Aguarelas Finas, Le Corbusier | Maison La Roche, Paris

30 dezembro 2024

Exposição Museu Municipal de Portalegre

 


in: As Árvores e Não Só, Desenhos de Ana Gaspar, Uma Exposição no Museu Municipal de Portalegre, Outubro e Novembro de 2024

10 dezembro 2024

Matarás Um Culpado e Dois Inocentes | Rodrigo Guedes de Carvalho

 Os dois homens que falam com Miguel Serafim são as maiores cumplicidades de uma vida inteira. Amigos de todo o espantoso, difícil, arriscado, enervante, embriagado período da adolescência, que parece que nunca mais passa quando estamos lá dentro, e depois é uma adulta vida inteira a desejar reviver esses anos. E todos temos o mais impossível dos pedidos - regressar à juventude com a manha sábia de um velho. (…)

Às vezes tento explicar à malta mais nova que não há maior fortuna do que esta. Não ter vivido uma guerra. Mas ninguém liga. Não percebem. 

- Sempre muito zangadinhos e tristonhos nas vidinhas confortáveis. (…)

E Miguel Serafim é o Maestro antes de ser maestro. É a alcunha mais curiosa, uma inusitada coincidência. Foi-lhe dada muito antes de ele decidir que seria músico de profissão e conduzir orquestras. Chamavam-lhe Maestro porque desde pequeno demonstrava comportamentos comandados por pequenas e grandes obsessões, extremamente incomuns para a idade. Manias de ordem, simetria e higiene. Gestos adultos, repetidos como rituais. Maestro. (…)

Quando toda a gente se conhece, vêm coisas boas, e outras menos. Sabem uns dos outros os nomes e famílias, e moradas, e manias, se as houver. Sabem horários da escola, da farmácia, do mercado, do cemitério. Falta privacidade, a quem a deseja, embora quase todos estejam habituados a ser livro aberto, condição compensada pelo conforto de auxílio rápido se alguém precisa de ajuda. (…)

Por vezes, e isto é estranho, uma mesma frase, sem tirar nem pôr, pode ser dita com desprezo, ou receio, ou admiração 

- A Benilda fala com os mortos.

- A Bernarda entende malucos.

- A Berenice vi-a eu a descer a colina com um lobo ao lado.

E de Benedita não havia nada de especial a apontar, que não fosse o sorriso permanente, e se era matéria sobre as irmãs - com quem falavam ou deixavam de falar - então que seja dito que Benedita falava com toda a gente e toda a gente falava com ela, talvez por ser a mais nova e para sempre a mais pequena, que não tendo crescido tanto como as irmãs ganhava na alegria simples de cirandar a ver se estavam todos bem ou se alguém precisava de alguma coisa. (…)

O amor não correspondido traz uma dose de enervamento. A não consumação. O desconhecimento do toque, odor, textura do objeto de desejo. O que nunca foi, e para sempre estará vedado. (…)

- Hoje ja tens idade para saberes que andávamos há muito tempo com a ideia de nos suicidarmos juntas. Até foi a Benedita a primeira a falar disso. (…)

Há desde sempre amos e servos. E a dinâmica entre amos e servos engole tudo, qualquer resistência, acabou por devorar utopias de igualdades, as que já foram e as que os ingénuos do futuro ainda hão-de tentar reerguer. Sazonalmente, que é como quem diz umas duas vezes ao século, nasce alguém que julga que vai inventar outra vez a roda e descobrir o fogo. Depois de tropeções, aparentes progressos, descaminhos e linhas retas que começam a entortar, sobeja, paciente, a rir-se de algumas pontes frágeis, a linha funda entre amos e servos. (…)

O mais extraordinário e macabro é que Feliciana matou as irmãs porque pensou que se podia safar. Era só defender e fortalecer a velha teoria de que elas se queriam suicidar. Nenhuma delas, nem mesmo a desconfiada Bernarda, podia sequer imaginar que houvesse uma força assim dentro de alguém. Um ódio tão violento, desmedido, um ódio nascido de um cruzamento complicado com o amor. Com o que ela julgava ser amor. Com o amor que ela conhecia. Um amor que anda sempre, sempre, de braço dado com mais completo e simples e horrível ciúme. O ciúme do porque sim. O ciúme da posse pela posse, que julga poder segurar o amor à força de o estrangular. E que estrangular o amor vai fazê-lo ficar, vai fazê-lo amar de volta. Esse eterno e bruto equívoco que mudou cursos da História. (…)

Fiz ao meu corpo o que quis, sem a permissão dele. (…)

Só que as pessoas são animais de hábitos, ainda pior se são animais mascarados de pessoas. (…)


in: Matarás um Culpado e Dois Inocentes, de Rodrigo Guedes de Carvalho, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2024

18 novembro 2024

O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá | Jorge Amado

O Vento a ajudaria a apagar as estrelas, a acender o Sol, a secar o orvalho e a abrir a flor denominada Onze Horas que a Manhã, só de ranheta, para contrariar, abre todos os dias entre as nove e meia e as dez. Se casasse com o Vento sairia com o marido mundo afora, sobrevoando o cimo altíssimo das montanhas, esquiando nas neves eternas, correndo sobre o dorso verde do mar, saltando com as ondas, repousando nas cavernas subterrâneas onde a escuridão se esconde durante o dia para descansar e dormir. (…)

Tantas queixas recebidas, tão grande atraso, o Tempo sente-se obrigado a ralhar com a Manhã, se bem, ao lhe chamar a atenção e ameaçar castigo, esconda um sorriso cúmplice no rosto solene de barbas e rugas. (…) 

Íntimos, demasiadamente íntimos, o Vento e a Chuva, companheiros de vadiagem. (…)

O Gato Malhado estirou os braços e abriu os olhos pardos (…) e sim, todo o corpo ágil, de riscas amarelas e negras. Tratava-se de um gato de meia-idade, já distante da primeira juventude, quando amara correr por entre as árvores, vagabundear nos telhados, miando à lua cheia canções de amor, certamente picarescas e debochadas. Ninguém podia imaginá-lo entoando canções românticas, sentimentais. 

Assim vivia ele quando a primavera entrou pelo parque adentro, num espalhafato de cores, de aromas, de melodias. Cores alegres, aromas de entontecer, sonoras melodias. O Gato Malhado dormia quando a primavera irrompeu, repentina e poderosa. Mas sua presença era tão insistente e forte que ele despertou do seu sono sem sonhos, abriu os olhos pardos e estirou os braços. O Pato Negro, que casualmente o olhava, quase caiu de espanto porque teve a impressão de que o Gato malhado estava sorrindo. Fixou o olhar, chamou a atenção da pequena Pata Branca:

- Não parece que ele está rindo?

- Santo Deus! Está rindo mesmo…

Jamais o tinham visto rir. (…) De repente rebolou-se na grama como se fora um jovem gato adolescente, soltou um miado que mais parecia um gemido. Foi uma emoção geral pelo parque. (…)

Foi uma triste constatação. Primeiro deixou de sorrir, mas depois encolheu os ombros num gesto de indiferença. Era um gato orgulhoso, pouco lhe importava o que pensavam dele. Até piscou - num gesto um pouco forçado - um olho malandro para o Sol (…) O Gato Malhado aspirou a plenos pulmões a primavera recém-chegada. Sentia-se leve, gostaria de dizer palavras sem compromisso, andar à toa, até mesmo de conversa com alguém. Procurou mais uma vez com olhos pardos, mas não viu ninguém. Todos haviam fugido. Não, todos não. No ramo de uma árvore a Andorinha Sinhá fitava o Gato Malhado e sorria-lhe. Somente ela não havia fugido. (…)

Andorinha Sinhá, além de bela, era um pouco louca. Louquinha, fica-lhe melhor. (…) Amiga das flores e das árvores, dos patos e das galinhas, dos cães e das pedras, dos pombos e do lago. Com todos ela conversava, um arzinho suficiente, sem se dar conta das paixões que ia espalhando ao seu passar. (…)

Assim são as andorinhas, o que se pode fazer? - não há forma de fazê-las compreender a verdade mais rudimentar, a mais provada e conhecida, se elas se metem a duvidar. São cabeçudas e se deixam guiar pelo coração. O Gato Malhado era a sombra na vida clara e tranquila da Andorinha Sinhá. (…)

Quanto ao Gato Malhado, também ele pensou na arisca Andorinha Sinhá, naquela primeira noite da primavera, ao repousar a cabeça no travesseiro. Aliás, eis uma coisa que ele não possuía: travesseiro. (…) Sendo de pouco luxo, não reclamava. Falta sentia de outras coisas: de afeição, de carinho e de salsichas vienences. (…) Creio que estou doente. - Colocou a pata sobre a testa e concluiu: - Estou ardendo em febre… Quando, ao cair da noite, voltava para a sua cama - um velho trapo de veludo - olhou uma flor e nela viu refletidos os rasgados olhos da Andorinha. (…)

Desejo dizer que há gente que não acredita em amor à primeira vista. Outros, ao contrário, além de acreditar afirmam que este é o único amor verdadeiro. Uns e outros têm razão. É que o amor está no coração das criaturas, adormecido, e um dia ele desperta, com a chegada da primavera ou mesmo no rigor do inverno. (…) 

De repente, o amor desperta de seu sono à inesperada visão de um outro ser. Mesmo se já o conhecemos, é como se o víssemos pela primeira vez e por isso se diz que foi amor à primeira vista. Assim o amor do Gato Malhado pela Andorinha Sinhá. (…)

Se eu não fosse um gato, te pediria para casares comigo…

A Andorinha ficou calada, num silêncio de noite profunda. Surpresa? - não creio, ela já adivinhara o que se passava no coração do Gato. Zanga? - não creio tampouco, aquelas palavras foram gratas ao seu coração. (…)

Não apenas com um manto contra o frio cobria-se o Gato Malhado naquela manhã de lírica inspiração: cobria-se também com o manto do amor. A poesia não está somente nos versos, por vezes ela está no coração, e é tamanha, a ponto de não caber nas palavras.


in: O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá, uma história de amor, de Jorge Amado, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1999

05 novembro 2024

Dentro da Loja Mágica | Dr. James Doty

Achava que tinha sorte quando, ao contrário da maioria dos meus amigos, nunca tinha de estar em casa a horas certas (…) Por vezes, aquilo que mais queremos é apenas ter alguém que fale connosco, que nos diga qualquer coisa. Porque isso significa que somos importantes. (…) Os adolescentes anseiam por liberdade, mas só se tiverem um suporte estável e seguro. (…)

Na escola de Medicina iria estudar o coração. (…)

Eu nunca ouvira dizer que cientistas famosos tivessem odiado os pais ou tido problemas com colegas de escola. (…) Hoje sei que grande parte do que Ruth começou a ensinar-me nesse primeiro dia está relacionado com o cérebro e com uma resposta extrema ao stress, ou aquilo a que a maioria das pessoas chama "lutar ou fugir". Se o cérebro deteta uma ameaça ou se teme pela sua sobrevivência, aquela parte do sistema nervoso autónomo chama sistema simpático reage e liberta pinefrina. (…)

Passa-se o mesmo com as feridas do coração. Precisamos de dar-lhes atenção, para que possam sarar. Caso contrário, a ferida continuará a fazer-nos sofrer. E por vezes durante muito tempo. Todos sofremos. É assim que as coisas são. Mas a verdade é que aquilo que nos magoa e nos faz sofrer também tem um importante propósito. É quando são feridos que os nossos corações se abrem. Através da dor, vamos crescendo. Crescemos com as situações difíceis. É por isso que temos de aceitar cada problema que surge na nossa vida. Tenho pena das pessoas que não têm problemas, que nunca passaram por momentos difíceis. Perderam a recompensa. Perderam a magia. (…)

Passara grande parte da vida a comparar-me com amigos (…)

A outra parte do processo de abrir o coração que vais ter mesmo de praticar - é importares-te contigo mesmo. Eu importava-me comigo. Isso ia ser fácil. (…) Cada um de nós escolhe o que é aceitável na sua vida. (…)

Jim, muitas vezes aqueles que nos magoam são os que mais estão a sofrer. (…)

E se conseguíssemos curar as nossas próprias feridas (…) Algo que todo o ser humano tem em comum é o primeiro som que ouve. O bater do coração da mãe. (…)

Quando os monges ouviram isto, desatar a rir. (…) »Toda a gente sabe que a compaixão não vem do cérebro, mas sim do coração.» A investigação mostra que o coração é um órgão inteligente. (…)

Ruth estava a melhorar a minha capacidade para controlar as emoções, a aumentar a minha empatia, as minhas aptidões sociais (…) Tentei abrir o coração. Fiz todos os esforços para recitar as minhas afirmações. Porém na minha mente eu continuava a ser o menino pobre, que vivia num pequeno apartamento e que tinha muitas vezes fome de comida e de amor. (…) Ruth ensinou-me a levantar-me sozinho. (…)

Há um velho provérbio, que diz: «Quando o estudante está pronto, o professor aparece.» Eras tu quem estava pronto. (…)

Há um imenso poder contido no propósito de cada um. (…) Cada um pode alterar o seu cérebro, percepções, reações e até mesmo o seu destino. Foi o que aprendi com a magia de Ruth. Podemos usar a energia das nossas mentes e a dos nossos corações para criar tudo o que quisermos. É um trabalho duro. (…) 

A energia não pode ser criada nem destruída. No entanto, pode mudar de forma e fluir de um local para outro! Essa é a dádiva que nos foi concedida. A energia do Universo está dentro de nós. Está na poeira das estrelas que nos enforma. Todo esse poder de criação. De expansão. Todo esse poder maravilhoso simples, sincronizado. A energia pode fluir de um sítio para outro. E de uma pessoa para outra. (…)

O tronco encefálico desenvolve-se e coordena as funções vitais essenciais, tais como o ritmo cardíaco, a respiração ou a pressão sanguínea - criando as condições para a vida fora do útero. (…) O cérebro não tem hipótese de se reformar - e cada experiência importa. (…)

Continuei a despejar o meu coração, durante o que pareceu uma eternidade (…) Sabem que não há a mínima prova de que um GPA elevado equivalha a vir a ser um bom médico. (…) Então o reitor levantou-se e apertou-me a mão. (…)

Nunca planeei tornar-me neurocirurgião. (…) Mais ainda, ser cirurgião plástico dos ricos e famosos era financeiramente compensador (…)

Aprendera a visualizar o que queria (…) Tornara-me arrogante. Conseguir tudo o que queria(…)

Como se estivesse a sonhar, vi-os embater de frente, contra uma árvore enorme. Nessa altura ficou tudo preto. (…) E tudo, ficou escuro. (…) Ainda tinha os olhos fechados, mas conseguia ouvir o hip dos monitores. (…)

Ao longo da vida podemos morrer milhares de vezes e essa é uma das maiores dádivas de estar vivo. (…) Senti o calor da luz e a unidade com o Universo. (…)

Bússola do coração. (…) Ao longo da vida, todos passamos por situações que nos fazem sofrer. Chamamos-lhe feridas do coração. Se as ignorarmos elas não saram. (…)

O teu coração é uma bússola e é o teu bem mais precioso. (…) O que pensas querer, nem sempre é o melhor para ti. Pensei que queria dinheiro. Na verdade, eu tivera dinheiro, mas parecia nunca era suficiente. (…) E eu continuava tão só, assustado e perdido como no primeiro dia em que conheci Ruth. (…) 

Adormecera a visualizar o meu coração. (…) Fechei os olhos e imaginei o meu coração a abrir-se (…) Enviei amor e perdão a mim próprio. (…)

Era altura de recomeçar a tornar-me realmente uma pessoa cujo valor não tinha a ver com dinheiro que possuía. (…) O cérebro tem os seus mistérios, mas o coração tem segredos que eu estava determinado a descobrir. (…)

Existe um epidemia de solidão (…)

Depois de ter perdido a minha riqueza, dediquei-me a ajudar os outros (…) Agir com bondade e compaixão e com um propósito. (…) 

Quando o amor é dado livremente, muda tudo e todos!


in: Dentro da Loja Mágica, de Dr. James R. Doty, 4ª Edição, Editora Leya, 2024 

12 outubro 2024

Annie Ernaux | Os Armários Vazios

Um calor estranho espalha-se logo como uma flor, algures no baixo-ventre. (…)

Estas palavras fascinam-me, quero agarrá-las, pô-las em mim, na minha escrita. Apropriava-me delas e, ao mesmo tempo, era como se me apropriasse de todas as coisas de que falavam os livros. (…) Adoro as palavras dos livros, aprendo-as todas. A minha mãe oferece-me o Larousse de páginas rosadas a meio, ela conta orgulhosamente à professora que passo horas com o nariz enfiado no dicionário. (…)

Aos poucos, as leituras tornavam-se inúteis, invento sozinha um nome, uma cidade, uma família. (…)

A égua preta! (…) Sempre a ler, a não fazer nada, no quarto, ou na cozinha, nunca na loja nem no café. (…)

A ligeireza, eis o que as distingue, e sempre impecáveis, asseadas. Os outros, os outros assemelham-se todos aos clientes. (…)

Por vezes sonho ser órfã. Ou faço resoluções, não volto a criticar nada, vou fingir que a casa me agrada. (…)

Os professores que me dizem que devo agradecer, que devo ser querida para ela, não aguentariam um dia em minha casa, ficariam repugnados, não param de dizer que têm pavor de gente grosseira, fazem cara de asno quando espirramos ruidosamente, se nos coçamos, se não nos sabemos exprimir. E queriam eles que eu fosse querida … Para me safar, tinha de fechar os olhos, fingir que comia, lia, dormia num hotel qualquer. Acima de tudo, não podia ver o que era feio, sujo, esfarrapado. (…)

No entanto, nada me escapou. Eu fingia simplesmente que não via, fechava-me no quarto com os meus livros, ignorava as bebedeiras no bar. (…) Farta. Detesto tudo. Atada de pés e mãos. (…)

O dia mais belo da minha vida teria incluído um frigorífico, cubinhos de gelo nos copos, iogurtes frescos, para convidar as minhas amigas. Não podia. E havia coisas piores, a ausência de casa de banho, o penico no quarto, ou a latrina no pátio, a merda a céu aberto. (…)

Nas aulas de Ciências Naturais, eu aprendia as regras de higiene, a luta contra os micróbios, forno de esterilização, lixívia, e vejo as moscas a redemoinharem de volta do patê, dos queijos, a minha mãe a apanhar as beatas com os dedos, os bêbados físicos a destilarem a sua porcaria no fumo que serpenteia do café à cozinha, paira sobre os nossos pratos. Lavar-me, uma obsessão, a grande banheira a transbordar de espuma. A felicidade. O meu primeiro duche, na cidade universitária, aos dezoito anos. Nem sequer tive prazer, cheirava a dia de lavar a roupa, eu ouvia a rapariga ao lado a esfregar-se. Senti-me constrangida. (…) 

A culpa é deles se … que se lixe o que os professores dizem sobre os pais. Eu era um pequeno monstro, uma miúda suja, perdida lá no fundo. (…) Não posso continuar a odiar sozinha. Queria que me vissem como eu que os clientes deles, a casa, era tudo mau, feio, humilhante, humilhante … «Deixa-nos em paz! Concentra-te nos teus estudos!» e «Mais tarde, fazes o que quiseres, estuda (…)»

Ninguém acreditaria que fui criada assim. Sozinha. Com o meu asco, os meus ataques de raiva. A culpa é deles … Não, eles nasceram assim. (…) Detestava-me por não ser querida para eles, por não ser como as outras, tão meigas, tão afetuosas. (…) Catorze anos e o mundo deixara de me pertencer. (…)

Eu estava farta de mim própria, ao ponto de explodir, não havia um canto, uma brecha onde enfiar a vergonha, o reconhecimento obrigatório aos pais, o obrigada a Deus por ter podido continuar os estudos e merda, lá se foram as tretas morais. (…)

Odeio-os mais do que nunca. Os meus pais não sabem nada, são uns ignorantes, uns labregos, nem música, nem pintura, nada lhes interessa a não ser vender litros de vinho, comer frango sem falar ao domingo. (…)

A minha amiga é filha de uns agricultores sovinas, vem à escola numa velha bicla, mal-vestida. Odette, a segunda melhor aluna da turma. Nunca falamos dos nossos pais. (…) Boas alunas. (…) Não gosto verdadeiramente dela. o professor de literatura cita Montaigne «porque era ele, porque era eu». (…) Umas marginais juntas, sem o sabermos. (…)

Tinha, no entanto, a impressão de guardar em mim uma graciosidade escondida, um ritmo de dança paralisado, a heroína dos romances pronta a ganhar vida. (…)

Eles faziam tudo por mim. (…)

Grávida e isso não faria sentido nenhum. Eu não queria morrer.


in: Os Armários Vazios, de Annie Ernaux, Livros do Brasil, Porto Editora, Abril de 2024

20 setembro 2024

A Idade do Sol | Exposição Ana Gaspar



in: A idade do Sol, (Exposição de Pintura: ecoline sobre papel de aguarela), de Ana Gaspar, na Biblioteca de Azeitão, 2 a 25 de Setembro 2024

18 setembro 2024

As Cinco Mães de Serafim | Rodrigo Guedes de Carvalho

Miguel Serafim tem uma convicção - quem sobrevive à morte de um grande amor nunca mais terá medo de nada. Nunca mais encontrará um adversário à altura e derrotará todas as circunstâncias. Qualquer outro acontecimento será menor, qualquer problema se resolverá. 

Miguel Serafim é o menos suicida de todos os seres. Tudo na morte o repugna e não lhe reconhece nenhuma vantagem. (…) Nenhuma flor sobre as campas o atrai. (…) A morte é só feia e invencível. (…)

A morte só entra em festas para caçar. (…) Estamos só todos em pânico, nada mais. O que fazemos com o medo é o que nos distingue - uns controlam-se, outros enlouquecem. (…)

Serafim quer cá estar. Jovem e bonito seria bom, mas se só lhe derem uma vida eterna de velho, tudo bem, aceita. (…) odeia a morte. É um ódio que traz desde sempre (…) Detesta as chamadas actividades radicais e os que as inventam e praticam, e impingem aos outros o suposto interesse de uma filosofia de constante desafio à morte. (…) Não se chama a morte para a mesa, não se lhe deixa a porta aberta, à espera de ver o que fará ela com uma oportunidade. (…) Miguel Serafim despreza quem despreza a vida. A extraordinária riqueza que nos cabe, de um dia nascermos e andarmos por aqui, num planeta de maravilhas. A dádiva da vida. Despreza quem demonstra não a merecer de facto (…) Pensou em muitas ideias, frases, imagens, antes de concluir que esta é, afinal, a expressão exata - a dádiva da vida. Há que respeitá-la acima de todas as coisas, de todos, de tudo o que possa suceder. A dádiva da vida trás um contrato e ele despreza quem não o leu ou não o compreendeu. A morte é para ser combatida. Evitada, sempre, até já não ser possível. É a luta que nos entregam assim que pela primeira vez respiramos, na primeira vez que abrimos os olhos, na primeira vez que reagimos a um ruído. Miguel Serafim acha que não devemos bater muitas vezes à porta do Diabo, que um dia ele vai abrir. (…)

Os amigos reconhecem-se e acenam, a contarem os segundos (…) e quem estiver a ver perceberá que no momento em que se abraçam com força imensa sorriem e choram, e não falam. Porque têm hoje sessenta anos e estão no mesmo sítio onde deram um abraço triste de despedida, e tinham então dezanove anos (…)

O suicídio é a coragem suprema ou a cobardia mais indigna? (…) Ou o extraordinário corajoso que abraça a morte no momento que escolheu porque não tem medo de nada (e isto, sim, é não ter medo de nada. Ou o desprezível fraco que tem tanto medo da vida que escolhe a saída fácil, a que se diz que acaba todo o sofrimento (…)

Quando Miguel Serafim desatou num choro nervoso. As cores estavam todas misturadas, numa amálgama que escangalhava o arco-íris em palete que fascinava o menino, o degradê de azulão, celeste, verde, alface, amarelo, laranja, vermelho, lilás, roxo, mais o preto e o branco nas pontas, e porque a caixa tinha agora uns montinhos de lápis de cor aflitos fora do lugar, Miguel Serafim irritou-se por eles, e antes que a mãe lhe aplicasse duas palmadas no traseiro (não suportava birras de sono) o pai tratou de arranjar a disposição das cores, em dois perfeitos noventa graus que se encostam, simétricos, e iluminam o céu depois da chuva, e o filho acalmou-se. Foi este comportamento que fez com que colegas e professores reparassem nele logo na primária. A lentidão meticulosa com que tirara da pasta os lápis, as canetas e o caderno, e os colocava no tampo da carteira sempre, mas sempre na mesma posição. Como em qualquer infância, foi por aqui que o atacaram: não se pode exibir de tal forma o calcanhar de Aquiles. Não tardaram os episódios em que fervia de ansiedade se lhe misturavam os objetos. Quanto mais se enervava, mais o provocavam. Depois os colegas e os professores habituaram-se. Já em pequeno Miguel Serafim só  entendia a existência como uma orquestra, a cada instrumento uma missão específica, de entrada e duração marcada na pauta. E todos constroem e respeitam uma harmonia. E um dia alguém se lembrou de lhe passar a chamar Maestro porque Miguel Serafim estendeu a obsessão à geral, o que significava que por vezes, distraído, alinhava os objetos das outras carteiras, aventurava-se até à secretária da professora, endireitava três ou quatro livros que ela tinha empilhado de qualquer maneira e, havendo no quadro negro alguns rabiscos mal apagados da aula anterior, apagava-os em círculos lentos, até a lousa voltar a brilhar. (…)

Os artistas pertencem à classe dos bandidos. De pequeno delito, a maioria, embora se conheçam saques de monta. Acontece porque o artista necessita de combustível para carburar. Por isso observa muita gente e muita coisa, o que o distingue das pessoas que olham só para ver por onde vão e não tropeçar, e que de resto se limitam a respirar, comer e trabalhar para ganhar dinheiro que lhes permita continuar a comer. Pessoas que se concentram nessa resposta básica que alimenta o corpo básico. Enquanto o artista está sempre a fazer perguntas, a interrogar-se, a questionar a forma como os mecanismos da vida funcionam. O artista é bandido por espia e rouba. Uma estratégia é espiar a vida dos outros e depois escrever o que observou. (…)

Tornou-se maestro contra o caos do mundo. Ninguém sabe que não era só a música. Era a ordem, a simetria, a matemática implacável das partituras. (…) Ninguém sabe que o Miguel Serafim gostava de chegar primeiro do que os músicos, vê-los ocupar cada um o seu espaço, como alinhavam a cadeira e o suporte de pauta, como verificavam se a luz está bem posicionada. Os que aprumam a fatiota, orgulhosos e confortáveis, os que estão sempre a desejar que pudessem actuar mais informais. As peças de xadrez todas  a mexerem-se, gestos, barulhos, risos, tosses, o violoncelo a fazer escalas para afinar, as falanges dos violinistas a sentirem as cordas, ainda sem arco. Depois ele ergue a batuta, imóvel por segundos em posição de profeta, e tudo acontecerá consoante a sua vontade e mandamento. Tornou-se maestro na busca de uma ordem. Uma serena limpidez que o impedisse de desistir e matar-se. Pensou nisso muitas vezes desde o horror. Levou muito tempo a abandonar a ideia e a passar para o oposto. Decidiu viver, com todos os custos, sozinho contra a violência do que perdeu. (…)

Mas todos os grandes músicos amam o silêncio, que vale tanto ou mais do que uma nota a tinir. Gostava do silêncio acima de todas as coisas, e pessoas assim tendem a ligar-se só a quem respeite e compreenda. O que poderá explicar porque é que os grandes amigos ficam tantas vezes calados, lado a lado, a olhar a mesma paisagem. (…)

Que sabem realmente as pessoas da vida dos outros? Porque falam tanto, cheias de certezas, porque apontam factos os meros e gratuitos palpites? (…)

Os dias são candeeiros de lava, uma matéria pastosa que parece quase parada mas move-se, impulsiona e transforma a forma seguinte. (…)

Até para chorar é preciso estar com cabeça e disponibilidade. Com quantas emoções conseguimos lidar ao mesmo tempo? (…)


in: As Cinco Mães de Serafim, de Rodrigo Guedes de Carvalho, Editora Dom Quixote, Lisboa, 2023

13 agosto 2024

Medusa | Jessie Burton

Falas como uma poetisa - disse Perseu. - Uma poetisa marinheira. (…) Fechei os olhos. Vá lá, Medusa. Tu és mais forte do que isso. As minhas cobras juntaram-se mais, formando uma auréola protectora, mas não me senti mais forte. (…)

O ar é fresco. O céu desvanece-se de um azul carregado para um negro profundo. E há sempre uma brisa, um silêncio para o coração perturbado. Um sítio secreto. Eu lembro-me. - Perseu ficou em silêncio por um momento. (…) Toquei nas minhas cobras, que agora dormiam tranquilas. (…)

Infância, esse país de onde vimos mas nunca conseguimos identificar com precisão no mapa. (…)

Não interessa - eu nunca conseguiria explicar a este rapaz dourado e brilhante como era ter o azar a acumular-se, imparável, aos nossos pés, até sentirmos que nos estávamos a afogar na nossa própria tristeza. (…)

Claro que as minhas irmãs tinham razão. Eu havia mudado, só que desta vez, felizmente, era uma mudança que não se podia ver. (…) Pensei em Perseu escondido na gruta. Tinha sido tão fácil falar com ele. Era o meu segredo. Eu nunca tivera um segredo, ainda para mais escondido das minhas irmãs, que haviam feito tudo o que era possível para me proteger depois da vida ter corrido mal. (…) Um segredo era uma fissura no chão entre nós. (…) Durante muito tempo o amor fora um fantasma. (…)

Percebi que o meu cabelo tinha desaparecido e que no lugar havia agora uma coroa de serpentes, vigorosas, fortes, de todas as cores do arco-íris. (…) Medusa - prosseguiu a deusa. - ouve bem. Ai do infeliz que se atreva a olhar para ti agora! (…) 

Senti-me deslocada em relação a mim mesma, como se o meu coração e a minha alma tivessem sido removidos do seu lugar. Percebia que as minhas cobras não gostavam. (…) Teria que passar o resto da minha vida escondida numa caverna? (…) Acariciei a cabeça da pequena Eco, tentando reconfortá-la. Calisto, uma cobra maior, de cor magenta profundo (…)

Já provaram algum perigo doce? (…) Pior, porque depois de o provarmos, tudo o que vier a seguir só pode ser enfadonho. (…)

Aquilo de que nos lembramos e de que modo o lembramos faz de nós o que somos. Talvez tenhamos uma escolha ou talvez não. (…)

Ouve - disse Euríale, começando a perder a paciência - és diferente de todas as mulheres do mundo. Deverias desfrutar disso. (…)

Eu estava encurralada. Era a única pessoa que nunca poderia escapar. (…) Mas, não eu era Medusa. Um monstro. Uma rapariga que se escondia. (…) Se eu fosse uma caixa trancada, Perseu poderia ter sido o único a encontrar a chave. (…) Ambos éramos centenários e cordeiros. Eu esperava pelo amor. (…)

Eu e Perseu. A Lua e o Sol, a prata e o ouro. Para que tinha ele aquela espada, aquele capacete, aquele escudo? (…) Como metais preciosos, os nossos corpos tinham sido transformados em armas. (…)

Eu sou teimosa. Sou um mapa inacabado e quero ser eu a traçar o meu percurso, não que alguém o faça por mim. Era o meu barco, Perseu. A minha vida. (…)

Não foi mau. Comia o pão, deixando metade para Atena (…) de costas voltadas para o mar. (…) 

Eu era dona da minha história. Só eu a podia conservar ou rejeitar. (…) 

Compreendo que somos semelhantes. Somos sobreviventes. (…)

Mas não é possível começar novo capítulo antes de terminar o anterior. (…) Uma mecha não pega sem faísca, e o fogo não havia sido apenas obra de Perseu. (…)

Porém, embora a luz nos permita ver claramente, também nos deixa sem um sítio para nos escondermos. (…) Como «ouro de tolos» em lápis-lázuli. (…)

Só me queria esconder já fora demasiado castigada apenas por ser eu mesma. (…)

E não com a felicidade de Medusa, ou com o seu direito de andar à vontade com o seu corpo, sem medos? Não. A verdade é que estás com inveja, Atena. (…) Vejo-o com bastante clareza - disse Esteno. A Medusa é mais bonita do que tu. (…) - As palavras podem magoar mais profundamente do que o golpe de uma espada. (…) Percebi que algo mau vinha na minha direção. (…)

O olhar de Atena queimou-me a pele, a sua fúria cobriu-me como mortalha. À medida que o seu poder entrava em mim. (…) E tu, agora, apesar de tudo, gostarias de regressar? Perguntei a mim mesma. (…)

Todos merecem ser amados. (…) Foram invejosas e interesseiras, e a seguir cruéis e críticas, e tu acreditaste sempre no que elas tinham a dizer sobre ti. (…)

Isso não faz sentido, Perseu. Como podes cortar a cabeça de alguém que não é real? (…) Sempre soubera que dentro das coisas novas crescem sementes da perda, mas não esperava que a minha perda fosse tão imediata. (…) 

Sou Medusa. O monstro que querias encontrar. (…)

Não tinha acabado, que a minha história estava apenas a começar. (…)

A morte seria um escape. Perseu recuperaria a mãe e eu obteria paz. Os deuses poderiam finalmente ficar satisfeitos. (…) Mas eu não queria morrer. (…) Devemos sempre dar ouvidos ao nosso instinto. (…) Seria o amor mais fácil quando um já não existe? E então lembrei-me do aviso de Atena: «Ai do infeliz que se atreva a olhar para ti agora!» (…) Ambos sabíamos que o tempo acabaria por nos apanhar. (…)

Quando a minha história se tornou finalmente minha. (…) Vi o meu rosto naquele escudo e pareceu-me bem. Perseu atacou-me por causa de uma história, e não foi a que contei aqui. Devem ter cuidado com quem conta a vossa história. (…) Mas, sabia que o meu tempo chegaria.

 

in: Medusa, de Jessie Burton, Minotauro (Uma chancela de Edições Almedina), Coimbra, Julho 2024

08 julho 2024

Cisnes Selvagens | Jung Chang

Com quinze anos de idade, a minha avó tornou-se concubina de um caudilho militar, o general chefe da polícia de um vago governo nacional chinês. Corria o ano de 1924 e a China estava mergulhada no caos. Em grande parte do território, incluindo a Manchúria, onde vivia a minha avó, o poder era exercido por chefes militares, os senhores da guerra. Yixian, situada no sudoeste da Manchúria, acerca de 150 quilómetros da Grande Muralha e 380 quilómetros a nordeste de Beijing. Como a maioria das pequenas cidades chinesas, Yixian fora construída como uma fortaleza. Tinha a protegê-la uma cerca de muralhas do tempo da dinastia Tang (618-907 d.c.), com dez metros de altura e mais de três e meio de espessura, suficientemente larga no topo para permitir passagem fácil a um cavaleiro, encimada por ameias e reforçada por dezasseis bastiões dispostos a intervalos regulares. O acesso fazia-se por quatro grandes portas, uma em cada ponto cardeal, todas elas defendidas por portões exteriores. O conjunto da fortificação estava cercado por um profundo fosso. (…) uma alta torre sineira ricamente decorada, construída em pedra castanho-escuro, cujas origens remontam ao século VI, quando o Budismo se difundira na região. (…)

Ser funcionário significava poder, e poder significava dinheiro. Sem poder e sem dinheiro nenhum chinês podia considerar-se a salvo das exações do funcionalismo ou da violência gratuita. (…) chegar a mandarim era a única maneira de um filho de uma família plebeia poder escapar ao ciclo de injustiça e medo. (…) Uma vez que a família não tinha preocupações intelectuais e não detinha qualquer cargo oficial, e tratando-se de uma rapariga, nem sequer lhe deram um nome. Sendo a segunda filha, tratavam-na simplesmente por «rapariga número dois». O pai morreu quando ela era ainda uma criança, de modo que foi criada por um tio. (…) O casamento era visto acima de tudo como um dever, um arranjo entre duas famílias. Com sorte podiam apaixonar-se depois. Quando casou, com catorze anos, e tendo feito até aí uma vida muito protegida, o meu bisavô pouco mais era do que um rapazito. (…)

A minha avó era uma beldade. Tinha um rosto de forma oval, com faces rosadas e pele sedosa. Usava cabelos, negros, compridos e muito brilhantes, entretecidos numa grossa trança que lhe caía até à cintura. Sabia ser discreta quando a ocasião o exigia, o que significava quase sempre, mas sob aquele exterior recatado fervilhava um vulcão de energia reprimida. Era de pequena estatura, um pouco menos de um metro e sessenta, e tinha uma figura muito esbelta, de ombros descaídos, o que era considerado o ideal. O seu grande valor residia, porém, nos seus pés enfaixados, chamados em chinês «lírios dourados» com oito centímetros (San-tsun-gin-lian). Significava isto que caminhava «como um tenro rebento de salgueiro numa brisa primaveril», no dizer tradicional dos connoisseurs chineses de mulheres. A visão de uma mulher a caminhar vacilantemente sobre uns pés enfaixados tinha supostamente um efeito erótico nos homens, em parte, sem dúvida, porque a vulnerabilidade dela despertava em quem a via um impulso protetor. (…)

Depois punha-se a cortar pedaços de pele morta. A dor era provocada não só pelos ossos partidos, mas também pelas unhas, que cresciam para dentro das pontas dos dedos. Na realidade, os pés da minha avó tinham sido enfaixados precisamente na altura em que a prática estava prestes a desaparecer para sempre. Quando a irmã dela nasceu, em 1917, o costume já tinha sido praticamente abandonado, de modo que conseguiu escapar ao tormento. Na época em que a minha avó cresceu, no entanto, a atitude prevalecente numa cidade pequena como Yixian era ainda a de que os pés enfaixados eram essenciais para um bom casamento - embora fossem apenas um começo. Os planos que o pai tinha para ela envolviam treiná-la para ser uma senhora perfeita ou uma cortesã de grande classe. Desprezando a sabedoria tradicional da época - segundo a qual era virtuoso para as mulheres das classes inferiores serem iletradas - mandou-a para uma escola de raparigas que tinha sido instalada na cidade em 1905, e onde ela aprendeu igualmente a jogar xadrez chinês, ma-jongg e go. Estudou desenho e bordado. O seu motivo preferido eram os patos mandarins (que simbolizam o amor porque nadam sempre aos pares, e costumava bordá-los nos minúsculos sapatos de seda que fazia para os seus próprios pés. Para culminar a lista das suas prendas, foi contratado um professor para ensiná-la a tocar Qin, um instrumento musical parecido com a cítara. A minha avó era considerada a beldade da terra. Os habitantes locais costumavam dizer que ela se destacava como «um grou no meio de galinhas». (…) Em 1924 tinha quinze anos, e o pai começava a preocupar-se com o facto de o tempo estar a esgotar-se no que respeitava ao seu único verdadeiro bem e à sua única possibilidade de conseguir uma vida descansada. (…) O casamento era uma transação, não uma questão de sentimentos. (…) Naqueles tempos, uma mulher respeitável não podia ser apresentada a estranhos (…)

 O meu bisavô tinha feito bem os planos. A posição em que a minha avó estava ajoelhada revelara não só as calças de seda, bordadas a fio de ouro como o casaco, mas também os minúsculos pés enfaixados, nos seus sapatinhos de cetim bordado. Quando acabou de rezar (…) Ela corou, baixou a cabeça, e em seguida fez meia volta e afastou-se, o que era exatamente o que devia fazer. O pai adiantou-se um pouco e apresentou-a ao general. (…) 

No dia do casamento, uma liteira fechada, envolta em pesados panejamentos de seda vermelha bordada a ouro e de cetim, apareceu diante da casa dos Yang. Precedia-se uma procissão transportando pendões, faixas e lanternas de seda em que estava pintada a imagem de uma fénix dourada, o mais belo símbolo da mulher. (…) Fazer muito barulho era considerado essencial para um bom casamento (…) Depois de ter sido mostrada à cidade, chegou ao seu novo lar, uma grande e bonita casa. Yu-fang estava satisfeita. (…)

Era permitido visitar os pais, mas mesmo isso de má vontade, e não podia passar a noite em casa deles. Embora fossem as únicas pessoas com quem estava autorizada a falar, as visitas que lhes fazia eram sempre penosas (…) Estava muito bem uma mulher ter saudades do marido, isso era virtuoso, mas uma mulher não podia queixar-se. (…) Passaram seis anos. (…) Tinha saudades dele, embora soubesse que era apenas uma das suas muitas concubinas, provavelmente espalhadas um pouco por toda a China, e nunca lhe passou pela cabeça que ficaria para sempre a seu lado. (…)

Pouco tempo depois, a minha avó apercebeu-se que estava grávida. No décimo sétimo dia da terceira lua, na Primavera de 1931, deu à luz uma menina: a minha mãe. Escreveu ao general Xue a dar-lhe a notícia, e ele respondeu-lhe dizendo-lhe que desse à menina o nome de Bao Qin e a levasse a Lulong logo que estivessem ambas suficientemente fortes para viajar. A minha avó ficou encantada por ter a filha. Agora, sentia, a sua vida ter um objetivo, e canalizou para a minha mãe todo o seu amor. Assim se passou um ano de felicidade. (…)

Já no exterior, a esposa intimou a minha avó a não perturbar o amo. (…) A minha avó ficou aterrorizada. Como concubina, o seu futuro e o da filha estavam em perigo, talvez num perigo mortal. Não tinha quaisquer direitos. Se o general morresse, ficaria inteiramente à mercê da viúva, que tinha sobre ela um poder de vida e de morte. Poderia fazer o que quisesse: vendê-la a um homem rico, ou inclusivamente para um bordel, o que era bastante comum. Se isso acontecesse nunca mais voltaria a ver a filha. Soube então que tinham de fugir dali o mais depressa possível. (…)

A minha avó, porém, nunca o viu: ignorou o chamamento e não esteve presente no funeral. A próxima coisa que aconteceu foi que o gerente da casa de penhores deixou de aparecer com a mesada. Cerca de uma semana mais tarde, os pais dela receberam uma carta da esposa de Xue. As últimas palavras do meu avô tinham sido para devolver à minha avó a sua liberdade. O gesto, na época, era extremamente invulgar, e Yu-fang quase não queria acreditar em tanta sorte. Com vinte e quatro anos de idade, estava livre. (…)


in: Cisnes Selvagens, de Jung Chang, Editora Quetzal, Lisboa, 2018

09 junho 2024

As Pequenas Memórias | José Saramago

 

«Deixa-te levar pela criança que foste»


Sem que ninguém de tal se tivesse apercebido, a criança já havia estendido gavinhas e raizes, a frágil semente que então eu era havia tido tempo de pisar o barro do chão com os seus minúsculos e mal seguros pés, para receber dele, indelevelmente, a marca original da terra, esse fundo movediço do imenso oceano do ar, esse lodo ora seco, ora húmido, composto de restos vegetais e animais, de detritos de tudo e de todos, de rochas moídas, pulverizadas, de múltiplas e caleidoscópicas substâncias que passaram pela vida e à vida retornaram, tal como vêm retornando os sóis e as luas, as cheias e as secas, os frios e os calores, os ventos e as calmas, as dores e as alegrias, os seres e o nada. Só eu sabia, sem consciência de que sabia, que nos ilegíveis fólios do destino e nos cegos meandros do acaso havia sido escrito que ainda teria de voltar à Azinhaga para acabar de nascer. (…)

O que não sei é onde se irão meter os lagartos. (…)

A criança, durante o tempo que foi, estava simplesmente na paisagem, fazia parte dela, não a interrogava, não dizia nem pensava, por estas ou outras palavras: «Que bela paisagem, que magnífico panorama, que deslumbrante ponto de vista!»

Toda a água me passa entre as palmas abertas, e de repente não sei se as águas nascem de mim, ou para mim fluem. (…) Nadam-me peixes no sangue (…) Ao fundo do rio e de mim, desce como um lento e firme pulsar de coração. (…)

Olho de cima da ribanceira a corrente que mal se move, a água quase estagnada, e absurdamente imagino que tudo voltaria a ser o que foi se nela pudesse voltar a mergulhar a minha nudez da infância, se pudesse retomar nas mãos que tenho hoje a longa e húmida vara ou os sonoros remos de antanho, e impelir, sobre a lisa pele de água, o barco rústico que conduziu até às fronteiras do sonho um certo ser que fui e que deixei encalhado algures no tempo. (…)

Meto um bocado de pão de milho e um punhado de azeitonas e figos secos no alforge, pego num pau para o caso de ter de me defender de um mau encontrar canino, e saio para o campo. (…)

Lembro-me de um poente belíssimo, e eu ali sentado na soleira da porta, a olhar as nuvens vermelhas e o céu violeta, sem saber o que me iria acontecer (…)

Nem tudo foram sustos nas salas de cinema aonde o garoto de calções e cabelo cortado à escovinha podia entrar. (…) mas os atores de quem eu mais gostava eram o Pat e o Patachon, que hoje parecem ter caído em completo esquecimento. (…) Muito mais tarde viria a saber que eram dinamarqueses (…)

Nunca fui grande pescador. Usava, como qualquer outro rapaz da mesma idade e de posses tão modestas como eram as minhas, uma cana vulgar com anzol, a chumbada e a boia de cortiça atados ao fio de pesca, nada que se parecesse com os artefactos modernos que por ali haveriam de aparecer mais tarde (…)

É um homem como tantos outros nesta terra, neste mundo, talvez um Einstein esmagado sob uma montanha de impossíveis, um filósofo, um grande escritor analfabeto. Alguma coisa seria que nem pôde ser nunca. (…) Mas a imagem que não me larga nesta hora de melancolia é a do velho que avança sob a chuva, obstinado, silencioso, como quem cumpre um destino que nada poderá modificar. (…)

Muitas vezes esquecemos o que gostaríamos de poder recordar, outras vezes, recorrentes, obsessivas, reagindo ao mínimo estímulo, vêm-nos do passado imagens, palavras soltas, fulgurâncias, iluminações, e não há explicação para elas, não as convocámos, mas elas aí estão. (…)

Éramos assim, feridos por dentro, mas duros por fora. As coisas são o que são, agora se nasce, logo se vive, por fim se morre, não vale a pena dar-lhe mais voltas, o José Dinis veio e passou, choram-se umas lágrimas na ocasião, mas o certo é que a gente não pode levar a vida a chorar os mortos. (…)

Nunca mais tornei a ver o lagarto verde.


in: As Pequenas Memórias, de José Saramago, Porto Editora, Lisboa, 2022

12 maio 2024

O Primeiro Homem | Albert Camus

 E a vaga de ternura e piedade que de repente lhe encheu o coração não era o movimento  de uma alma que conduz o filho à evocação do pai desaparecido, mas a perturbada compaixão que um homem feito experimenta perante a criança injustamente assassinada - algo não se encontrava na ordem natural e, na verdade, não havia ordem, mas apenas loucura e caos numa situação em que o filho era mais velho que o pai. A sequência do próprio tempo agitava-se em torno dele imóvel entre as sepulturas que já não via, e os anos deixavam de se ordenar ao longo do grande rio que rolava em direção à foz, ao seu termo. (…) Revia a sua vida louca, corajosa, indolente, obstinada e sempre apontada ao objetivo de que ignorava tudo, e na verdade desenrolara-se totalmente sem que ele tivesse tentado imaginar o que podia ser um homem que lhe dera precisamente a vida para ir morrer em seguida numa terra desconhecida, do outro lado dos mares.  (…) A tarde chegou ao fim. O ruído de uma saia perto dele, uma sombra negra, fê-lo regressar à paisagem das sepulturas e do céu que o rodeava. Mas não podia isolar-se daquele nome, daquelas datas. Já só havia cinzas e pó debaixo daquela pedra. Mas, para ele, o pai voltava a viver, uma estranha vida taciturna, e dava-lhe a impressão de que ia abandoná-lo de novo, deixá-lo continuar mais aquela noite na solidão interminável em que o tinham lançado e depois abandonado. O céu deserto com uma denotação intensa e brusca. Um avião invisível acabava de transpor a barreira do som. Jacques Cormery voltou as costas à sepultura e abandonou o pai. (…)

- Há criaturas que justificam o mundo, ajudam a viver com a sua mera presença.

- Sim, e morrem. (…)

Durante o silêncio que se seguiu, o vento soprava com um pouco mais de intensidade em torno da casa. (…)

Mas ele evadira-se, respirava, no enorme dorso do mar, respirava por ondas, sob o largo balouçar do sol, podia finalmente dormir e voltar à infância, de que nunca se curara, ao segredo de luz, de pobreza calorosa que o ajudara a viver e vencer tudo. (…)

Delicado e astuto, uma espécie de inteligência instintiva permitia-lhe orientar-se num mundo e através de seres, que todavia, para ele, eram obstinadamente silenciosos. (…)

«Que é? Que é?», como a fera pré-histórica que acordava todos os dias para um mundo desconhecido e hostil. Ao invés, uma vez acordado, o corpo, e o seu funcionamento, assegurava-lhe o equilíbrio na terra. Não obstante o ofício duro de tanoeiro, gostava de nadar e caçar. (…)

Magoavam-se uns aos outros sem o desejar e simplesmente porque eram, cada um para os restantes, os representantes da necessidade miserável e cruel em que viviam. E, de qualquer modo, ele não podia duvidar do apego quase animal do tio pela avó, em primeiro lugar, e depois pela mãe de Jacques e seus filhos. Quanto a ele, sentira-o no dia do acidente na tanoaria. Jacques visitava a tanoaria todas as quintas-feiras. Se havia trabalhos de casa para fazer, despachava-os muito rapidamente e corria para a oficina, com a mesma alegria com que noutras ocasiões se reunia aos amigos de rua. (…)

Depois, eram as aulas. Com o senhor Bernard, as sessões eram constantemente interessantes pela simples razão de que ele amava apaixonadamente a sua profissão. (…)

Somente a escola proporcionava estas alegrias a Jacques e a Pierre. E sem dúvida o que amavam tão apaixonadamente nela era o que não encontravam em casa, onde a pobreza e a ignorância tornavam a vida mais dura, mais triste, como que encerrada em si própria; a miséria é uma fortaleza sem ponte levadiça. (…)

Era nessa galeria, entre os primeiros alunos chegados, que, na sua maioria, dissimulavam o nervosismo com atitudes descontraídas, salvo algumas exceções de rosto pálido e silêncio, sinais de ansiedade, que o senhor Bernard e os seus alunos aguardavam, diante da porta fechada, na manhã ainda fresca e perante a rua ainda húmida que, dentro de pouco tempo, o sol cobriria de pó. Tinham chegado com cerca de meia hora de antecedência, calados, permanecendo junto ao professor, que não encontrava nada para lhes dizer e, de repente, os abandonou dizendo que voltaria. Com efeito, viram-no reaparecer um momento mais tarde, sempre elegante, com o seu chapéu de abas voltadas para cima e as polainas que calçara naquele dia, trazendo em cada mão dois embrulhos de papel de seda e, quando se aproximou, eles viram que o papel estava manchado de gordura. «Aqui têm croissants», disse o senhor Bernard. (…) «Não se precipitem», recomendou o professor. «Leiam bem o enunciado do problema ou o tema da redação. Leiam-no várias vezes. Têm tempo para isso.» Sim, eles lê-los-iam várias vezes, obedeceriam a quem sabia tudo e junto do qual a vida não tinha obstáculos; bastava que se deixassem guiar por ele. (…)

Ao meio dia, o senhor Bernard aguardava-os à saída. Eles mostraram-lhe os rascunhos. Somente Santiago se enganara na resolução do problema. «A tua redação está muito boa», disse o professor a Jacques. À uma, voltou a acompanhá-los. Às quatro, achava-se de novo à espera e examinou o trabalho dos alunos. «Agora, resta esperar», acabou por dizer. Dois dias mais tarde, encontravam-se mais uma vez os cinco diante da porta às dez da manhã. Esta abriu-se e o contínuo tornou a ler uma lista, agora muito mais curta,   que era a dos aprovados. No murmúrio de excitação que se seguiu, Jacques não ouviu o seu nome. Mas recebeu uma cordial palmada nas costas e o senhor Bernard disse-lhe: «Bravo, mosquito. Foste admitido.» (…) E Jacques já não sabia onde estava, nem o que acontecia, regressaram os quatro no tranvia. (…) e, Jacques ficou só, perdido no meio das mulheres, e precipitou-se para a janela para olhar o professor, que o saudou pela última vez e o deixou finalmente só, e, em lugar de alegria do êxito, um imenso pesar infantil comprimia-lhe o coração, como se soubesse antecipadamente que, com aquele êxito, acabava de ser arrancado ao mundo inocente e caloroso dos pobres, um mundo hermético como uma ilha na sociedade, mas em que a miséria reforçava a família e a solidariedade, para ser lançado noutro desconhecido, que já não era o seu, em que não conseguia acreditar que os professores fossem mais eruditos que os daquele em que o coração sabia tudo, e teria de passar a aprender e compreender sem ajuda, tornar-se finalmente um homem sem o auxílio do único que lhe acudira, crescer e desenvolver-se enfim só, pelo preço mais caro. (…)

Jacques pôs-se a escrever o termo, deteve-se e, de repente, conheceu de repente a vergonha e a vergonha de ter tido vergonha. (…) Mas ele necessitaria de um coração de uma pureza heróica excepcional para não sofrer com a descoberta que acabava de fazer, tal como necessitaria de uma humildade impossível para não acolher com raiva e vergonha o sofrimento do que lhe descobria da sua natureza. (…)

Ao longo das arcadas, as lojas sucediam-se, comerciantes de tecidos a granel, cujas fachadas eram pintadas em tons sombrios e onde as pilhas de tecidos claros reluziam docemente na sombra, mercearias que cheiravam a cravinho e a café, pequenos balcões onde os comerciantes árabes vendiam doçarias escorrendo azeite e mel, obscuros e profundos cafés onde os percoladores fumegavam àquela hora (…)

A quinta-feira era também o dia em que Jacques e Pierre iam à biblioteca municipal. Desde sempre, Jacques  devorava todos os livros que lhe caíam nas mãos e tragava-os com a mesma avidez com que vivia, praticava jogos ou sonhava. Mas a leitura permitia-lhe escapar-se para um universo inocente em que a riqueza e a pobreza eram igualmente interessantes, por serem perfeitamente irreais. (…)

Interessa pouco saber o que os livros continham. O que importava era o que eles sentiam ao entrar na biblioteca, onde não viam as palavras de livros pretos, mas um espaço e múltiplos horizontes, que após a transposição da porta, os arrancavam da vida estreita do bairro. (…)

Assim, durante anos, a vida de Jacques partilhou-se desigualmente entre duas vidas que não podia ligar entre si. Ao longo de doze horas, ao som do tambor, numa sociedade de rapazes e professores, entre os jogos e o estudo. Durante duas ou três horas de vida diurna em casa no velho bairro, junto da mãe com quem re reunia verdadeiramente apenas no sono dos pobres. (…)

… três dias antes, saboreara pela primeira vez, quase desfalecido, o contacto com a boca de uma jovem. (…)

Naquela escuridão, nascia o ardor faminto, a loucura de viver que sempre o habitara e ainda hoje conservava o seu ser intacto, tornando simplesmente mais amargo - no seio da família reencontrada e perante as imagens da infância -, o sentimento de súbito terrível de que o tempo da juventude se afastava, como aquela mulher que amara, sim, amara profundamente com todo o coração e corpo, sim, o desejo era real com ela, e o mundo quando ele se afastava dela com um grande grito silencioso no momento do prazer encontrava a sua ordem ardente, e ele amara-a devido à sua beleza e àquela loucura de viver, generosa e desesperada, que era a sua e o levava a recusar, recusar que o tempo pudesse passar, embora soubesse que passava precisamente naquele momento (…)

… razões para envelhecer e morrer sem revolta.

 

in: O Primeiro Homem, de Albert Camus, Livros do Brasil/Porto Editora, 2018

13 abril 2024

Istambul | Bettany Hughes

Alguns destes habitantes de Istambul da Idade da Pedra andaram descalços, outros usaram sapatos de couro delicadamente produzidos, talvez até tamancos de madeira, idênticos aos utilizados nos hamames da atual cidade. (…)

Quando passamos tempo na companhia de Istambul, urge ter em mente que esta é uma história de uma cidade e também uma história do mar. (…)

As águas fazem história e escondem-na. Assim, os primeiros habitantes de Istambul, os nativos, dão o seu testemunho de forma tácita; a sua história tem de ser retirada da terra e das águas escuras do Bósforo. A população helénica imigrante de Istambul é que apregoa a sua presença. Os gregos, que inventaram a noção de história e que, por conseguinte, ambicionavam aí inscrever-se, afiançavam que a antiga colónia de Bizâncio lhe pertenceu (…) dizem-nos que estes gregos primeros nos foram, de facto, os pioneiros da tecnologia do velejar. De forma única, terão sido capazes de cartografar as suas rotas não só nas costas do Mediterrâneo, mas também em águas profundas. (Cerca de 1615 a. C.) (…)

Uma das «safiras» azuis entre as quais se diz que Istambul se localiza «como um «diamante» era o Bósforo. O Bósforo não é apenas uma exigente fronteira psicológica; também é complicado do ponto de vista físico. Aqui, a mescla entre a água salgada e a água doce, rodopia e redemoinha. Formas macias como o cetim moldam a superfície da água, um padrão mesmérico que esconde marés ferozes. O fluxo do canal ao longo da extensão de 35 quilómetros muda nove vezes entre o Mar Negro e o mar de Mármara. Um rio submerso recém-descoberto, um canal sub-marino, no leito do estreito propriamente dito, ajuda a explicar a natureza instável. Água e sedimentos a correr pelo maciço canal submerso gerado pela enchente  do Mar Negro enroscando-se na direção oposta do curso de água geral. (…)

Alcibíades abriu uma brecha no mundo clássico, tal como o fez na História. Companheiro do filósofo Sócrates no exército, seu futuro amante, era tudo aquilo que o pensador ateniense não era. Débil, obcecado  por sexo, desmedido, resplandecente, elegante, ordinário, Alcibíades seria descrito por autores antigos como «o adorado tirano de Atenas». Aristófanes escreveu que o povo de Atenas «se consome por ele, o odeia, mas anseia pelo seu regresso». Era irritantemente irresistível, e impossível de ignorar, pavoneando-se pela cidade de Atenas com um manto de cor púrpura, apesar de essas exibições pouco democráticas não serem vistas com bons olhos, recusando-se a tocar aulos (semelhante ao oboé), porque faziam com que a sua boca se enrugasse de uma forma pouco atraente, dando-se à bebida logo de manhã cedo e, segundo o poeta cómico Eupólide, iniciando-se a tendência de urinar (…) Alcibíades - egocêntrico, ceceoso, com os seus longos cabelos - parece ter estado no seu elemento ao fazer de Bizâncio e das cercanias o seu palco predilecto, não tardando a ser visto a calcorrear as águas entre a Ásia e a Europa. (…)

Estimulada pelo desejo de mercadorias de terras distantes que elevassem o estatuto, o comércio internacional garantiria o caráter, o estatuto e o prestígio de Bizâncio. Uma cidade que ligara o Extremo Oriente a um Oeste selvagem. Tornar-se-ia uma cidade pela qual valia a pena lutar e merecia ser protegida. Em vez de ser apenas uma recompensa militar bem localizada, graças à sua posição no extremo de continentes, as pessoas queriam estar ali por motivos emocionais e, em termos económicos, concretizaria o seu maciço potencial. Contudo, primeiro, Bizâncio tinha de granjear a sua reputação como uma cidade de essência, prazer e pecado. (…)

Em 73 d.C. Vespasiano incorporou formalmente Bizâncio como província do Império Romano, e depois fundou uma casa da moeda na sua antiga acrópole. Os engenheiros de Adriano também puseram as mãos à obra, dando início a um aqueduto algum tempo depois de 117 d. C. (…) abrindo uma nascente na floresta de Belgrado para abastecer a baixa da cidade. (…) Agora, oitocentos anos depois da fundação grega, Bizâncio começava a ter os sons, os sabores e os cheiros das outras cidades romanas (…) 

Enquanto isso, Cibele teria sido venerada nos seus santuários de pedra, Hécate nas muralhas da cidade e Dionísio louvado nos portos da cidade. No mosaico de credos religiosos que foi o Império Romano, o Cristianismo era, no século III d.C., ainda uma de muitas seitas que procuravam o seu lugar, conforme é ilustrado por uma carta eloquente enviada ao imperador Marco Aurélio. Escrita em 176 d.C por um Cristão chamado Atenágoras, a súplica da carta para que os romanos deixem de perseguir os cristãos. (…)

Assim que Constantino deixou claro que o cristianismo seria tolerado no seu império, não tardou a construir-se uma igreja no interior do próprio anfiteatro, e os cristãos passaram a ser ali enterrados depois das suas mortes naturais, onde outrora tinham sido massacrados para diversão de terceiros. (…)

De repente, aquelas luzes de Constantino criaram outras imagens: não mais Leda, mãe espartana de Helena de Tróia, seria raptada por Zeus transmutado em cisne, nem Eros esvoaçaria a disparar as suas dolorosas flechas, mas uma série de peixes e cruzes - que surgiriam às dezenas nas escavações na insigne Istambul. (…)

Constava que um anjo velara pela reconstrução de Hagia Sofia e que a sua estrutura era abençoada, porque  Justino utilizara madeira da Arca de Noé no seu interior. Originalmente edificada na antiga acrópole grega por Constantino, O Grande, depois reconstruída por Teodósio, incendiada, reutilizada por Justiniano e construída de novo após destruição causada pelos motins, a cúpula distintiva desta Igreja da Santa Sabedoria (com 55 metros de altura) parecia estar suspensa nos céus por uma corrente dourada. Durante mais de um milénio, Hagia Sofia seria o maior edifício religioso do mundo. (…)

Os banhos de Zeuxipo e o Grande Palácio foram restaurados, e os sistemas de abastecimento de água renovados. (…) Istambul localiza-se sobre uma série de falhas geológicas. (…)

Quem subisse o Bósforo de barco desde o Mar de Mármara há quinhentos anos, conseguiria distinguir duas cidades diferentes, a Istambul muçulmana a assomar na costa ocidental, e o distrito infiel, a terra dos Gavur ou Giaour (não muçulmana), em frente, na costa ocidental do Corno de Ouro. Enquanto a própria Istambul se tornou mais verdejante, a terra dos Giaour ficou cada vez mais apinhada de armazéns e casas em cima umas das outras. (…)

Em 2006, as autoridades de Istambul plantaram três milhões de bolbos de tulipas à volta da cidade. (…)

A caligrafia podia ser feita em pergaminho, papel ou até em delicadas folhas caídas. Estes requintados escritos também começaram a ser apreciados no ocidente. (…)

Durante pelo menos vinte e cinco séculos, Istambul tem sido uma cidade que muitos desejam e precisam. Oriente e Ocidente continuam a querer impressionar a corte da Turquia. Desde a sua fundação grega - como Bizâncio, depois como Constantinopla cristã e, por fim, sob o califado de Islambol - que Istambul foi buscar forças à convicção de ser uma cidade protegida pela graça divina. Hagia Sofia, que já foi igreja e mesquita, erigida sobre um santuário pagão, sustentada pela fé, pelo tempo e pelo esforço humano, cujas curvas há muito são eco das sete colinas de Istambul. (…) 

Istambul não é onde o Oriente se encontra com o Ocidente, mas onde o Oriente e o Ocidente se entreolham com atenção e nostalgia, por vezes ofendidos com aquilo que veem, mas interessados em saber que partilham sonhos, história e sangue. (…) 


in: Istambul, a História de Três Cidades, de Bettany Hughes, Planeta Livros Portugal - Crítica, Nov. 2023

19 março 2024

A Vida Nova | Orhan Pamuk

Um dia li um livro e toda a minha vida mudou. 

Desde a primeira página, sofri com tanta força o poder do livro que senti o meu corpo apartado da cadeira e da mesa a que me sentava. No entanto, ao mesmo tempo que experimentava a sensação de que o meu corpo se afastava de mim, todo o meu ser continuava, mais do que nunca, sentado na cadeira, à mesa, e o livro manifestava todo o seu poder não só na minha alma, mas em tudo o que compunha a minha identidade. Era uma influência tão forte que me parecia que a luz emanada das páginas me atingiu como um jorro: o seu brilho cegara toda a minha inteligência, mas, ao mesmo tempo, tornara-a mais cintilante. Fiquei com a certeza de que esta luz iria reconstruir-me, que graças a ela deixaria de percorrer os caminhos já trilhados. Vislumbrei as sombras de uma vida ainda por conhecer e por adoptar. (…) Toda a minha vida mudava à medida que lia palavras novas, virando novas páginas; sentia-me tão pouco preparado para tudo o que iria acontecer-me, tão desarmado que, ao cabo de algum tempo, desviei os olhos, como para me proteger da força que jorrava das páginas. Foi com terror que notei que o mundo à minha volta se transformava completamente, e invadiu-me um sentimento de solidão que até então nunca experimentara - como se me achasse sozinho num país de que ignorava a língua, os costumes e a geografia. Depressa a impotência nascida deste sentimento de solidão me levou a agarrar-me cada vez mais ao livro; era ele que iria ensinar-me o que fazer neste país desconhecido onde me achava perdido, dizer-me aquilo em que podia acreditar, o que nele podia observar, a direção que a minha vida ia tomar. Continuava a ler; página atrás de página, como se estudasse um guia que me orientaria através desta terra desconhecida e selvagem. Tinha vontade de lhe dizer: vem em meu socorro, ajuda-me a descobrir a vida nova sem muitos sofrimentos nem desgraças. Mas sabia também que esta vida nova se ia construindo a partir das palavras e do que lia. (…)

Adivinhei desde o princípio que o livro tinha sido escrito para mim, e era por isso, não que as suas palavras fossem extraordinárias e brilhantes. (…)

Eu gostava muito da minha mãe, era uma bela mulher, distinta, competente e compreensiva, e eu sentia-me culpado porque lia esse livro e penetrara num mundo que não era o dela. (…)

Tinha medo de dizer a mim mesmo que o livro poderia ser um mistério imaginado tão-somente para a minha pessoa. (…)

 Por um breve instante invadiu-me uma tristeza de me fazer vir as lágrimas aos olhos, mas recompus-me com orgulho: deveria abrir o meu coração, sim, mas aqueles que doravante escolhesse entre os que viviam já no universo do livro. (…)

Tinha medo da solidão. Medo de ter compreendido mal o livro, o que não era de estranhar num idiota como eu; medo de não aprofundar as coisas ou, pelo contrário, de as aprofundar demasiado; quero eu dizer: de não poder ser como toda a gente, de me tornar louco de amor, ou de descobrir os mistérios do universo e me tornar ridículo passando o tempo a contar a minha vida a pessoas sem qualquer desejo de a conhecerem (…) de acabar por perceber que o mundo é definitivamente muito mais cruel do que eu imaginava e de não conseguir agradar às raparigas bonitas (…).

No dia seguinte apaixonei-me. O amor era tão perturbante como a luz que jorrava do livro e me atingia no rosto, e, com todo o seu peso, provava que a minha vida já tinha saído dos eixos (…). 

Nevara durante a noite, a neve acumulada nos parapeitos das janelas, nos passeios e nos telhados. O livro, que eu tinha deixado aberto em cima da mesa, envolvido por esta impressionante luz branca parecia ainda mais anódino, mais inocente; o que o tornava aterrador. (…)

Ao contrário de tudo o que se conta sobre o amor nos filmes, afastei-me sem pensar, sentindo-me extremamente miserável. (…) Primeiro, os corvos bateram as asas com cólera por cima da minha cabeça, depois instalaram-se nos ramos para me vigiarem melhor (…).

O homem a quem a leitura de um livro mudara a vida toda, que se apaixonara, que descobrira que se seguiria o rumo de uma vida nova - era eu. (…) De cada vez que a heroína tomara a palavra, o ecrã tingia-se da mesma cor violácea do casaco de Janan (…) Porquê esta solidão que, à noite, cai sobre mim como um falcão? (…)

A maioria das pessoas não quer uma vida nova nem um mundo novo. Foi por isso que mataram o autor do livro. (…)

O amor mostra-nos o caminho, desembaraça-nos de toda a tralha da vida quotidiana e, percebo isso agora, acaba por nos conduzir rumo ao segredo do coração. É para lá que vamos agora. (…)

E enquanto ela se debatia, ó meu Anjo, beijei-a a ponto de lhe fazer sangrar os lábios, com todas as minhas forças, com todo o meu desejo e com toda a minha fúria. (…) O sofrimento entre as minhas pernas tornou-se intolerável, eu morria de desejo de me expandir, de explodir, de, por fim, me relaxar. O meu desejo tornou-se ainda mais profundo, invadiu o mundo inteiro, um mundo novo de que ignorava tudo. Esperava, com lágrimas nos olhos, todo a suar, esperava sem saber o que esperava, quando tudo explodiu, nem muito depressa nem muito devagar, na alegria e tudo se acalmou e desapareceu. (…)

Eu estava triste, porque percebia que as nossas viagens nunca mais voltariam a ser o que tinham sido. (…)

Reconheci-a pelos batimentos do meu coração (…) vi um extraordinário arco-íris. Quando as pessoas contemplam a natureza (…) quanto a mim, vejo na natureza uma mensagem eloquente, que me interroga, que me lembra que devo conservar intacta a minha vontade (…).

Descobria como tocar alguém podia transformar completamente os lugares, as camas, os quartos, os cheiros, as coisas, mesmo as mais vulgares. (…)

Servi-me de um café e fui sentar-me a um canto. (…)

Eu tinha envelhecido antes das idade, cansara-me depressa, caminhava o menos possível. (…)


in: A Vida Nova, de Orhan Pamuk, Edições ASA, Porto, 2007 (O autor foi Prémio Nobel da Literatura em 2006)

07 março 2024

A Cidadela Branca | Orhan Pamuk

Acreditar que um ser participa de uma vida desconhecida na qual o seu amor nos faria penetrar é, de tudo o que o amor exige para nascer, o mais importante e o que faz menosprezar tudo o resto. (Marcel Proust, Du Côté de Chez Swann)

Descobri este manuscrito em 1982, nos arquivos miseráveis do gabinete do Governador de Guebze, onde costumava passar uma semana todos os verões, uma semana a vasculhar o fundo de um baú poeirento onde se amontoavam a trouxe-mouxe os firmãs imperiais, os títulos de propriedade, as relações dos tribunais (…) O manuscrito atraiu-me logo a atenção pela elegante encadernação jaspeada de um azul de sonho, a caligrafia extremamente legível e o brilho que sobressaía entre todos os outros documentos oficiais desbotados. Na primeira página, uma letra diferente, pareceu-me, traçara um título, como para melhorar despertar a minha curiosidade: «o enteado do colchoeiro». Sem outra Indicação. Empreendi, de imediato e com um imenso prazer, a leitura deste livro em cujas margens e folhas em branco uma mão de criança desenhara personagens de cabeça minúscula e envergando fatos com múltiplos botões. Encantado com a minha descoberta, mas demasiado preguiçoso para copiar o manuscrito, decidi roubá-lo àquela balbúrdia que nem um jovem governador ousara qualificar como arquivos e meti-o discretamente na minha pasta. A princípio não sabia bem o que fazer com ele, senão lê-lo e relê-lo. (…)

Encontrar ligações entre as coisas é, creio eu, a doença dos nossos dias. (…)

Muitos crêem que a vida não está previamente determinada e que todas as histórias são na realidade uma cadeia de coincidências. No entanto, mesmo aqueles que partilham dessa convicção quando a certa altura da sua existência se põem a contemplar o passado, pensam que todos os acontecimentos que viveram eram na realidade inevitáveis. Eu mesmo atravessei um desses períodos. (…)

O Mestre descobrira, numa das drogarias de Istambul que visitava sucessivamente, uma pólvora cujo nome o próprio ervanário ignorava. (…)

Se é esta a minha convicção, é porque um homem, na velhice, procura muito mais a simetria, mesmo nas histórias que lê. (…)

Eu conseguira pôr algum dinheiro de lado, graças a pequenos trabalhos ou surripiando moedas ao Mestre. Antes de sair de casa, tirei o meu pecúlio do cofre (…) Saí precipitadamente de casa, tendo o cuidado de não tocar em nada. Soprava um ligeiro vento, enquanto avançava pelas ruas desertas do bairro. Não tinha senão uma ideia em mente: lavar as mãos. Saboreava o prazer de caminhar em silêncio da alvorada, de descer as veredas que levavam até ao Mar e sobretudo de lavar as mãos em todas as fontes do caminho, sempre a contemplar o Corno de Ouro. (…)

Os dias que vivi na ilha foram felizes, mas só mais tarde me dei conta disso. Alojei-me, por uma renda modesta, em casa de um pescador grego, que não tinha família. Tomara cuidado para não despertar a atenção e vivia na quietude. (…) Quando o tempo estava demasiado mau para ir à pesca, dava a volta à ilha a pé, entrava no recinto do mosteiro e chegava a adormecer tranquilamente à sombra das videiras. (…)

Foi o Mestre que pagou ao pescador o que lhe era devido. (…) Chegámos a casa antes do cair da noite. (…) Circulavam rumores de penúria. Istambul parecia uma cidade abandonada, aterradora. Eu sabia-o. (…) Eu surpreendia-me a observar com inveja a felicidade daquele homem que se bastava tão bem a si mesmo. (…)

Chego agora ao fim do meu livro. Os meus leitores mais inteligentes talvez já o tenham abandonado decidindo que a minha história terminara há muito. Houve tempo em que eu pensava a mesma coisa. (…)

Mas não me queixo disso; a solidão não me preocupa. Juntei muito dinheiro ao longo dos anos em que exerci o cargo de Primeiro Astrólogo do Sultão. Casei-me; tenho quatro filhos. Abandonei as minhas funções a tempo, talvez por saber prever a aproximação das infelicidades, com a intuição adquirida graças à minha profissão. (…) Retirei-me para Guebze, mandei construir esta mansão (…) nesta sala, a escrever e a sonhar. (…)


in: A Cidadela Branca, de Orhan Pamuk, Editorial Presença (5ª Edição), Lisboa, 2006 (Prémio Nobel da Literatura no ano de 2006)

08 fevereiro 2024

Balada da Praia dos Cães | José Cardoso Pires

Está de pijama de cetim. São sete da manhã no seu domicílio à Travessa da Sé, terceiro andar alto com vista para o Tejo. (…) Elias parece suspenso entre o jornal e o sono. Mas não: medita de facto, e na direção dum altar de fotografias armado em cima da cómoda. (…)

Elias está sem óculos, tem pálpebras pisadas e rugosas como as dos perus. (…)

Plantada na areia, há uma criatura a escutá-lo ou alheada em sono aparente, não se sabe. Um lagarto. Lizardo de seu nome, lagarto de estimação, corpo arenoso. Parece em eterna posição de arrancada, cabeça imóvel, pescoço para a frente, os compridos dedos das patas traseiras todos abertos e firmados no chão. Estás-te nas tintas, continua Elias, um olho nas sopas, outro no jornal (mas é ao lagarto que se dirige, é para ele que desabafa). Um rastilhante como tu tem mais em que pensar. (…)

Lizardo mantém-se impenetrável no seu planeta de vidro. É um dragão doméstico; pequeno mas dragão. E pré-histórico, sobranceiro ao tempo. O dono acerca-se dele para verificar o termóstato fixado na gaiola porque é mudança de estação e há que regular o calor. No verão tem muitas vezes que humedecer a areia para que o animal não se excite e não se ponha a bater o rabo com lembranças da fêmea ou de penhascos de sol a pino. (…)

Para uns o exótico está na paisagem, para outros na máquina. (…)

Vagueei todos estes anos por um mundo de mulheres, procurando-te. (…)


in: Balada da Praia dos Cães, de José Cardoso Pires, Biblioteca de Bolso Dom Quixote, 1982 (Grande Prémio de Romance e Novela, Associação Portuguesa de Escritores)