Os dois homens que falam com Miguel Serafim são as maiores cumplicidades de uma vida inteira. Amigos de todo o espantoso, difícil, arriscado, enervante, embriagado período da adolescência, que parece que nunca mais passa quando estamos lá dentro, e depois é uma adulta vida inteira a desejar reviver esses anos. E todos temos o mais impossível dos pedidos - regressar à juventude com a manha sábia de um velho. (…)
Às vezes tento explicar à malta mais nova que não há maior fortuna do que esta. Não ter vivido uma guerra. Mas ninguém liga. Não percebem.
- Sempre muito zangadinhos e tristonhos nas vidinhas confortáveis. (…)
E Miguel Serafim é o Maestro antes de ser maestro. É a alcunha mais curiosa, uma inusitada coincidência. Foi-lhe dada muito antes de ele decidir que seria músico de profissão e conduzir orquestras. Chamavam-lhe Maestro porque desde pequeno demonstrava comportamentos comandados por pequenas e grandes obsessões, extremamente incomuns para a idade. Manias de ordem, simetria e higiene. Gestos adultos, repetidos como rituais. Maestro. (…)
Quando toda a gente se conhece, vêm coisas boas, e outras menos. Sabem uns dos outros os nomes e famílias, e moradas, e manias, se as houver. Sabem horários da escola, da farmácia, do mercado, do cemitério. Falta privacidade, a quem a deseja, embora quase todos estejam habituados a ser livro aberto, condição compensada pelo conforto de auxílio rápido se alguém precisa de ajuda. (…)
Por vezes, e isto é estranho, uma mesma frase, sem tirar nem pôr, pode ser dita com desprezo, ou receio, ou admiração
- A Benilda fala com os mortos.
- A Bernarda entende malucos.
- A Berenice vi-a eu a descer a colina com um lobo ao lado.
E de Benedita não havia nada de especial a apontar, que não fosse o sorriso permanente, e se era matéria sobre as irmãs - com quem falavam ou deixavam de falar - então que seja dito que Benedita falava com toda a gente e toda a gente falava com ela, talvez por ser a mais nova e para sempre a mais pequena, que não tendo crescido tanto como as irmãs ganhava na alegria simples de cirandar a ver se estavam todos bem ou se alguém precisava de alguma coisa. (…)
O amor não correspondido traz uma dose de enervamento. A não consumação. O desconhecimento do toque, odor, textura do objeto de desejo. O que nunca foi, e para sempre estará vedado. (…)
- Hoje ja tens idade para saberes que andávamos há muito tempo com a ideia de nos suicidarmos juntas. Até foi a Benedita a primeira a falar disso. (…)
Há desde sempre amos e servos. E a dinâmica entre amos e servos engole tudo, qualquer resistência, acabou por devorar utopias de igualdades, as que já foram e as que os ingénuos do futuro ainda hão-de tentar reerguer. Sazonalmente, que é como quem diz umas duas vezes ao século, nasce alguém que julga que vai inventar outra vez a roda e descobrir o fogo. Depois de tropeções, aparentes progressos, descaminhos e linhas retas que começam a entortar, sobeja, paciente, a rir-se de algumas pontes frágeis, a linha funda entre amos e servos. (…)
O mais extraordinário e macabro é que Feliciana matou as irmãs porque pensou que se podia safar. Era só defender e fortalecer a velha teoria de que elas se queriam suicidar. Nenhuma delas, nem mesmo a desconfiada Bernarda, podia sequer imaginar que houvesse uma força assim dentro de alguém. Um ódio tão violento, desmedido, um ódio nascido de um cruzamento complicado com o amor. Com o que ela julgava ser amor. Com o amor que ela conhecia. Um amor que anda sempre, sempre, de braço dado com mais completo e simples e horrível ciúme. O ciúme do porque sim. O ciúme da posse pela posse, que julga poder segurar o amor à força de o estrangular. E que estrangular o amor vai fazê-lo ficar, vai fazê-lo amar de volta. Esse eterno e bruto equívoco que mudou cursos da História. (…)
Fiz ao meu corpo o que quis, sem a permissão dele. (…)
Só que as pessoas são animais de hábitos, ainda pior se são animais mascarados de pessoas. (…)
in: Matarás um Culpado e Dois Inocentes, de Rodrigo Guedes de Carvalho, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2024