agora neste volume, a sua escrita foi beber tanto à elegância de Schopenhauer como à humanidade de Montaigne.
«Que a alma jovem contemple a sua vida passada com a pergunta: que amaste verdadeiramente até agora, que atraiu a tua alma para cima, que a dominou, e ao mesmo tempo a abençou?»
(…)
Mas para si escreveu de uma forma diferente, confessando que estremecia ao pensar que poderia ter morrido sem ver o mundo mediterrânico.
Paul Rée tinha menos cinco anos que Nietzsche e era filho de um comerciante judeu rico; não precisava de ganhar a vida e tornou-se uma espécie de estudante eterno, frequentando várias universidades, onde estudou direito, psicologia e fisiologia. Terminara o seu doutoramento em filosofia no ano anterior. (…) A mera ideia de culpa ou transgressão estava errada … o ensino altera o nosso comportamento, mas não o nosso carácter. A religião nasce do medo da natureza, a moral do medo dos seres humanos.
(…)
«A qualidade mais importante numa esposa (depois do dinheiro) era uma mulher com quem pudesse ter conversas inteligentes até à velhice. (…) O casamento embora realmente desejável, é a coisa mais improvável- sei-o muito claramente.»
Caminhando oito a dez horas por dia.
Ficar em silêncio.
Agora os ataques incluíam amiúde três dias de dor atroz e vómitos, acompanhados pela sensação de estar paralisado, náuseas … ataques súbitos de rara felicidade com uma intensidade …
«A loucura era a liberdade total … se a loucura não foi atribuída tem de ser assumida … A loucura para que possa finalmente acreditar apenas em mim!»
Durante vários dias se alimentava de frutos secos. Não tinha dinheiro para aquecer o quarto. Mas, mal surgia o sol (…)
Rée ficou imediatamente impressionado com a personalidade de Lou Salomé, uma rapariga de vinte e um anos, cosmopolita, elegante … considerava que dizer a verdade é uma 'mesquinhez imposta'.
Poderia ser a descrição da relação entre Lou e o seu venerado Professor mais velho e do efeito traumático (…) As pessoas que pensam profundamente sentem que são comediantes na sua relação com os outros, porque primeiro têm de simular uma superfície para serem entendidas.
… e frase de Píndaro, "Torna-te o que és, depois de o teres aprendido." (…) Cada doença era uma morte, um mergulho fundo no Hades. Cada recuperação um alegre renascer, uma regeneração. Este modo de vida refresca-o. (…) Lou não tinha qualquer dúvida que ele era a causa da sua doença.
A mãe de Lou alertou Nietzsche claramente em relação à sua filha. Lou era incontrolável e perigosa; era uma fantasia louca.
Mais tarde, escreveu a Lou: "Quando estava em Orta, concebi um plano para te conduzir, passo a passo, até à consequência final da minha filosofia - tu como a primeira pessoa que considerei preparada para tal". (…) Ambos descreveram quão similarmente pensavam e sentiam as coisas e como as palavras se precipitavam entre os dois. Tiravam as palavras, como se fossem alimento, da boca um do outro. A autoridade individual dissolvia-se enquanto terminavam os pensamentos e as frases um do outro. (…)
O seu único sofrimento, comentou a Ida, era a ideia de ser tão pouco conhecido e lido.
«Deus morreu! Deus continua morto. E nos matá-mo-lo. Como podemos consolar-nos, nós os assassinos.»
O Homem valorizava a grandeza humana por ser baseada numa perda do animalesco … sendo um animal superior … A partir de agora, as conclusões filosóficas basear-se-iam em observação e experiências empíricas. Também falaram do eterno retorno (…)
«Assim serei daqueles que tornam belas as coisas. Amor Fati (Amor do destino): que doravante seja esse o meu amor.»
… O homem a tornar-se ele mesmo, tinha de aderir ao destino … uma opinião fixa era uma opinião morta. (…) Ainda sofria daquilo a que chamava "doença da corrente", uma ligação emocional que te puxa para baixo no teu caminho para te tornares o ser que és.
«Pois, estou a ir realmente para a solidão total.»
Chegara a altura de se libertar da doença da corrente. (…) Passou sozinho o dia de natal.
«A não ser que consiga descobrir o artifício alquímico para transformar esta - imundície em ouro, estou perdido - a minha falta de confiança é agora imensa.» Confessou.
«Tenho aqui a mais esplêndida oportunidade de provar que, para mim, todas as experiências são úteis, todos os dias santos … e pelo Argonauta solitário que estivesse decido a naufragar … uma odisseia espiritual extática, poética, profética, através do mundo moral moderno … o antigo profeta persa Zaratustra desce a montanha depois da morte do conceito de Deus para …»
Vingança transformando "Foi assim", em "Assim o Desejei".
«Porque que te amo eternidade! (…) Sempre sentira que tinha uma missão …»
«Olha, estou farto da minha sabedoria, como uma abelha que recolheu demasiado mel; preciso de mãos estendidas… e eu tenho de ser perpetuamente a vítima de levar uma vida completamente escondida. Ir-me-ei abaixo, caso não aconteça algo …»
O querido Professor, meio cego.
«… Preveniu-a que era impossível estar isento de preconceitos.»
Zaratustra desenvolve os temas fundamentais da sua filosofia da maturidade: eterno retorno, autosuperação e tornarmo-nos o Ubermensch; através das violentas, mas misteriosas, visões que nos desafiam a pensarmos por nós próprios … e que aquilo que não o mata torna-o forte … um viajante que ruma a um destino que ainda não existe. Acolhe com prazer cada nova alvorada pela evolução do prazer que trará. (…) Empurra cada um de nós para a sua solução pessoal e independente.
«Quase todas as minhas relações humanas resultaram de ataques de uma sensação de isolamento … pura e simplesmente já não conseguia suportar mais a solidão … as minhas palavras tenham cores diferentes …»
«Escravizámo-nos a padres, a astrólogos e filósofos. A sua influência é grave e perigosa para a psicologia do homem. … O mais grave erro dos últimos 2000 anos foi a invenção do espírito puro, por Platão. … Os filósofos são os vendedores da banha da cobra da alma. … Todas as verdades são apenas interpretações pessoais. Não somos mais do que a nossa memória e os nossos estados mentais … A psicologia, e não o dogma, é a chave para dar sentido ao mundo. … Não devemos agarrar-nos a nada, nem sequer a um sentimento do nosso próprio desapego. Poucos são feitos para essa independência … O primeiro sacrifício humano à religião é o sacrifício da verdadeira natureza de cada um. (…) Como é que aceitámos de bom grado os valores judaico-cristão que nos transformaram em gado obediente? Porquê que adoptámos a moral do escravo? (…) Judeus e Cristãos terem sido escravos … invertendo os valores … riqueza e poder transformaram-se em sinónimos de mal. … O cristianismo era uma negação da vontade de viver e transformada em religião. O cristianismo odiava a vida e a natureza humana. (…) É uma neurose, uma necessidade de infligir dor a si mesmo e ao outro. (…) É o animal que se magoa contra as grades da sua jaula… A vontade de poder nunca está quieta, é dinâmica. Desde a infância que procuramos o poder (…) chamar, melhoramento à domesticação de um animal quase nos parece uma anedota!»
Com o seu espírito mais presente, também estava a fazer anotações sobre psicologia. Elaborou uma lista dos estados de transformação que configuram a nossa ânsia de vida. Era encabeçada pelo impulso sexual, a que se seguiam a embriaguez, as refeições e a primavera.
(…)
Na falta de um círculo de jantares de pessoas com afinidades … uma surpresa feliz surgiu sob a forma de uma carta da Dinamarca, do escritor Georges Brands … era importante crítico literário da Europa setentrional … costumava referir-se a ele como um anti-cristo …
Falou a Brandes no seu isolamento e citou as palavras de Ovídio que estavam gravadas no túmulo de Descartes Bene vixit qui bene latuit (Viveu bem quem bem se escondeu). (…) Sentia-se realmente como se viesse de um país onde não vivia mais ninguém.
Reitera os seus pensamentos relativos à desonestidade do cristianismo ao desvalorizar a vida da terra em comparação com a hipotética vida vindoura. Este favorecimento errado da eternidade de nuvem de algodão em detrimento do monte de lixo da realidade quotidiana alimentava o ressentiment, a mentalidade vingativa, invejosa e moralmente superior usada pelos sacerdotes para dominar populações completas que conseguiam reduzir à mentalidade de escravo.
Todo o mundo fictício da religião tinha as suas raízes no ódio à natureza e num profundo mal-estar em relação à realidade e, assim, todo o reinado da moral subsequente por todo o mundo cristão era invalidado, porque tudo se inseria neste conceito de causa e de efeito imaginários.
Lei contra o cristianismo … Guerra ao vício, até à morte: o vício é o cristianismo. (…) O local execrável onde o cristianismo chocou os seus ovos de basílico (Israel? Jerusalém?) deveria ser arrasado. Sendo o ponto mais depravado sobre a Terra, deveria ser o horror de toda a posteridade. Sobre ele deveriam ser criadas serpentes venenosas. (…) Aquele que prega a castidade é o verdadeiro pecador. (…)
A Piazza estava cheia de velhos cavalos cansados entre os varais das carroças e tipoias que esperavam passageiros: cavalos miseráveis cujas costelas se podiam contar a serem atormentadas para fazerem algo que se assemelhasse a trabalho pelos seus amos. Ao ver o cocheiro de uma tipoia a bater impiedosamente no seu cavalo, Nietzsche foi-se abaixo. Dominado pela paixão, a soluçar devido ao espectáculo, abraçou-se protectoramente ao pescoço do cavalo e desfaleceu. (…)
O Ubermensch como o resultado de um combate metafísico pessoal através da vontade de poder existente em todos e em tudo - embora o combate que retrata não seja necessariamente contra terceiros, mas contra as emoções mesquinhas dentro de cada um, como a inveja e o ressentimento.
(…)
O ano seguinte caracterizou-se por uma temível excitabilidade, rugidos e gritos, alternando com períodos de total prostração. Uma visita de Overbeck coincidiu com esta última. Encontrou Nietzsche na mesma posição física em que o encontrara em Turim, semi-enroscado num canto do sofá, o que lembrou a Overbeck um animal ferido mortalmente, encurralado e ansiando pela morte.
(…)
Nietzsche comunicara que queria descer à sepultura como um autêntico pagão. Quanto a música, queria apenas a sua versão do "Hino à Vida", de Lou. Nenhum ritual cristão. Acima de tudo, nenhum sacerdote. (…)
Elisabeth nunca compreendera o terramoto conceptual que se encontrava na base do pensamento do irmão.
(…)
Continua a ser um desafio perfeitamente moderno. Parte do encantado duradouro de Nietzsche talvez resida na sua relutância em nos dar uma resposta. Espera-se que encontremos o significado e a resposta, se é que existe, por nós próprios: é esta a verdadeira façanha do Ubermensch.
Pode rejeitar-se a ciência como fé; pode rejeitar-se a própria crença religiosa, mas conservar ainda valores morais. Primeiro, o homem tem de se tornar ele próprio. Em segundo lugar, amor fati; tem de aceitar o que a vida traz, evitando os becos sem saída do ódio a si mesmo e do Ressentiment. Então, finalmente, o homem pode subjugar-se a si mesmo para encontrar a verdadeira realização como o Ubermensch, o homem em paz consigo mesmo, que encontra a alegria na sua finalidade terrena, rejubilando com a pura magnificência da existência e conformado com a finitude da sua mortalidade.
(…)
Se visitar a Villa Silberblick hoje em dia, descobrirá que as árvores cresceram no jardim, escondendo a vista magnífica que deu nome à mansão. (…)
«Conheço o meu destino», escrevera. «Um dia associar-se-á ao meu nome a lembrança de algo temível- de uma crise como nenhuma outra anterior na Terra, da mais profunda colisão de consciência, de uma decisão proferida contra tudo aquilo em que, até então, se acreditara, fora exigido e santificado. Não sou um homem, sou dinamite.»

in: Eu Sou Dinamite!, de Sue Prideaux, Círculo de Leitores, 1ª Edição, Abril 2019
Ver Filme: Dias de Nietzsche em Turim, 1'24''