O Vento a ajudaria a apagar as estrelas, a acender o Sol, a secar o orvalho e a abrir a flor denominada Onze Horas que a Manhã, só de ranheta, para contrariar, abre todos os dias entre as nove e meia e as dez. Se casasse com o Vento sairia com o marido mundo afora, sobrevoando o cimo altíssimo das montanhas, esquiando nas neves eternas, correndo sobre o dorso verde do mar, saltando com as ondas, repousando nas cavernas subterrâneas onde a escuridão se esconde durante o dia para descansar e dormir. (…)
Tantas queixas recebidas, tão grande atraso, o Tempo sente-se obrigado a ralhar com a Manhã, se bem, ao lhe chamar a atenção e ameaçar castigo, esconda um sorriso cúmplice no rosto solene de barbas e rugas. (…)
Íntimos, demasiadamente íntimos, o Vento e a Chuva, companheiros de vadiagem. (…)
O Gato Malhado estirou os braços e abriu os olhos pardos (…) e sim, todo o corpo ágil, de riscas amarelas e negras. Tratava-se de um gato de meia-idade, já distante da primeira juventude, quando amara correr por entre as árvores, vagabundear nos telhados, miando à lua cheia canções de amor, certamente picarescas e debochadas. Ninguém podia imaginá-lo entoando canções românticas, sentimentais.
Assim vivia ele quando a primavera entrou pelo parque adentro, num espalhafato de cores, de aromas, de melodias. Cores alegres, aromas de entontecer, sonoras melodias. O Gato Malhado dormia quando a primavera irrompeu, repentina e poderosa. Mas sua presença era tão insistente e forte que ele despertou do seu sono sem sonhos, abriu os olhos pardos e estirou os braços. O Pato Negro, que casualmente o olhava, quase caiu de espanto porque teve a impressão de que o Gato malhado estava sorrindo. Fixou o olhar, chamou a atenção da pequena Pata Branca:
- Não parece que ele está rindo?
- Santo Deus! Está rindo mesmo…
Jamais o tinham visto rir. (…) De repente rebolou-se na grama como se fora um jovem gato adolescente, soltou um miado que mais parecia um gemido. Foi uma emoção geral pelo parque. (…)
Foi uma triste constatação. Primeiro deixou de sorrir, mas depois encolheu os ombros num gesto de indiferença. Era um gato orgulhoso, pouco lhe importava o que pensavam dele. Até piscou - num gesto um pouco forçado - um olho malandro para o Sol (…) O Gato Malhado aspirou a plenos pulmões a primavera recém-chegada. Sentia-se leve, gostaria de dizer palavras sem compromisso, andar à toa, até mesmo de conversa com alguém. Procurou mais uma vez com olhos pardos, mas não viu ninguém. Todos haviam fugido. Não, todos não. No ramo de uma árvore a Andorinha Sinhá fitava o Gato Malhado e sorria-lhe. Somente ela não havia fugido. (…)
Andorinha Sinhá, além de bela, era um pouco louca. Louquinha, fica-lhe melhor. (…) Amiga das flores e das árvores, dos patos e das galinhas, dos cães e das pedras, dos pombos e do lago. Com todos ela conversava, um arzinho suficiente, sem se dar conta das paixões que ia espalhando ao seu passar. (…)
Assim são as andorinhas, o que se pode fazer? - não há forma de fazê-las compreender a verdade mais rudimentar, a mais provada e conhecida, se elas se metem a duvidar. São cabeçudas e se deixam guiar pelo coração. O Gato Malhado era a sombra na vida clara e tranquila da Andorinha Sinhá. (…)
Quanto ao Gato Malhado, também ele pensou na arisca Andorinha Sinhá, naquela primeira noite da primavera, ao repousar a cabeça no travesseiro. Aliás, eis uma coisa que ele não possuía: travesseiro. (…) Sendo de pouco luxo, não reclamava. Falta sentia de outras coisas: de afeição, de carinho e de salsichas vienences. (…) Creio que estou doente. - Colocou a pata sobre a testa e concluiu: - Estou ardendo em febre… Quando, ao cair da noite, voltava para a sua cama - um velho trapo de veludo - olhou uma flor e nela viu refletidos os rasgados olhos da Andorinha. (…)
Desejo dizer que há gente que não acredita em amor à primeira vista. Outros, ao contrário, além de acreditar afirmam que este é o único amor verdadeiro. Uns e outros têm razão. É que o amor está no coração das criaturas, adormecido, e um dia ele desperta, com a chegada da primavera ou mesmo no rigor do inverno. (…)
De repente, o amor desperta de seu sono à inesperada visão de um outro ser. Mesmo se já o conhecemos, é como se o víssemos pela primeira vez e por isso se diz que foi amor à primeira vista. Assim o amor do Gato Malhado pela Andorinha Sinhá. (…)
Se eu não fosse um gato, te pediria para casares comigo…
A Andorinha ficou calada, num silêncio de noite profunda. Surpresa? - não creio, ela já adivinhara o que se passava no coração do Gato. Zanga? - não creio tampouco, aquelas palavras foram gratas ao seu coração. (…)
Não apenas com um manto contra o frio cobria-se o Gato Malhado naquela manhã de lírica inspiração: cobria-se também com o manto do amor. A poesia não está somente nos versos, por vezes ela está no coração, e é tamanha, a ponto de não caber nas palavras.
in: O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá, uma história de amor, de Jorge Amado, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1999