Aguarelas Finas, Le Corbusier | Maison La Roche, Paris

08 fevereiro 2024

Balada da Praia dos Cães | José Cardoso Pires

Está de pijama de cetim. São sete da manhã no seu domicílio à Travessa da Sé, terceiro andar alto com vista para o Tejo. (…) Elias parece suspenso entre o jornal e o sono. Mas não: medita de facto, e na direção dum altar de fotografias armado em cima da cómoda. (…)

Elias está sem óculos, tem pálpebras pisadas e rugosas como as dos perus. (…)

Plantada na areia, há uma criatura a escutá-lo ou alheada em sono aparente, não se sabe. Um lagarto. Lizardo de seu nome, lagarto de estimação, corpo arenoso. Parece em eterna posição de arrancada, cabeça imóvel, pescoço para a frente, os compridos dedos das patas traseiras todos abertos e firmados no chão. Estás-te nas tintas, continua Elias, um olho nas sopas, outro no jornal (mas é ao lagarto que se dirige, é para ele que desabafa). Um rastilhante como tu tem mais em que pensar. (…)

Lizardo mantém-se impenetrável no seu planeta de vidro. É um dragão doméstico; pequeno mas dragão. E pré-histórico, sobranceiro ao tempo. O dono acerca-se dele para verificar o termóstato fixado na gaiola porque é mudança de estação e há que regular o calor. No verão tem muitas vezes que humedecer a areia para que o animal não se excite e não se ponha a bater o rabo com lembranças da fêmea ou de penhascos de sol a pino. (…)

Para uns o exótico está na paisagem, para outros na máquina. (…)

Vagueei todos estes anos por um mundo de mulheres, procurando-te. (…)


in: Balada da Praia dos Cães, de José Cardoso Pires, Biblioteca de Bolso Dom Quixote, 1982 (Grande Prémio de Romance e Novela, Associação Portuguesa de Escritores)