Aguarelas Finas, Le Corbusier | Maison La Roche, Paris

13 novembro 2019

Provocações | Camille Paglia

Este livro não é para todos.
Não é para aqueles que acreditam que encontraram, eles e os amigos, aliados, partidos políticos ou igrejas, a verdade absoluta acerca da humanidade, presente ou futura.
Não é para aqueles que acreditam que a linguagem tem de ser policiada ao serviço daquilo que consideram um bem social maior, e também não é para aqueles que concebem ao governo e seus representantes no campus universitário o direito de exigir e impor um pensamento «correcto».
Não é para aqueles que acreditam que a arte é a serva de agendas políticas ou de objectivos filantrópicos, ou que contém mensagens coercivas ocultas que devem ser expostas e destruídas.
Não é para aqueles que vêm as mulheres como vítimas e os homens como o inimigo, ou que pensam que as mulheres são incapazes de afirmar os seus direitos e dignidade humana em todos os lugares, incluindo o local de trabalho, sem a intervenção e a protecção de figuras de autoridade delegada pelo poder do Estado.
Não é para aqueles que veem o comportamento humano como algo resultante, no seu conjunto, de forças sociais opressivas que negam a influência da evolução e da biologia no desejo, nas fantasias e nos impulsos anárquicos, do amor ao crime.
Este livro é, em vez disso, para aqueles que colocam o pensamento livre e a liberdade de expressão acima de outros valores, incluindo considerações materiais acerca de questões de riqueza, estatuto ou bem estar físico.
É para aqueles que veem a Arte e a contemplação da Arte como um meio de expressão da intuição e da revelação, um trabalho em rede feito de sentidos, que deve ser realçado e celebrado e não memorizado por professores que, cinicamente, negam a possibilidade do sentido.
É para aqueles que veem as mulheres como iguais aos homens e que, nas suas justas e necessárias exigências de igualdade perante a lei, não apelam para uma proteção especial para as mulheres na sua condição de sexo mais fraco.
É para aqueles que veem a natureza como uma força vasta e sublime, que a humanidade é demasiado fraca para controlar para controlar ou modificar e que, fatalmente, nos modela enquanto indivíduos e enquanto espécie.
É para aqueles que veem a vida, num plano espiritual, como procura de sabedoria, um processo dinâmico de observação incessante, reflexão e autoeducação.
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Para mim não há nada mais importante do que o poder das palavras para descrever, recriar, arrebatar e provocar.
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O relógio da natureza faz tiquetaque por detrás da fachada da tecnologia. Por muito que queiramos tornar perfeita a brilhante rede, criada pela sociedade, feita de metal e microfibra, permanecemos reféns da teimosia dos nossos corpos, que continuam a pulsar de acordo com os ritmos primordiais.
Em tempos estávamos casados com o sol. No passado agrícola, o calendário era fixado pelas estações e os dias começavam e terminavam com a luz. Nos campos, o movimento era contínuo, permanente. O trabalho nunca acabava e era preciso conservar energia.
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A cultura moderna vive obcecada com a velocidade desde a invenção da locomotiva a vapor, nos começos do século XIX. A nossa percepção do espaço contraiu-se progressivamente e desmoronou-se por causa da nossa capacidade de atravessar distâncias enormes quase magicamente e sem esforço. Muitas queixas de saúde, crónicas e relacionadas com o stress, agravam-se seguramente por este ritmo precipitado que perturbou a nossa percepção física do tempo.
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 Os poetas do amor, na tradição lasciva do carpe diem, sempre souberam que o tempo é transitório, como que inscrito no corpo humano, que só floresce para depois decair.
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Somos mergulhados numa paisagem mental em que o impulso sexual representa energia pura e eterna juventude. Não há cansaço nem hesitação; a resistência serve apenas de jogo para inflamar o desejo. A subordinação nunca é degradação, tal como acontece tantas vezes no Marquês de Sade, cujas vítimas passivas se tornam não-pessoas, como carne passada por uma trituradora. Em Tom of Finland, pelo contrário, o parceiro que fica por baixo mantém a sua monumentalidade e carga explosiva. A rendição não é aniquilação, mas sim um jogo excitante.
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Mas o preço emocional pode ser a solidão crónica, uma melancolia subliminar substituída pela ação, pela conquista ou pela mera exibição.
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Neumann definiu aquilo que teorizou como os quatro estádios fundamentais do desenvolvimento psicológico da mulher. O primeiro é uma matriz indiferenciada ou unidade psíquica, em que o ego e o inconsciente ainda se encontra fusionados. Chamou-lhe estádio "matriarcal" e simbololizou-o através da serpente Ouroboros, um símbolo antigo de uma serpente que morde a própria cauda, devorando-se e dando em simultâneo origem a si mesma, uma Imagem tanto de solipsismo como de fertilidade. No segundo estádio, dá-se a invasão espiritual e a dominação por parte do arquétipo do Grande Pai (associado ao racionalismo e ao monoteísmo), percebido como destruidor ou violador. No terceiro estádio de desenvolvimento, Neumann incorpora o masculino num indivíduo normativo, um herói salvador que liberta a jovem mulher do pai controlador, submetendo-a, porém, ao jugo do casamento convencional, sob uma nova autoridade masculina. Os papéis sexuais encontram-se polarizados, sendo a masculinidade e a feminilidade mutuamente exclusivas. O quarto e último estádio descrito por Neumann tem implicações feministas: nele, a mulher em plena maturidade descobre o seu eu autêntico e a sua voz. Ao tomar de empréstimo o princípio masculino, os papéis sexuais tornam-se indistintos.
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in: Provocações, de Camille Paglia, Editora Relógio D'Água, Lisboa, 2019