Aguarelas Finas, Le Corbusier | Maison La Roche, Paris

29 dezembro 2023

Elogio da Loucura | Erasmo de Roterdão

Sou realmente, tal como me veem, aquela verdadeira repartidora de bens, à qual os Latinos chamam Loucura e os Gregos demência. (…)

Pois o espelho da alma nunca mente. (…) "As grandes orelhas denunciam a tolice" (…)

Em resumo: é necessário que o sábio recorra a mim, a mim insisto, se por ventura quer ser pai. (…)

A responsável pela propagação da espécie humana é aquela parte do corpo tão louca e tão ridícula que nem se pode a ela aludir sem provocar o riso. (…) qual a mulher que aceitaria casar-se se conhecesse ou pensasse nos perigos do parto (…)

Ora, esta vida porventura merece ser chamada vida, se dela retirarmos o prazer? (…)

Quantas brincadeiras não dá a conhecer Mercúrio com as suas artimanhas e furtos? (…)

Além disso, desterrou a razão para um canto reduzido da cabeça, deixando todo o resto do corpo entregue à desordem. (…)

Contra mim só por atribuir-lhes a loucura, eu que, além de mulher, sou a loucura. (…) devem agradecer à loucura o facto de a muitos títulos serem mais felizes do que os homens. (…) as faces das mulheres se apresentam sempre mimosas, a voz sempre fina, a pele aveludada, como se vivessem numa espécie de perpétua mocidade? (…) que outra coisa almejam nesta vida que não seja agradar acima de tudo aos homens? (…) Ora, porventura se recomendam mais aos olhos dos homens por outro título que não seja o de loucura? (…) nos disparates que o homem diz quando está com uma mulher e nas patetices que faz sempre que estiver determinado a gozar dos deleites da fêmea. (…) Não há qualquer dúvida de que, faltando o condimento da loucura, não há nada que seja agradável. (…)

Coisas que são indispensáveis no dia-a-dia, dir-se-ia que esse sábio é uma estaca e não um ser humano. A tal ponto não consegue ser útil nem para si mesmo (…) emigrar para um deserto e aí em solidão gozar da sua sabedoria.(…)

Na verdade são dois os principais obstáculos para se alcançar o conhecimento das coisas: a vergonha, que obscurece com fumo o espírito, e o medo, que diante do perigo dissuade de cometer as façanhas. (…)

São mais afortunadas as artes que possuem maior parentesco com a loucura (…)

O cavalo, tem emoções semelhantes às humanas, passou a viver nas proximidades dos homens, também partilha da infelicidade humana (…) A tal ponto em todos os aspectos é mais alegre aquilo que a natureza criou do que quanto a arte fingiu. (…)

Ó mui louco sábio, (…) E a tal ponto ninguém deseja fazer-lhe mal que até os animais ferozes se abstêm de atacá-los, movidos por uma espécie de instinto natural diante da inocência. É que estão verdadeiramente consagrados às divindades, sobretudo a mim, e por isso não é sem razão que todos assim o honram. (…)

E conheçam agora, e não é para voltar ao desprezo, o dote dos loucos: e é que só eles São sinceros e verdadeiros. (…) Tudo aquilo que um louco tem no peito, mostra-o no rosto e manifesta-o pela palavra. Ao passo que os sábios possuem duas línguas, consoante lembra o mesmo Eurípedes: com uma delas dizem a verdade e, com a outra, o que julgarem conveniente de acordo com a ocasião. (…)

Eu, a célebre loucura, sou a única que a todos abraço sem distinção com tão pronta bondade. (…) Nem misturo o céu com a terra se alguém convidando os demais deuses, me deixa em casa. (…) 

Devem-me menos os poetas, embora por inerência da sua função, façam parte da minha corporação, como uma raça livre (…)

A suprema sabedoria é fingir a propósito a loucura. (…)

Atribui a sabedoria exclusivamente a Deus, deixando a loucura a todos os homens. (…)

A demência dos amantes é de todas a mais feliz. Quem ama arrebatadamente já não vive em si, mas naquilo que ama (…) quanto mais perfeito é o amor maior é a felicidade. (…) 

O espírito há de ser assimilado de modo maravilhoso por aquele supremo entendimento, porque este é infinitamente mais poderoso. (…) A tal ponto o espiritual leva a vantagem sobre o corpo, o invisível sobre o visível. 

Ora se mostram alegres, ora abatidos, ora riem, ora suspiram, em suma: totalmente fora de si: logo a seguir voltam a si, dizem que não sabem onde estiveram, se no corpo ou fora do corpo, despertos ou a dormir. (…) vindoura felicidade. 

 

in: Elogio da Loucura, de Erasmo de Roterdão, Edições 70, Lisboa, Novembro 2023

20 novembro 2023

Semente | Poema

Sou como uma semente 
Que reúne em si  
Todos os nutrientes do mundo

Sou pura natureza
Força de existir

Sou em mim o mundo 
O mundo é em mim

É um ciclo de eterno retorno
É a eternidade em si

Numa semente única 
Que reúne em si 
Todas as sementes do mundo.

in: Poema: Semente, de Ana Gaspar, escrito: 6 Novembro 2023.

11 novembro 2023

Demónios | Fiódor Dostoiévski

 Maio atingira o seu auge, os anoiteceres eram espantosos. O sabugueiro estava em flor. Os dois amigos encontravam-se todos os fins de tarde no jardim e ficavam até à noite no pavilhão, expondo mutuamente sentimentos e ideias, desabafando um com o outro. Havia momentos poéticos. Varvara Petrovna, sob influência da mudança do seu destino, falava mais do que de costume. Parecia procurar apoio no coração do amigo, e assim continuou várias noites seguidas. Uma ideia estranha iluminou de repente Stepan Trofímovitch: "Não poderia ser que a viúva inconsolável contasse com ele e aguardasse que, ao fim do ano de luto, ele a pedisse em casamento?" (…)

A meu ver, mesmo na velhice tinha uma aparência muito imponente. Além disso, que velhice é a dos cinquenta e três anos? Porém, por uma espécie de picardia cívica, não só não se fazia de jovem como parecia exibir a maturidade dos seus anos e, com o seu fato, alto e magro, com o cabelo até aos ombros, parecia um patriarca, ou melhor, o retrato do poeta Kukolnik, numa qualquer litografia dos anos trinta, sobretudo quando, no verão, se sentara no banco do jardim ao pôr-do-sol, poeticamente pensativo, debaixo dos lilaseiros em flor, apoiando-se com ambas as mãos na bengala, com um livro aberto ao seu lado. Quanto aos livros, direi que nos últimos tempos começara a afastar-se da leitura. (…)

Apaixonou-se de imediato pelo retrato, como é hábito de todas as meninas de internatos apaixonarem-se pela primeira coisa que lhes cai debaixo de olho, incluindo professores, preponderantemente de caligrafia e desenho. (…)

O pobre do Stepan Trofímovitch estava sozinho, sem suspeitar de nada. Triste e pensativo, havia muito que espreitava pela janela, a ver se aparecia algum companheiro seu. Mas ninguém queria aparecer. Na rua chuviscava, em casa estava a ficar frio, era preciso acender o fogão; Stepan Trofímovitch suspirou. De súbito surgiu-lhe diante dos olhos uma visão terrível: Varava Petrovna, com este tempo e a esta hora insólita! E a pé! Ficou tão espantado que se esqueceu de mudar de roupa e a recebeu tal como andava por casa, com o seu habitual casaquinho cor-de-rosa forrado de algodão. 

- Ma bonne amie! … - Exclamou em voz alta, indo ao encontro dela.

- Ainda bem que está sozinho: detesto os seus amigos! Fuma demais; meu Deus, que ar se respira nesta casa! Ainda não acabou o seu chá e já passa das onze! Para si, a desordem é prazer! O seu deleite é a casa emporcalhada! Que papel rasgado é este? (…)

Dizem-me os senhores: mexericos … Mas será só um que grita? Toda a cidade grita, e eu apenas oiço e concordo: não é proibido concordar.

- A cidade grita? Grita o quê? (…)

Não descreverei a beleza de Lisaveta Nikoláevna. Já bastava toda a cidade apregoar a beleza dela, embora algumas das nossas meninas e senhoras não concordassem, com indignação, com quem assim apregoava. Entre elas havia mesmo algumas que já tinham ganhado ódio a Lisaveta Nikoláevna por causa do orgulho dela em primeiro lugar (…) Na nossa cidade, até ao momento, nunca houvera amazonas; era natural que o aparecimento de Lisaveta Nikoláevna passeando-se a cavalo, sem ainda sequer ter feito as devidas visitas, ofendia a sociedade. Aliás já todos sabiam que ela cavalgava por prescrição médica, por isso, ao falarem disso, referiam-se causticamente ao seu estado de saúde. De facto, estava doente. Uma coisa que se lhe notava ao primeiro olhar era a inquietude doentia, nervosa e permanente. (…) Transparecia-lhe do ardor dos olhos escuros um qualquer poder; apresentava-se sempre num jeito «de vencedora e para voltar a vencer». Parecia orgulhosa, até ousada às vezes; não sei se chegara a ser bondosa; mas sei que queria muito sê-lo e se esforçava, se atormentava neste sentido. Havia na sua natureza, sem dúvida, muitas aspirações maravilhosas e os desejos mais justos; mas era como se tudo nela andasse eternamente à procura da sua medida, sem a encontrar, como se tudo fosse caótico, e emocionado, inquieto. Talvez tivesse exigências demasiado rigorosas para consigo mesma e nunca encontrasse forças interiores para satisfazer tais exigências. Sentou-se no divã e pôs-se a observar a sala. (…)

O homem tem medo da morte porque gosta da vida, é assim que eu entendo.  

- Observei - E é assim que manda a natureza. (…)

Quem se matar apenas para matar o medo, torna-se Deus, logo. (…)

«Se quiseres vencer o mundo, vence primeiro a ti próprio» (…)

Oh meu amigo, o matrimónio é a morte, moral de qualquer alma orgulhosa, de qualquer independência. A vida de casado vai depravar-me, sugar-me as energias, a coragem de servir a causa, nascerão filhos, que ainda por cima não serão provavelmente meus, ou seja, que não serão meus de certeza; o homem sábio não deve ter medo de olhar a verdade na cara. (…)


in: Demónios, de Fiódor Dostoiévski, Editorial Presença, Lisboa, 2023

23 outubro 2023

As Abelhas Cinzentas | Andrei Kurkov

 Sergey Sergeyich foi despertado pela aragem fria quando eram cerca de três horas da manhã. O fogão a lenha que tinha construído em pedra, segundo uma fotografia da Cozy Cottage, com uma pequena porta envidraçada e dois bicos, tinha deixado de produzir qualquer calor. Os dois baldes de lata a seu lado estavam vazios. Baixou a mão até ao que estava mais perto e os dedos tocaram no pó do carvão. (…)

Também ali só restava uma pessoa - Pashka Khmelenko, que estava reformado, tal como Sergey. Os dois tinham praticamente a mesma idade e eram inimigos desde os primeiros dias de escola. (…)

Os outros habitantes da pequena Starhorodivka quiseram partir assim que o conflito começou. Portanto, foram-se embora - porque receavam mais pelas suas vidas do que pelas suas propriedades, e o medo maior venceu. Mas a guerra não tinha levado Sergeyich a recear pela vida. Só o tinha deixado confuso, e, de repente, indiferente a tudo o que se passava ao seu redor. Foi como se tivesse perdido todo o sentimento, todos os sentidos, excepto um: o da responsabilidade. E esse sentido, que poderia deixá-lo numa aflição terrível a qualquer hora do dia, estava inteiramente focado num ponto: as suas abelhas. De momento, as abelhas estavam a hibernar. O interior dos telhados e dos quadros tinham sido reforçados com feltro. (…)

Em casa, por essa altura, não havia ninguém com quem Sergeyich pudesse conversar: a mulher e a filha já tinham desertado enquanto ele estava no mercado de produtores de Gorlivka. Tinham deixado uma ferida no seu coração. Mas ele persistiu. (…) Prosseguiu com a sua vida - e a sua vida era calma e satisfatória. No verão, apreciava o zumbido das abelhas; no inverno, a paz e a tranquilidade, a brancura da neve sobre os campos e a imobilidade absoluta dos céus cinzentos. (…)

Sergeyich passou o dia seguinte na cama, cuidando da própria saúde, como se fosse o seu próprio filho enfermo. Ouviu-se tossir como se estivesse fora do próprio corpo, dividido em dois: metade paciente, metade curandeiro. (…) Acaba por acontecer a todos os que vivem sozinhos. (…)

Mas isso era agora, fevereiro, quando o silêncio era tão frágil como um grão de pó num raio de sol. Dentro de um mês, talvez menos, ia soltar um exército de abelhas nesse silêncio. (…) Sergeyich sorriu perante os próprios pensamentos e deixou-se submergir por sonhos que evocaram a chegada da primavera. (…) A escuridão ganhava terreno, ia-se infiltrando pelas janelas. (…)

Tu é que tens sorte - disse Pashka, sacudindo a mão. - Adorava ter esse tipo de vida: não ouvir nada, não ver nada, não saber que dia da semana é (…)

Quando começou a conduzir o Lada para o quintal, começaram a cair pingos de chuva. Sergeyich desviou o olhar para o céu, e a chuva caiu a direito nos seus olhos abertos. As gotas também lhe caíram nos lábios e língua, e pareceu-lhe que eram salgados. Parecia que eram lágrimas celestiais em vez de chuva, como se o céu estivesse a chorar por ele, por Sergeyich, porque também ele não sabia se voltaria algum dia. E, se voltasse, fosse quando fosse, será que iria encontrar tudo o que deixava para trás? (…) Aquilo - as árvores, os portões, as portas e as janelas - tinha-o protegido como uma fortaleza, como um colete à prova de balas. (…)

Não, ele não ia passar pela sua casa apenas para dar corda ao relógio, mesmo que prometesse fazê-lo. Era inútil preocupar-se com o tempo, claro. O tempo só importa quando está lá alguém a contabilizar a sua passagem, a depender disso. E, se ninguém se ocupar dessa missão, também o tempo para e desaparece. (…) 

Porém, as abelhas não entendem o que é a guerra. As abelhas não conseguem passar da paz à guerra e de volta à paz, como fazem as pessoas. É preciso que tenham condições para cumprir a sua principal função - aquela que lhes foi atribuída pela natureza e por Deus: colher e espalhar pólen. Era por isso que tinha de as levar para um sítio mais tranquilo, onde o ar estivesse a encher-se aos poucos da doçura da vegetação primaveril, onde ao coro dessas ervas se juntasse, em breve, o coro das cerejeiras, macieiras, damasqueiros e acácias em flor. (…)

Tinha-se desacostumado de ajuntamentos coletivos. Três anos de abandono numa aldeia com Pashka tinham-no ensinado que podia ter-se pouca gente por perto e que nada de mal havia nisso. Por outro lado, esse isolamento quase absoluto podia ajudar uma pessoa a conhecer-se melhor a si própria, à sua própria vida. (…)

De manhã, abriu os olhos e não voltou a duvidar de que tinha entrado no paraíso. Viu-se num conto de fadas, em que a natureza não apenas serve as pessoas, mas chega a conceder-lhe dádivas; em que o sol espera que termine as suas tarefas do dia para partir; em que o ar está preenchido do tinido de sinos de sinos invisíveis e incontáveis; em que se pode ser livre e invisível; em que cada ser vivo - cada árvore, cada videira - tem a sua própria voz. (…)

De repente, uma dor aguda espetou-lhe o coração como uma faca. Sentiu inveja do falecido. Akhtem. Ocorreu-lhe que não tinha nenhum filho e que, se alguma coisa lhe acontecesse, as abelhas tornar-se-iam órfãs. Iriam morrer de doenças ou de parasitas ou, simplesmente, perecer por negligência. Tinha uma filha, claro, mas, na realidade, a sua ex-mulher, Vitalina, é que a tinha tido. De qualquer forma a sua filha não se interessava por abelhas - o amor às abelhas não se passa pelo leite da mãe. Esse pensamento estranho deixou-o perplexo. (…)

Para quê desperdiça-la quando a sua casa já não era uma tenda, mas sim o mundo inteiro ao seu redor, com todas as montanhas, árvores, vinhas, pássaros, ouriços e abelhas? (…)

 Sergeyich sentia-se fascinado pela sabedoria da natureza. Sempre que a sua sabedoria era visível e compreensível para si, comparava-a com as manifestações da vida humana - sempre em detrimento desta última. (…)

Enfim, pelo menos há alguém à minha espera, pensou Sergeyich, ao pisar o acelerador. 


in: As Abelhas Cinzentas, de Andrei Kurkov, Porto Editora, 2022

08 setembro 2023

Devia ser Proibido | Poema

Devia ser proibido:

Gaiolas para pássaros 

Grades em casas

Fechar os corações à chave.


Devia ser proibido:

Pôr grilos em gaiolas

Tapar os buracos das toupeiras

Rasgar a alma com mentiras.


Devia ser proibido:

Andar de saltos altos 

Para ver os outros mais baixos.

Enganar para possuir.


Devia ser proibido:

Fechar as portas à chave

Aliás, devia ser proibido as portas terem chave.

Não deveria sequer haver portas.


in: Devia ser Proibido, Poema de Ana Gaspar, Escrito no dia 11 de agosto 2023

10 agosto 2023

A Vida Secreta das Árvores | Peter Wohlleben

 

Uma árvore não faz uma floresta, não é capaz de criar um clima local equilibrado, é vulnerável ao vento e às condições meteorológicas. Pelo contrário, muitas árvores juntas logram formar um ecossistema, capaz de mitigar o calor e o frio extremos, de armazenar toda uma quantidade de água e de produzir ar bastante húmido. É neste tipo de ambiente que as árvores são capazes de viver protegidas e por muitos anos. E para alcançá-lo, a comunidade tem de preservar-se custe o que custar. Se cada exemplar apenas cuidasse de si próprio, então alguns não atingiriam uma idade avançada. Mortes constantes teriam como resultado grandes intervalos no copado florestal, facilitando a entrada de tempestades que poderiam derrubar ainda mais troncos. O calor estival penetraria até ao chão da floresta, secando-a, para prejuízo de todos.

Por conseguinte, cada árvore é valiosa para a comunidade e merece ser preservada o mais possível. (…)

Possuímos por conseguinte uma secreta linguagem de odores, algo que também as árvores exibem. (…)

E, com isto viemos parar direitinhos à escola de árvores, onde infelizmente reina ainda um certo tipo de violência, uma vez que a natureza é uma professora bem rigorosa. Quem não prestar atenção e não se adaptar, então sofre as consequências. Não há nada pior para uma árvore que fendas na madeira, na casca, num câmbio vascular extremamente sensível. A árvore é obrigada a reagir. E não se trata apenas de procurar fechar as feridas. A partir de agora, a água será mais bem racionada, não sendo sugado tudo o que o solo oferece logo na primavera, sem ligar ao desperdício. As árvores aprendem muito bem a fazer isto, mantendo a partir de então essa atitude de poupança, mesmo quando o solo se encontra suficientemente húmido. (…)

Se as árvores estão em condições de aprender (e isto não é difícil de observar), coloca-se então a questão sobre onde depositam elas o conhecimento adquirido e onde são capazes de o voltar a convocar. Afinal de contas, as árvores não têm um cérebro que funcione como base de dados, levando a cabo todos os processos. Isto aplica-se a todas as plantas, pelo que muitos investigadores se mostram céticos e muitos silvicultores consideram fantasiosa a ideia de que a flora tem uma qualquer capacidade de aprendizagem. Mas eis senão quando aparece de novo a cientista australiana Monica Gagliano, que se pôs a pesquisar as mimosas, um subarbusto tropical. (...) Quando lhes tocam, elas fecham as suas folhinhas plumosas em jeito de defesa. (…)

Numa mão-cheia de solo florestal existem mais seres vivos do que seres humanos à face da Terra. (…)

Os silvicultores afirmam também que é o bosque que faz o seu próprio habitat ideal. (…)


in: A Vida Secreta das Árvores, de Peter Wohlleben, Bertrand Editora, Lisboa, 2020

31 julho 2023

Serenidade | Poema

 

Caíram as grades.

Soltaram-se as amarras.

Desdobraram-se as veias.

Pulsão no coração-pulmão.


Viva a luz

Tudo flui como um rio

As margens já não o oprimem

Corre sereno na paisagem 

Como corre o sangue nas veias

Doce, apaziguado,

Pela liberdade conquistada.


E, adormece tranquilamente.

Plena consciência que a serenidade dure uma eternidade.


in: Serenidade, Poema de Ana Paula Gaspar, 31 de julho 2023

28 julho 2023

A Potência de Existir | Michel Onfray

Aos catorze anos de idade já tinha mil anos, e a eternidade ficara atrás de mim…

Na vida de um filósofo, o corpo desempenha um papel essencial. Encontramos tudo sobre este tema no prefácio de A Gaia Ciência, escrito por um Nietzsche que sabe do que está falando, ele que não conhecia mais do que enxaquecas, náuseas, vómitos e toda uma série de outras doenças. (…)

O pensamento não cai do céu, ao estilo do Espírito Santo, lançando línguas de fogo sobre os eleitos, ele surge antes a partir do corpo, desabrochando na carne e procedendo das entranhas. (…)

O corpo do filósofo tem uma natureza singular, hiperestésico, em carne viva, simultaneamente frágil e forte, poderoso e delicado, com uma mecânica cuja precisão é capaz de desempenhos sublimes, mas, em virtude da sua precisão, uma mecânica sujeita aos mais ínfimos desregramentos. Corpo de artista, corpo esplêndido destinado ao conhecimento pelos abismos, segundo a feliz expressão de Michaux. (…)

Nunca como hoje foi tão urgente uma filosofia do corpo existencial. 

O prazer paralisa: a palavra, os factos, a realidade, o discurso que se faz sobre ele. O prazer paralisa ou enerva. Demasiados projectos pessoais frustrados, demasiadas intimidades alienadas, sofredoras, míseras e miseráveis, demasiadas fraquezas ocultas, dissimuladas, demasiadas dificuldades para ser, para viver, para ter prazer. É daí que decorre a rejeição da palavra: crítica malévola, agressiva, de má-fé; ou pura e simples evitação. Desconsideração, descrédito, desprezo, desdém, todos os meios são bons, desde que o assunto seja evitado. (…)

Cada um segue sendo, neste sentido, parcialmente responsável pelo seu ser e pelo seu futuro.


in: A Potência de Existir, de Michel Onfray, Editora Campo da Comunicação, Lisboa, 2009

26 julho 2023

Rosa | Poema

 


Rosa

Rosa

Rosa's.


O meu jardim é um roseiral.

Cada rosa com sua forma, cor, cheiro, cada uma é única.

Todas anseiam por ser tocadas, cheiradas, ouvidas.


Um roseiral magnífico.

Um jardim infinito de rosas que nascem e renascem a cada raio de sol.

Têm as rosas um jardineiro cuidador, o tempo!


E, assim se alimenta o eterno.

Na beleza e na vida, contemplando um belo jardim.


in: As Rosas, Poema de Ana Paula Gaspar, Quinta do Anjo, 25 julho 2023

Imagem: Fotografia de uma Rosa, em Killini, na Grécia, 16 de julho 2023

20 julho 2023

Aprisionados pelo Amor | Poema


Aprisionados pelo amor.

Decorados com obras de arte.

Com portas e janelas abertas.

Não tem grades.


Aprisionados pelo amor.

Com facas, e lanças afiadas.

Palavras soltas e presas pelo vento.

Uma prisão com a beleza a céu aberto.


Aprisionados todos aqueles que amam.

Encarcerados pelo tempo.

Pela viagem.

Pela história.

Aprisionados pelo amor.


in: Aprisionados pelo Amor, Poema de Ana Gaspar, Escrito 18 de julho 2023

28 junho 2023

O Budismo tem Razão | Robert Wright

Contudo, em última análise, a seleção natural preocupa-se apenas com um único aspecto (talvez eu deva empregar «preocupa-se», entre aspas, uma vez que a seleção natural é apenas um processo cego, não se tratando de um criador consciente). Esse único aspecto é transmitir os genes à geração seguinte. As características genéticas que no passado contribuíram para a proliferação genética prosperaram, enquanto as restantes se foram perdendo. (…)

Os nossos cérebros estão estruturados para, entre outros aspectos, nos iludir. (…)

O prazer é efémero, e, sim, isso deixa-nos repetidamente insatisfeitos. O motivo é o facto de o prazer ter sido programado pela seleção natural para se evaporar, de modo a que a insatisfação decorrente nos levasse a procurar mais prazer. Afinal, a seleção natural não "quer" que sejamos felizes; "quer" apenas que sejamos produtivos, no seu sentido limitado de produtividade. (…)

A rotina da consciência plena - observar o nosso mundo interior e exterior com um cuidado extremo - pode fazer mais do que atenuar sentimentos problemáticos e intensificar o seu sentido de beleza. (…)

Estudos consecutivos provaram que a maioria pensa que está acima da média em várias dimensões, desde a capacidade atlética até às competências sociais. 

O facto de nos apresentarmos como pessoas eficientes e íntegras implica acreditarmos no poder do nosso eu.

O sentimento em si é arrebatador e o módulo que evoca é claramente transformador. (…)

Criamos histórias sobre histórias sobre histórias, e o problema das histórias começa nas suas bases. (…)

Contudo, os seres humanos aparentemente têm uma forma mais complicada de identificar as coisas: não apenas pelo seu aspecto, mas também pelo modo como os fazem sentir. (…) O aspecto exterior das coisas poderá manter-se, mas parecerá que lhes falta algo interior. (…)

Rumi, um poeta sufi do século XIII, alegadamente escreveu: «A nossa missão não é procurar o amor, mas apenas procurar e encontrar todos os obstáculos em nós que erguemos contra ele.»


in: O Budismo tem Razão, de Robert Wright, Editora Farol, 2021 

21 junho 2023

Poema | Flores

 

Crescem flores no meu caminho

Tenho almofadas nos meus pés

Voo em plenitude,

Sobre as flores do meu caminho.


Crescem flores no meu caminho 

Brancas, Amarelas,

De todas as cores.


Crescem flores no meu caminho.


in: As flores no meu caminho, Poema de Ana Paula Gaspar, 20 de junho 2023.

21 maio 2023

Deus Cérebro | Série Documental Internacional

O tamanho do cérebro humano está ajustado ao tamanho do próprio corpo humano, mas é provável que o Homem de Neandertal tivesse um cérebro 10% maior do que o actual, o que implicaria uma gestação de 12 meses. (…)

Descendemos dos primatas que andavam nas árvores a comer bagas e a comer folhas e a certa altura a seca chegou a África. E, portanto, foi necessário descer das árvores e ir arranjar outras alimentações. Ainda eram claramente herbívoros mas depois não foi suficiente para a alimentação e então passaram a ser carnívoros e isso pode ter representado uma modificação radical no organismo. (…) Aqui entra a importância da tecnologia humana e o impacto que ela teve desde os primórdios na própria evolução da espécie e no cérebro em particular. Primeiro, com a construção de objetos de pedra afiados que permitiam cortar e esmagar os alimentos e depois com uma descoberta absolutamente decisiva: o fogo. (…)

Sem estas ferramentas, sem fogo, sem modificar a comida que comemos, não estaríamos aqui. Não teríamos energia suficiente para alimentar o cérebro que temos. (…)

A criatividade, por exemplo, implica um maior gasto de energia e mais fadiga cerebral. É por isso que o cérebro arranja forma de simplificar processos para evitar gastos supérfluos. Ao criar rotinas, ao fazer as coisas da mesma maneira, estamos a simplificar e a ajudar o cérebro a poupar energia. Sair da rotina obriga o cérebro a fazer novas associações, a lidar com o inesperado, o que exige um suplemento energético adicional. (…)

Separámo-nos dos primatas há 7 milhões de anos. Há 2 milhões o cérebro iniciou a sua trajetória de crescimento e estagnou há 200 mil anos. Mas foi apenas há 12 mil anos que inventámos a agricultura e há pouco mais de 5 mil a escrita. Desde então é surpreendente aquilo que a humanidade imaginou, criou, experimentou. (…)

Os nossos antepassados passaram a reunir-se em torno da fogueira, contando histórias épicas das caçadas, reforçando alianças ou ajustando contas, coscuvilhando, dançando e cantando. É o lançamento da primeira pedra da cooperação, que viria a afirmar-se como um pilar crucial para o desenvolvimento da mente humana e como parte da resposta à pergunta: Como chegámos até aqui? (…)

O amor é uma das forças mais poderosas, "uma tempestade perfeita". (…) Pode ser um amor real ou um amor imaginado. Mas tem que existir, porque isso reforça circuitos que nos permitem crescer bem. (…)

Quando se perde alguma coisa do lado emocional perde-se também do lado cognitivo. Este é um dos desafios da neurociência para os próximos anos, tentar descodificar a complexidade da relação entre o afecto e a inteligência cognitiva. (…)

O que as pessoas chamam "sexto sentido" é a intuição que, na verdade, é a capacidade do cérebro para premeditar, para adivinhar o que vai acontecer a seguir. Nós somos notáveis na capacidade de o fazer. (…)

"Sem a invenção da linguagem teríamos continuado a ser animais. Sem metáforas ainda seriámos selvagens." E, "quanto mais avançada é a civilização, mais elaboradas são as suas metáforas." (…)

Não somos os únicos que recorremos à música. Olhemos para o que se passa no reino animal. Vários tipos de animais criam melodias. É o caso dos grilos, das rãs, mas sobretudo dos pássaros. O que se verifica é que os pássaros com os sons mais elaborados são também os que têm maior número de namoradas. Ou seja, as melodias criadas pelas aves são um instrumento de sedução e uma chamada para o acasalamento. Quanto mais complexas as melodias, mais companheiros os pássaros conseguem conquistar. (…) Para o universo humano as semelhanças são as muitas. (…) A música exerce um enorme poder de sedução. 

Charles Darwin estava convencido de que a música precedeu a fala e surgiu exactamente com um objetivo sexual, para seduzir o parceiro e reproduzir, conquistando alguém biologicamente apto para assegurar a descendência. (…) 

Quer isto dizer que o adolescente tem um cérebro que é naturalmente ávido por recompensas, o que se pode tornar uma combinação explosiva. O cérebro adolescente é particularmente vulnerável e sensível a qualquer coisa que lhe dê prazer. (…) A parte que diz respeito à moral, à noção de risco e ao planeamento futuro só fica concluído entre os 20 e os 24 anos, quando o córtex pré-frontal termina a sua evolução. (…) 

Cada cérebro humano é o realizador de uma narrativa original, pegando no passado, fazendo projeções contínuas para o futuro. (…)

O cérebro é uma entidade em constante mutação. Continua a evoluir. (…)

O amor e a felicidade são o bem-estar supremo, aquilo pelo qual o trabalho conjunto do corpo e cérebro lutam, em prole de um desígnio maior: o prolongamento da vida, a homeostasia. (…)

Por muito que custe a aceitar a quem apregoa os pergaminhos do purismo da raça e da xenofobia, meus amigos, estamos todos cada vez mais parecidos e viemos todos de África. A diferença entre as raças localiza-se em um milímetro da epiderme, sim 1 milímetro de epiderme. (…) Não é mais do que uma reação à luz do sol. (…)

O equilíbrio no corpo humano resulta de uma obra de minúcia, de uma verdadeira perícia de relojoeiro ao longo de milhões de anos.


in: Deus Cérebro, de Anabela Almeida e António José de Almeida, Oficina do Livro, Lisboa, Fevereiro 2023

16 março 2023

A Lei do Espelho | Yoshinori Noguchi

Alegra-me que consiga encarar o problema de uma perspectiva mais optimista. Isso é conhecido como a lei da inevitabilidade: quando aprendemos uma coisa, vemos a seguinte com mais clareza. A verdade é que todos os problemas que temos na vida têm como objetivo revelar-nos algo mais importante. Isto é, nada ocorre por acaso, e as coisas acontecem porque é inevitável que assim seja, ou pelo menos assim é até que resolvamos algum problema que tenhamos pendente. Todos os problemas têm solução e, se os enfrentarmos com optimismo, acabam por nos trazer algum benefício que nos fará dizer: «Fico contente por isto ter acontecido. Graças àquele problema …» 

(…)

O senhor Yaguchi ensina a seguinte lei a Eiko, a protagonista da história: a realidade do que acontece na nossa vida não é mais do que um espelho que reflete o nosso interior. Esta frase expressa na perfeição o significado da «lei do espelho».

Como esta lei indica, a realidade da nossa vida replica fielmente o funcionamento de um espelho: reflete o que existe no nosso coração.

(…)

Assim, na vida, recebemos sentimentos que têm o mesmo comprimento de onda dos que enviamos. Nesse sentido, a vida é um espelho que reflete o nosso estado interior. 

(…)

«Para que desenvolvamos o nosso eu, é preciso estabelecer uma certa distância em relação à mãe. Quando esta distância não é suficientemente grande, somos dependentes ou estamos a ser dominados. (…) Não é possível quebrar os afetos ávidos e inseguros nos laços entre mães e filhos, ainda que tenha chegado o momento. Quando se trata de desfazer esse vínculo, ambos resistem a permiti-lo. 

O filho experimenta sentimentos de culpa e ansiedade ao ouvir o choro e as críticas da mãe; nasce em si a sensação de que não pode ir a sítio nenhum sem ela e, se a abandona, sente-se mau filho. A situação neste ponto ainda é reversível, caso decida afastar-se rapidamente das fraldas da mãe.

De certa maneira, o primeiro passo a dar, por mais doloroso que seja, para vir a ser um adulto independente é desembaraçar-se da situação da mãe. É uma fase dura, em que sentiremos o coração despedaçar-se. A experiência é muito mais difícil para quem se tenha sentido querido e mimado durante a infância do que para quem não sente que tenha recebido tanto afeto.»

(…)


in: A Lei do Espelho, de Yoshinori Noguchi, Editorial Presença, Lisboa, Fevereiro de 2023

28 fevereiro 2023

Vontade de Existir | Poema

 

Todos se ocupam do pensamento.

Mas, é no corpo que tudo acontece.

Esse sábio ancestral,

Munido de todas as ferramentas.

Necessárias à sua sobrevivência.

E, é tudo.

Cada micro sensor lê e escreve.

Nas linhas do desejo.

Uma vontade de existir.


in: Vontade de Existir, Poema escrito por Ana Paula Gaspar, no dia 25 de fevereiro 2023.

03 fevereiro 2023

Eternar a Natureza | Museu da Música

 


in: Eternar a Natureza, Exposição de Obras de Arte, de Ana Gaspar, no Museu de Música Mecânica, patente desde o dia 4 de Fevereiro a 5 de Março 2023

02 fevereiro 2023

À Árvore | Poema


Oh! Árvore que estás no meu caminho.

Há muitas árvores! 

Mas, tu és única.

Abres os teus braços para o céu.

Enraizaste-te bem na Terra,

Que acolheu a tua semente, e da qual brotaste,

Com toda a força e determinação!

Assim, carregas no teu ventre essa sabedoria.

Aprender a viver.

És presente no meu corpo.

Salvaste a minha alma das intempéries,

Tantas e tantas vezes.

Envolves-me com a tua imponência.

Mostras-me a tua coragem em te manteres aqui.

Amo-te.

És igual a mim.

Sou igual a ti.

E, somos únicas. 

Já te agrediram. Senti o teu golpe como sendo meu, 

Ou talvez, porque tenho também, golpes na minha alma.

Cruzaste-te no meu caminho.

Agradeço-te eternamente.


in: À Árvore - Amiga na caminhada da vida, Poema escrito no dia 2 de Fevereiro 2023 (Mas, muito antes sentido, e neste dia apresentado ao mundo)

01 fevereiro 2023

Sobre a Brevidade da Vida | Séneca

 Não é que tenhamos pouco tempo para viver, a verdade é que dele desperdiçamos muito. A vida é longa que baste, e foi-nos dada uma quantidade generosa para que possamos realizar todas as nossas conquistas, caso todo este tempo seja devidamente investido. (…)

Assim é: não nos é dada uma vida curta, nós fazemos-la curta. Não estamos mal abastecidos, lançamo-nos é ao desperdício. (…) Portanto, o nosso tempo de vida torna-se amplo quando cuidado de forma devida.

Os vícios rodeiam e atacam o ser humano por todos os lados não deixando que se erga e encare a verdade. (…) Mas tu nunca te dignaste a olhar-te no espelho e a estar atento ao que tu próprio realmente precisas. (…) És apenas incapaz de estar a sós contigo.  

Ele nunca será em parte prisioneiro de nada, se aproveitar a liberdade como dono de si mesmo, elevando-se acima de qualquer outro. (…)

Mas aprender a viver leva uma vida inteira, e, decerto para teu espanto, leva uma vida inteira para que aprendamos a morrer. (…) Os que te chamam para o pé deles, afastam-se de ti. (…)

Mas aquele que se devota a si mesmo, que organiza todos os dias como se fosse o ultimo, não anseia nem teme o dia seguinte. (…)

Ninguém trará de volta os anos, ninguém fará regressar aquilo que se foi. A vida seguirá o caminho que começou a percorrer, sem voltar atrás nem reverter o caminho. (…)

A vida passa, vertiginosamente rápida e imparável, por nós, estejamos de pé ou deitados. Os ocupados só se dão conta quando tudo acabar. (…)

Não interessa quanto tempo nos é dado se não existe nenhum lugar que o acomode, ele escapa pelas fendas e buracos da mente. (…) O presente é curtíssimo, muitos nem estão cientes de quanto, a ponto de o acharem inexistente. (…) Porque está sempre em movimento, a fluir (…)

De toda a gente, só aqueles que se dedicam à filosofia estão realmente descansados, só eles vivem de verdade. Não só pelo controle do tempo em que se inserem, como porque lhe juntam toda a eternidade. Todo o tempo que passou é acrescentado ao deles. (…)

A condição dos preocupados é miserável- e a miséria é seguir ordens como amar e odiar. (…)

Mesmo depois de ter consultado todas as obras escritas pelos mais famosos autores sobre o controlo e a moderação da mágoa, não encontrei exemplo algum de quem tenha sido capaz de consolar outro enquanto padecia da mesma tristeza. (…)

O infortúnio eterno tem uma benção, acaba por endurecer aqueles a quem aflige de forma constante. (…)

Todas as tuas mágoas foram um desperdício se ainda não aprendeste a ser miserável. (…) Fi-lo, corajosamente, por ter decidido conquistar a tua dor, não enganá-la. (…)

Era intenção da natureza que não houvesse necessidade de grandes apetrechamentos para que tivéssemos uma boa vida: cada indivíduo pode fazer-se feliz. Os bens materiais são da mais banal importância e de pouca influência: a prosperidade não eleva o sábio e as adversidades não o deprimem. Porque sempre se esforçou para confiar ao máximo e para obter todo o prazer de si mesmo. E depois? Pensas que me estou a chamar sábio? Claro que não. Se pudesse dizer tal coisa (…)

Não foi feito de materiais pesados da terra, mas desceu de um espírito celestial: mas as coisas celestiais estão semana em movimento por natureza. (…) O Sol desliza constantemente, deslocando-se de um lugar para outro, e embora gire com o universo, o movimento é oposto ao do próprio firmamento: percorre todos os signos do zodíaco sem nunca parar; o movimento é eterno à medida que viaja de um ponto para o outro. Todos os planetas estão sempre a rodopiar e a passar; como a lei inviolável da natureza decretou, são varridos de uma posição para outra; quando, no decorrer de períodos fixos, tiverem completado os percursos deles, voltarão a entrar nos caminhos por onde vieram. (…) Verás que tribos e nações inteiras mudaram de lugar. (…)

Onde quer que vamos temos de lidar com as mesmas leis da natureza. (…)

Não ter país não é miséria: ensinaste-te através dos teus estudos a saber que para um homem sábio todos os lugares são o seu país. (…)

Não há comida em todo o lado? A natureza espalhou-a por toda a parte; mas os humanos passam por ela como se fossem cegos, vasculham todos os países. (…) Quão pequeno é o vosso corpo. (…)

Como se pode acreditar, que a felicidade é medida pela riqueza e não pelo estado de alma. (…) Nada é suficiente para a ganância, pouco é suficiente para a natureza. (…)

Tal como nenhuma quantidade de líquido satisfará aquele cuja sede não se deve à falta de água, mas sim a uma febre interna: pois não é de sede que se trata, mas de uma doença. (…) É a alma que nos trás riqueza.

Assim a alma nunca poderá sofrer no exílio, sendo livre e semelhante aos deuses, igual a todo o universo e a todo o tempo. Pois o pensamento engloba todo o céu e viaja para todo o passado e futuro. (…)

É da nossa natureza admirar, mais do que qualquer outra coisa, aqueles que mostram coragem perante a adversidade. (…)

Daí ser melhor conquistar a dor do que enganá-la. (…) 

O uso prolongado de boas e más práticas leva a que as ames. (…)

É mais fácil para mim defender a minha alma do que os meus olhos. (…) Que ninguém me faça perder um dia. (…) Quem se atreve a dizer a verdade a si próprio? (…) Para expressar através de uma comparação junta, o mal de que queixo, não é a tempestade que me atormenta, mas o enjoo de navegar. (…)

De facto, existem inúmeras características da doença, mas só um efeito - o descontentamento próprio. Isto surge da instabilidade mental e de desejos amedrontados e não realizados. (…)

Pela hesitação de uma vida incapaz de ver o seu caminho em frente e pela letargia de uma alma estagnada. (…) Odeia contemplar e seu próprio isolamento. (…) A ociosidade improdutiva alimenta a malícia. (…) A mente é activa por natureza e inclinada para o movimento. É da natureza da doença não poder sofrer por muito tempo. (…) Diz Lucrécio: «Assim cada um foge sempre de si próprio.»  

Se te aplicares ao estudo, evitarás todo o tédio da vida, não desejarás a noite por estares farto do dia, não serás um fardo para ti próprio, nem inútil para os outros, cultivarás muitas amizades e as melhores pessoas reunir-se-ão em teu redor. (…)

Sê um amigo fiel e um companheiro afável. (…) e reivindicámos o mundo como nosso país. (…) o teu encorajamento, o teu exemplo, a tua coragem. (…) Mantém-te firme e ajuda, embora em silêncio. (…)

Terás que reinvindicar mais tempo para o descanso e para o trabalho literário. (…)

Devemos ser especialmente cuidadosos ao escolher aqueles com quem nos damos. (…) Contudo, nada há que possa dar mais alegria à alma do que uma amizade carinhosa e fiel. (…) Que alegria é confiar. (…)

Misturar os sãos com os doentes é como começar uma epidemia. (…)

Por muito fiel que seja, por muito dedicado que seja um amigo, um companheiro sempre perturbado, sempre a gemer é o maior inimigo da tranquilidade. (…)

Estás enganado se pensas que os mais ricos são mais fortes: a dor da ferida é a mesma. (…)

Comamos apenas para satisfazer a fome; bebamos apenas pela sede; não deixamos que os apetites carnais vão além dos desejos da natureza. (…) Procuremos usar e não exibir. (…) Olhar para a pobreza sem preconceitos. (…) Em tudo o excesso é um vício. (…) Toda a existência é escravidão. (…) Concentremo-nos no que está próximo de nós. (…)

A solidão e a união com a multidão: uma fará com que tenhamos saudades das pessoas, e a outra, de nós próprios, e cada uma delas será o remédio para a outra; a solidão curará a saudade que temos por uma multidão, e uma multidão curará o aborrecimento da solidão. (…)

A alma não pode dizer nada de grande e acima da gama comum se não for fortemente movida. (…)


in: Sobre a Brevidade da Vida, de Séneca, Talento, 2022

31 janeiro 2023

Sonho | Poema


Tenho saudades do Amor.

De ver a sua alma através dos seus olhos.

Do primeiro beijo fugaz ao canto da boca.


E, da camisa branca ao lado da minha, a sua é de melhor qualidade.

Da luz que emana e que ilumina a minha alma.

Dos cantos e recantos na terra, percorridos para um abraço.


Da vida que senti.

Da alegria de ser.

Da nudez do espírito.


Da transparência do Mar.

Do mergulho em mim.

E do elevar da alma.


in: Sonho, com o amor, Poema escrito no dia 23 de Janeiro 2023