O jogo interessa-me muito- disse Hermann - mas não posso arriscar o necessário para obter o supérfluo.
- Hermann é alemão: é económico, está tudo dito - observou Tomski. - Mas, se há alguém a quem eu, neste caso, não compreenda, é a minha avó, a condenssa Ana Fédovna. (…) - Ora essa! - disse Narumof. - Que pode haver de estranho em que uma mulher de oitenta anos não jogue? (…) - Pois então, ouçam.
Antes de mais, importa dizer-lhes que a minha avó, há uns sessenta anos, foi a Paris, onde fez furor. Seguiam-na aos grupos; toda a gente queria ver a Vénus Moscovita. Richelieu, que lhe fez corte, quase se suicidou por ela não corresponder aos seus desejos. Nesse tempo as damas tomavam atitudes de rainhas. (…) Uma noite, na corte, a minha avó, que estava a jogar contra o duque de Orleães, perdeu (…) confessou a sua dívida ao meu avô; convidou-o a pagá-la. (…) Temia-a como ao fogo. (…) Em resumo, recusou-se a pagar. A avó deu-lhe uma bofetada e, para consumar a desgraça, foi dormir noutro quarto. (…)
Mas, meu caro Conde - respondeu a minha avó - já lhe disse que não ficámos com dinheiro nenhum! - Nem é preciso - replicou Saint- Germain. - Ora faça favor de ouvir o que lhe vou dizer … E revelou-lhe então um segredo que qualquer de nós pagaria por um bom preço … Os jovens jogadores redobraram de atenção. Tomski acendeu o cachimbo, tirou uma fumaça e continuou: (…)
Como está o tempo? Há vento, não? - Não, excelência - respondeu o criado de quarto - está muito agradável. - Vocês respondem sempre ao acaso. Abre a janela. Bem dizia eu! Está vento; e um vento desabrido. Manda desatrelar! Lisanka, não saímos. (…) "E é isto a minha vida!" pensou Lisavete Ivanovna.
Lisavete Ivanovana era na verdade, muito infeliz. (…) Era avara e comprazia-se num pio egoísmo, como todos os velhos para os quais o amor morreu e que são hostis ao presente. (…) Vestida e pintada à moda antiga, ficava sentada a um canto, adorno repugnante e obrigatório dos salões de baile. (…) Em sociedade, o seu papel era dos mais miseráveis. Todos a conheciam, ninguém reparava nela. (…)
A condessa não respondeu. Hermann apercebeu-se então de que estava morta. (…) Ninguém chorava (…) A condessa era tão velha que a sua morte não podia surpreender ninguém e há muito tempo os parentes a consideravam como já não fazendo parte deste mundo. (…)
Mas a mulher vestida de branco aproximou-se mais, colocou-se diante dele e Hermann reconheceu a condessa. (…) Vim a tua casa contra a minha vontade - disse em voz firme - Mas foi-me ordenado que satisfizesse o teu pedido. Terno … sete … às … ganharão a seguir, mas é preciso que jogues só uma carta por noite e que nunca mais voltes a jogar em toda a tua vida. Perdoar-te-ei a minha morte com a condição de casares com a minha protegida Lisavete Ivanovna. (…) e escreveu a narrativa da sua visão. (…) Hermann bebeu um copo de limonada e voltou para casa. (…)
O às ganha! Disse Hermann - A sua dama perdeu - disse Tchekalinski com suavidade. Hermann estremeceu: com efeito, em vez de um ás, tinha na mão a dama de espadas. Não acreditava no que lhe diziam os seus olhos, não compreendia qual a razão do seu equívoco. No mesmo instante pareceu-lhe que a dama de espadas piscava maliciosamente um olho e lhe sorria. De súbito, reparou na semelhança extraordinária … - A velha! - exclamou espantado. Tchekalinski recolhia as notas. (…)
Hermann enlouqueceu. (…) murmura numa obcecação contínua: «Terno, sete, às! Terno, sete, dama!»
in: A Dama de Espadas, de Puskine, Publicações Europa-América, Lisboa, Julho de 2007 (Diário de Notícias)