Aguarelas Finas, Le Corbusier | Maison La Roche, Paris

18 novembro 2024

O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá | Jorge Amado

O Vento a ajudaria a apagar as estrelas, a acender o Sol, a secar o orvalho e a abrir a flor denominada Onze Horas que a Manhã, só de ranheta, para contrariar, abre todos os dias entre as nove e meia e as dez. Se casasse com o Vento sairia com o marido mundo afora, sobrevoando o cimo altíssimo das montanhas, esquiando nas neves eternas, correndo sobre o dorso verde do mar, saltando com as ondas, repousando nas cavernas subterrâneas onde a escuridão se esconde durante o dia para descansar e dormir. (…)

Tantas queixas recebidas, tão grande atraso, o Tempo sente-se obrigado a ralhar com a Manhã, se bem, ao lhe chamar a atenção e ameaçar castigo, esconda um sorriso cúmplice no rosto solene de barbas e rugas. (…) 

Íntimos, demasiadamente íntimos, o Vento e a Chuva, companheiros de vadiagem. (…)

O Gato Malhado estirou os braços e abriu os olhos pardos (…) e sim, todo o corpo ágil, de riscas amarelas e negras. Tratava-se de um gato de meia-idade, já distante da primeira juventude, quando amara correr por entre as árvores, vagabundear nos telhados, miando à lua cheia canções de amor, certamente picarescas e debochadas. Ninguém podia imaginá-lo entoando canções românticas, sentimentais. 

Assim vivia ele quando a primavera entrou pelo parque adentro, num espalhafato de cores, de aromas, de melodias. Cores alegres, aromas de entontecer, sonoras melodias. O Gato Malhado dormia quando a primavera irrompeu, repentina e poderosa. Mas sua presença era tão insistente e forte que ele despertou do seu sono sem sonhos, abriu os olhos pardos e estirou os braços. O Pato Negro, que casualmente o olhava, quase caiu de espanto porque teve a impressão de que o Gato malhado estava sorrindo. Fixou o olhar, chamou a atenção da pequena Pata Branca:

- Não parece que ele está rindo?

- Santo Deus! Está rindo mesmo…

Jamais o tinham visto rir. (…) De repente rebolou-se na grama como se fora um jovem gato adolescente, soltou um miado que mais parecia um gemido. Foi uma emoção geral pelo parque. (…)

Foi uma triste constatação. Primeiro deixou de sorrir, mas depois encolheu os ombros num gesto de indiferença. Era um gato orgulhoso, pouco lhe importava o que pensavam dele. Até piscou - num gesto um pouco forçado - um olho malandro para o Sol (…) O Gato Malhado aspirou a plenos pulmões a primavera recém-chegada. Sentia-se leve, gostaria de dizer palavras sem compromisso, andar à toa, até mesmo de conversa com alguém. Procurou mais uma vez com olhos pardos, mas não viu ninguém. Todos haviam fugido. Não, todos não. No ramo de uma árvore a Andorinha Sinhá fitava o Gato Malhado e sorria-lhe. Somente ela não havia fugido. (…)

Andorinha Sinhá, além de bela, era um pouco louca. Louquinha, fica-lhe melhor. (…) Amiga das flores e das árvores, dos patos e das galinhas, dos cães e das pedras, dos pombos e do lago. Com todos ela conversava, um arzinho suficiente, sem se dar conta das paixões que ia espalhando ao seu passar. (…)

Assim são as andorinhas, o que se pode fazer? - não há forma de fazê-las compreender a verdade mais rudimentar, a mais provada e conhecida, se elas se metem a duvidar. São cabeçudas e se deixam guiar pelo coração. O Gato Malhado era a sombra na vida clara e tranquila da Andorinha Sinhá. (…)

Quanto ao Gato Malhado, também ele pensou na arisca Andorinha Sinhá, naquela primeira noite da primavera, ao repousar a cabeça no travesseiro. Aliás, eis uma coisa que ele não possuía: travesseiro. (…) Sendo de pouco luxo, não reclamava. Falta sentia de outras coisas: de afeição, de carinho e de salsichas vienences. (…) Creio que estou doente. - Colocou a pata sobre a testa e concluiu: - Estou ardendo em febre… Quando, ao cair da noite, voltava para a sua cama - um velho trapo de veludo - olhou uma flor e nela viu refletidos os rasgados olhos da Andorinha. (…)

Desejo dizer que há gente que não acredita em amor à primeira vista. Outros, ao contrário, além de acreditar afirmam que este é o único amor verdadeiro. Uns e outros têm razão. É que o amor está no coração das criaturas, adormecido, e um dia ele desperta, com a chegada da primavera ou mesmo no rigor do inverno. (…) 

De repente, o amor desperta de seu sono à inesperada visão de um outro ser. Mesmo se já o conhecemos, é como se o víssemos pela primeira vez e por isso se diz que foi amor à primeira vista. Assim o amor do Gato Malhado pela Andorinha Sinhá. (…)

Se eu não fosse um gato, te pediria para casares comigo…

A Andorinha ficou calada, num silêncio de noite profunda. Surpresa? - não creio, ela já adivinhara o que se passava no coração do Gato. Zanga? - não creio tampouco, aquelas palavras foram gratas ao seu coração. (…)

Não apenas com um manto contra o frio cobria-se o Gato Malhado naquela manhã de lírica inspiração: cobria-se também com o manto do amor. A poesia não está somente nos versos, por vezes ela está no coração, e é tamanha, a ponto de não caber nas palavras.


in: O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá, uma história de amor, de Jorge Amado, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1999

05 novembro 2024

Dentro da Loja Mágica | Dr. James Doty

Achava que tinha sorte quando, ao contrário da maioria dos meus amigos, nunca tinha de estar em casa a horas certas (…) Por vezes, aquilo que mais queremos é apenas ter alguém que fale connosco, que nos diga qualquer coisa. Porque isso significa que somos importantes. (…) Os adolescentes anseiam por liberdade, mas só se tiverem um suporte estável e seguro. (…)

Na escola de Medicina iria estudar o coração. (…)

Eu nunca ouvira dizer que cientistas famosos tivessem odiado os pais ou tido problemas com colegas de escola. (…) Hoje sei que grande parte do que Ruth começou a ensinar-me nesse primeiro dia está relacionado com o cérebro e com uma resposta extrema ao stress, ou aquilo a que a maioria das pessoas chama "lutar ou fugir". Se o cérebro deteta uma ameaça ou se teme pela sua sobrevivência, aquela parte do sistema nervoso autónomo chama sistema simpático reage e liberta pinefrina. (…)

Passa-se o mesmo com as feridas do coração. Precisamos de dar-lhes atenção, para que possam sarar. Caso contrário, a ferida continuará a fazer-nos sofrer. E por vezes durante muito tempo. Todos sofremos. É assim que as coisas são. Mas a verdade é que aquilo que nos magoa e nos faz sofrer também tem um importante propósito. É quando são feridos que os nossos corações se abrem. Através da dor, vamos crescendo. Crescemos com as situações difíceis. É por isso que temos de aceitar cada problema que surge na nossa vida. Tenho pena das pessoas que não têm problemas, que nunca passaram por momentos difíceis. Perderam a recompensa. Perderam a magia. (…)

Passara grande parte da vida a comparar-me com amigos (…)

A outra parte do processo de abrir o coração que vais ter mesmo de praticar - é importares-te contigo mesmo. Eu importava-me comigo. Isso ia ser fácil. (…) Cada um de nós escolhe o que é aceitável na sua vida. (…)

Jim, muitas vezes aqueles que nos magoam são os que mais estão a sofrer. (…)

E se conseguíssemos curar as nossas próprias feridas (…) Algo que todo o ser humano tem em comum é o primeiro som que ouve. O bater do coração da mãe. (…)

Quando os monges ouviram isto, desatar a rir. (…) »Toda a gente sabe que a compaixão não vem do cérebro, mas sim do coração.» A investigação mostra que o coração é um órgão inteligente. (…)

Ruth estava a melhorar a minha capacidade para controlar as emoções, a aumentar a minha empatia, as minhas aptidões sociais (…) Tentei abrir o coração. Fiz todos os esforços para recitar as minhas afirmações. Porém na minha mente eu continuava a ser o menino pobre, que vivia num pequeno apartamento e que tinha muitas vezes fome de comida e de amor. (…) Ruth ensinou-me a levantar-me sozinho. (…)

Há um velho provérbio, que diz: «Quando o estudante está pronto, o professor aparece.» Eras tu quem estava pronto. (…)

Há um imenso poder contido no propósito de cada um. (…) Cada um pode alterar o seu cérebro, percepções, reações e até mesmo o seu destino. Foi o que aprendi com a magia de Ruth. Podemos usar a energia das nossas mentes e a dos nossos corações para criar tudo o que quisermos. É um trabalho duro. (…) 

A energia não pode ser criada nem destruída. No entanto, pode mudar de forma e fluir de um local para outro! Essa é a dádiva que nos foi concedida. A energia do Universo está dentro de nós. Está na poeira das estrelas que nos enforma. Todo esse poder de criação. De expansão. Todo esse poder maravilhoso simples, sincronizado. A energia pode fluir de um sítio para outro. E de uma pessoa para outra. (…)

O tronco encefálico desenvolve-se e coordena as funções vitais essenciais, tais como o ritmo cardíaco, a respiração ou a pressão sanguínea - criando as condições para a vida fora do útero. (…) O cérebro não tem hipótese de se reformar - e cada experiência importa. (…)

Continuei a despejar o meu coração, durante o que pareceu uma eternidade (…) Sabem que não há a mínima prova de que um GPA elevado equivalha a vir a ser um bom médico. (…) Então o reitor levantou-se e apertou-me a mão. (…)

Nunca planeei tornar-me neurocirurgião. (…) Mais ainda, ser cirurgião plástico dos ricos e famosos era financeiramente compensador (…)

Aprendera a visualizar o que queria (…) Tornara-me arrogante. Conseguir tudo o que queria(…)

Como se estivesse a sonhar, vi-os embater de frente, contra uma árvore enorme. Nessa altura ficou tudo preto. (…) E tudo, ficou escuro. (…) Ainda tinha os olhos fechados, mas conseguia ouvir o hip dos monitores. (…)

Ao longo da vida podemos morrer milhares de vezes e essa é uma das maiores dádivas de estar vivo. (…) Senti o calor da luz e a unidade com o Universo. (…)

Bússola do coração. (…) Ao longo da vida, todos passamos por situações que nos fazem sofrer. Chamamos-lhe feridas do coração. Se as ignorarmos elas não saram. (…)

O teu coração é uma bússola e é o teu bem mais precioso. (…) O que pensas querer, nem sempre é o melhor para ti. Pensei que queria dinheiro. Na verdade, eu tivera dinheiro, mas parecia nunca era suficiente. (…) E eu continuava tão só, assustado e perdido como no primeiro dia em que conheci Ruth. (…) 

Adormecera a visualizar o meu coração. (…) Fechei os olhos e imaginei o meu coração a abrir-se (…) Enviei amor e perdão a mim próprio. (…)

Era altura de recomeçar a tornar-me realmente uma pessoa cujo valor não tinha a ver com dinheiro que possuía. (…) O cérebro tem os seus mistérios, mas o coração tem segredos que eu estava determinado a descobrir. (…)

Existe um epidemia de solidão (…)

Depois de ter perdido a minha riqueza, dediquei-me a ajudar os outros (…) Agir com bondade e compaixão e com um propósito. (…) 

Quando o amor é dado livremente, muda tudo e todos!


in: Dentro da Loja Mágica, de Dr. James R. Doty, 4ª Edição, Editora Leya, 2024