Aguarelas Finas, Le Corbusier | Maison La Roche, Paris

28 julho 2025

A Dama de Espadas | Puskine

O jogo interessa-me muito- disse Hermann - mas não posso arriscar o necessário para obter o supérfluo. 

- Hermann é alemão: é económico, está tudo dito - observou Tomski. - Mas, se há alguém a quem eu, neste caso, não compreenda, é a minha avó, a condenssa Ana Fédovna. (…) - Ora essa! - disse Narumof. - Que pode haver de estranho em que uma mulher de oitenta anos não jogue? (…) - Pois então, ouçam.

Antes de mais, importa dizer-lhes que a minha avó, há uns sessenta anos, foi a Paris, onde fez furor. Seguiam-na aos grupos; toda a gente queria ver a Vénus Moscovita. Richelieu, que lhe fez corte, quase se suicidou por ela não corresponder aos seus desejos. Nesse tempo as damas tomavam atitudes de rainhas. (…) Uma noite, na corte, a minha avó, que estava a jogar contra o duque de Orleães, perdeu (…) confessou a sua dívida ao meu avô; convidou-o a pagá-la. (…) Temia-a como ao fogo. (…) Em resumo, recusou-se a pagar. A avó deu-lhe uma bofetada e, para consumar a desgraça, foi dormir noutro quarto. (…) 

Mas, meu caro Conde - respondeu a minha avó - já lhe disse que não ficámos com dinheiro nenhum! - Nem é preciso - replicou Saint- Germain. - Ora faça favor de ouvir o que lhe vou dizer … E revelou-lhe então um segredo que qualquer de nós pagaria por um bom preço … Os jovens jogadores redobraram de atenção. Tomski acendeu o cachimbo, tirou uma fumaça e continuou: (…) 

Como está o tempo? Há vento, não? - Não, excelência - respondeu o criado de quarto - está muito agradável. - Vocês respondem sempre ao acaso. Abre a janela. Bem dizia eu! Está vento; e um vento desabrido. Manda desatrelar! Lisanka, não saímos. (…) "E é isto a minha vida!" pensou Lisavete Ivanovna. 

 Lisavete Ivanovana era na verdade, muito infeliz. (…) Era avara e comprazia-se num pio egoísmo, como todos os velhos para os quais o amor morreu e que são hostis ao presente. (…) Vestida e pintada à moda antiga, ficava sentada a um canto, adorno repugnante e obrigatório dos salões de baile. (…) Em sociedade, o seu papel era dos mais miseráveis. Todos a conheciam, ninguém reparava nela. (…)

A condessa não respondeu. Hermann apercebeu-se então de que estava morta. (…) Ninguém chorava (…) A condessa era tão velha que a sua morte não podia surpreender ninguém e há muito tempo os parentes a consideravam como já não fazendo parte deste mundo. (…) 

Mas a mulher vestida de branco aproximou-se mais, colocou-se diante dele e Hermann reconheceu a condessa. (…) Vim a tua casa contra a minha vontade - disse em voz firme - Mas foi-me ordenado que satisfizesse o teu pedido. Terno … sete … às … ganharão a seguir,  mas é preciso que jogues só uma carta por noite e que nunca mais voltes a jogar em toda a tua vida. Perdoar-te-ei a minha morte com a condição de casares com a minha protegida Lisavete Ivanovna. (…) e escreveu a narrativa da sua visão. (…) Hermann bebeu um copo de limonada e voltou para casa. (…)

O às ganha! Disse Hermann - A sua dama perdeu - disse Tchekalinski com suavidade. Hermann estremeceu: com efeito, em vez de um ás, tinha na mão a dama de espadas. Não acreditava no que lhe diziam os seus olhos, não compreendia qual a razão do seu equívoco. No mesmo instante pareceu-lhe que a dama de espadas piscava maliciosamente um olho e lhe sorria. De súbito, reparou na semelhança extraordinária … - A velha! - exclamou espantado. Tchekalinski recolhia as notas. (…)

Hermann enlouqueceu. (…) murmura numa obcecação contínua: «Terno, sete, às! Terno, sete, dama!»


in: A Dama de Espadas, de Puskine, Publicações Europa-América, Lisboa, Julho de 2007 (Diário de Notícias)

12 julho 2025

O Coração da Bruxa | Genevieve Gornichec

 Asgard era um lugar novo, apareceu uma bruxa vinda dos confins dos mundos. Conhecia muitos feitiços antigos, mas era especialmente habilidosa com seior, uma magia que permitia viajar para fora do corpo e adivinhar o futuro. (…)

Espetaram-lhe lanças e queimaram-na três vezes, e três vezes a bruxa renasceu. (…) Quando os Vanir souberam do modo como os Aesir a estavam a tratar, ficaram furiosos, e assim foi declarada a primeira guerra no cosmos. De terceira vez que renasceu, Gulleveig fugiu, no entanto, deixou algo para trás: o coração trespassado por uma lança e ainda a fumegar na pira. Foi aí que ele o encontrou. (…) 

Encontrou a bruxa a contemplar a deusa floresta e as montanhas que se viam ao longe (…) o sol brilhava, mas ela estava sentada à sombra, encostada ao tronco de uma árvore, com as mãos cruzadas no colo. (…)

És uma mulher difícil de encontrar (…) Estava ali para devolver o que ela deixara no salão de Odin (…) algo o atraía nesse dia, até à floresta de ferro, com o coração da bruxa no saco. (…) A princípio a bruxa não respondeu, optando por estudar o estranho homem que se aproximava. (…) Admiro sinceramente o teu trabalho. (…) consegues semear o caos onde quer que vás. Fazes com que os poderosos lutem pelos seus talentos. É realmente impressionante. - Não era essa a minha intenção - replicou a bruxa, passado um momento. (…)

Angrboda fez a sua casa no extremo oriental da Floresta de Ferro, onde as árvores se agarram precariamente às montanhas escarpadas (…)

Não sabia quanto tempo passara desde que se tinham encontrado junto ao rio, mas o seu cabelo castanho-claro já tinha crescido, liso e bonito. (…)

E assim Skadi construiu-lhe uma mesa, dois bancos e um estrado de cama, que encostaram à parede e cobriram com cobertores e peles (…) mas a melhor criação da caçadora foi a última: uma cadeira, para colocar junto à lareira. Angboda gravou-a com padrões e espirais e colocaram peles sobre o assento para ficar mais confortável. (…)

Desde que chegara à Floresta de Ferro, depois de ter sido queimada, os bosques tornavam-se mais verdes a cada primavera (…)

Loki (…) quando deixo o meu corpo sinto-me ligada a tudo. Sou parte de todos os mundos (…) coisas que ainda não aconteceram (…)

Ali ficaram a olhar uma para a outra (…) passou o dedo numa das espirais que gravara no braço à muito tempo! (…)

Havia aqui uma bruxa que deu à luz os lobos (…)

Com poções e feitiços curou os doentes (…) aquela ajuda parecia-lhe natural. (…)

Dormia quase sempre sozinha, sob a capa, nas florestas ou nas montanhas (…) os únicos ornamentos que possuía eram as contas de âmbar, o cinto e a faca (…) Por vezes a cabeça doía-lhe tanto que nem sequer conseguia andar (…) 

Concebe o último desejo a uma mulher morta - sussurrou Skadi (…) e deixa-me partilhar a tua cama, partilhá-la verdadeiramente, esta e todas as noites até ao fim. E, Angrboda assim fez. Os meses que se seguiram pareciam quase um sonho (…)

Quando o dera à luz, era apenas uma cobra verde, pequena, agora a sua cabeça assemelhava-se mais à de um dragão. (…)

Quando voltou a abrir os olhos (…) envolta dos ombros da amante. (…) Conseguiste. Está na hora. (…) 

(…) a faca de cabo de cifre de Angboda, aquela que usava no cinto (…) olhou para a espada à cintura de Skadi e perguntou: - Era do teu pai? (…)


in: O Coração da Bruxa, de Genevieve Gornichec, Editora Minotauro, 2023