Aguarelas Finas, Le Corbusier | Maison La Roche, Paris

22 janeiro 2015

Rainer Maria Rilke | Cartas a Um Jovem Poeta

Paris, 17 de Fevereiro de 1903


Estimado Senhor,

A sua carta chegou-me há poucos dias. Quero agradecer-lhe a sua grande e amável confiança. Pouco mais posso fazer para além de agradecer. Não posso pronunciar-me sobre a qualidade dos seus versos, pois sou avesso a qualquer intenção crítica. Nada está mais longe de tocar numa obra de arte do que palavras críticas: delas resultam apenas mal-entendidos mais ou menos felizes. As coisas não são tão apreensíveis nem tão dizíveis como nos fazem crer; quase todos os eventos são inefáveis, desenrolam-se num espaço onde as palavras nunca entram, e os mais inefáveis entre eles são as obras de arte, existências misteriosas cuja vida, ao lado da nossa que se perde, perdura.
Tendo começado com este aviso, devo ainda dizer-lhe que os seus versos não têm um estilo próprio, embora traiam indícios silenciosos e velados de uma voz pessoal. Os mais evidentes encontram-se no seu último poema, «A minha alma». Há nele qualquer coisa que quer chegar à palavra e à forma. E no seu bonito poema «A Leopardi» talvez cresça já uma qualquer afinidade com esse grande solitário. Contudo, os seus poemas não têm ainda vida própria, não são autónomos, nem mesmo o seu último poema ou aquele que dedicou a Leopardi. A sua gentil carta, que acompanhava os poemas, veio esclarecer algumas das falhas que pressenti ao ler os seus versos sem que nesse momento conseguisse nomeá-las.
Pergunta-me se os seus versos são bons. Pergunta-me a mim. Já antes perguntou a outros. Envia-os a revistas. Compara-os com outros poemas, apoquenta-se quando algumas redacções rejeitam os seus esforços. Pois bem, e já que me permite aconselhá-lo, peço-lhe que desista de tudo isso. Está a olhar para fora de si, e é sobretudo isso que não deve fazer agora. Ninguém o pode aconselhar, ninguém o pode ajudar, ninguém. Há uma única via. Entre dentro de si. Investigue a razão que o leva a escrever, veja se ela lançou raízes no lugar mais recôndito do seu coração, pergunte se morreria caso fosse impedido de escrever. Acima de tudo, na hora mais silenciosa da noite, pergunte a si próprio: tenho de escrever? Escave dentro de si até encontrar uma resposta profunda. E se esta resposta for afirmativa, se puder enfrentar esta séria pergunta com um «tenho» simples e forte, então construa a sua vida de acordo com esta necessidade; a sua vida, mesmo nas horas mais indiferentes e pequenas, terá de ser um sinal e um testemunho deste ímpeto. Aproxime-se então da Natureza. Tente então dizer, como o primeiro homem, o que vê e o que vive e ama e perde. Não escreva poemas de amor; evite por ora as formas mais comuns e correntes: são elas as mais difíceis, pois só uma grande força, já amadurecida, conseguirá criar uma coisa própria por entre a abundância de boas e por vezes brilhantes prestações. Evite por isso os motivos gerais e prefira aqueles que o seu quotidiano lhe oferece; descreva as suas tristezas e desejos, os pensamentos passageiros e a fé numa qualquer beleza - descreva tudo isso com sinceridade íntima, tranquila, modesta, e para lhes dar expressão sirva-se das coisas que o rodeiam, das imagens dos seus sonhos e dos objectos das suas recordações. Se o seu dia-a-dia lhe parecer pobre, não o acuse de pobreza; acuse-se a si próprio, reconheça que não é ainda poeta o bastante para conseguir invocar as suas riquezas; pois para um criador não há pobreza e nenhum lugar é indiferente e pobre. E mesmo que estivesse numa prisão, cujas paredes separassem os ruídos do mundo dos seus sentidos, teria ainda e sempre a sua infância, essa riqueza preciosa e imperial, a câmara do tesouro da lembrança. Dirija a ela a sua atenção. Tente levantar as sensações submersas desse passado longínquo; a sua personalidade fortalecer-se-á, a sua solidão estender-se-á até se tornar uma casa à luz do cair da tarde ou do amanhecer, por onde o ruído dos outros passa à distância. E se, depois deste movimento de introspecção, depois deste mergulho no seu próprio mundo, se depois nascerem versos, já não lhe ocorrerá perguntar a alguém se eles são bons. Também não tentará despertar o interesse das revistas por estes trabalhos, pois vê-los-á como propriedade sua, natural e preciosa, como uma parte e uma voz da sua vida. A boa obra de arte nasce da necessidade. É esta origem, e nada mais, que determina o juízo do seu valor. Por esta razão, caro Senhor, não posso dar-lhe outro conselho para além deste: entre dentro de si e sonde as profundezas donde brota a sua vida; é nesta fonte que se encontrará a resposta à pergunta: tenho de criar? Admita a resposta, qualquer que ela seja, sem a interpretar. Talvez venha a descobrir que nasceu para ser artista. Nesse caso, aceite o seu destino, carregue o seu peso e grandeza, sem perguntar por proveitos que possam vir de fora. Pois o criador tem de ser um mundo para si mesmo, tem de encontrar tudo dentro de si e na Natureza a que se uniu.
Talvez aconteça que, depois desta descida dentro de si e da sua solidão, tenha que renunciar a ser poeta; (como disse, basta sentir que se consegue viver sem escrever para não dever sequer tentá-lo). Mas mesmo então este exame de consciência que o insto a fazer não terá sido em vão. A sua vida encontrará em todo o caso os seus próprios caminhos, e que eles sejam bons, ricos e longos é o que eu lhe desejo mais do que consigo dizer.
O que devo acrescentar ainda? Parece-me que tudo foi sublinhado com a importância devida. Queria apenas aconselhá-lo, por fim, a velar em silêncio e com seriedade pelo seu crescimento; não há perturbação mais violenta do que olhar para fora e esperar respostas exteriores a perguntas a que talvez só a sua sensibilidade mais íntima, nas horas de maior silêncio, poderá responder.
Foi com grande alegria que encontrei na sua carta o nome do Professor Horacek; tenho uma grande admiração por este amável erudito e uma gratidão acalentada ao longo dos anos. Peço-lhe que lhe transmita os meus sentimentos; é muita bondade dele lembrar-se ainda de mim, e sei dar-lhe o justo valor.
Devolvo-lhe os versos que amigavelmente me enviou. E agradeço-lhe uma vez a sua grande e amável confiança, de que tentei ser mais digno, através da sinceridade e boa-fé desta minha resposta, do que como estranho realmente sou.
Com grande estima e dedicação,

Rainer Maria Rilke

in: Cartas a um jovem Poeta, de Rainer Maria Rilke (Tradução de Isabel Castro Silva), Edições Quasi, (1875-1926)