Aguarelas Finas, Le Corbusier | Maison La Roche, Paris

10 setembro 2014

No Teu Deserto | Miguel Sousa Tavares

… tu foste tomar banho em primeiro lugar. E porque a porta da casa de banho não encostava bem - e não sei se reparaste nisso - de onde eu estava, estirado na cama, a repousar das oito horas ao volante mais o resto, vi-te a despir, a ficares toda nua e a entrares na banheira de água quente e nem por um momento me ocorreu deixar de o fazer. Estava cansado de mais para desviar o olhar.
(…)
Dormias profundamente, com a cara virada para mim e a tua mão direita pousada sobre o meu ombro. Como se fôssemos íntimos.
(…)
- Claudia, desculpa se te tratei mal: estava muito cansado. Mas, por favor, vem para a tenda!
O meu querido companheiro do deserto!
(…)
- Vira-te de costas, que me vou despir.
Mas, depois, veio e deitou-se abraçada a mim. Ou assim me pareceu.
(…)
Sim, é verdade: eu encostei-me a ti e abracei-te, nessa primeira noite na nossa tenda, no camping de Ghardaia, quando nos deitámos as duas horas que faltavam antes de partirmos para o deserto.
Encostei-me a ti e abracei-te sem sequer pensar no que estava a fazer: apeteceu-me, senti que não havia nenhuma razão para não o fazer. O teu cansaço comoveu-me e a tua delicadeza, ao deixares tanto espaço livre para mim ao lado do teu saco-cama, foi irresistível.
(…)
- Claudia, não precisas de falar só porque vamos calados. A coisa mais difícil e mais bonita de partilhar entre duas pessoas é o silêncio.
(…)
- Mas tu não poupas as palavras: tu escreves. Todas as noites gastas uma hora a escrever um diário nesse teu caderno…
(…)
Não me acordes agora, não me fales alto antes de me falares ao ouvido, não me tragas de volta do deserto.
(…)
- Sabes apetecia-me estar lá, no deserto. Não consegui ainda habituar-me a isto.
- Tens de te habituar. A vida é assim mesmo, nada dura para sempre. Só os rios e as montanhas, como diziam os índios da América.
(…)
Sem que eu tivesse de pensar em nada quando acordava, sem ter de planear os dias, de encher os dias, de enganar o vazio de tudo. Era isso, meu querido, mais do que tudo, que me dava essa incrível sensação de conforto, de segurança. Eras tu: tu estavas ali, tu tinhas tudo planeado e pensado e, por mais insuportável que às vezes me parecesse essa tua obsessiva organização e teimosia, por mais que tantas vezes te contrariasse só para te ver irritado ou para simular uma revolta que de todo não sentia nem queria que sentisses, esses foram os dias inesquecíveis em que soube que alguém cuidava de mim, que alguém me tinha pegado na mão e me conduzia por onde não havia nada - nem estradas, nem casas … nem árvores … - e a minha única tarefa era deixar-me conduzir por ti, entre a lucidez e o sonho.
(…)
Já sei, já sei que nada dura para sempre - só as montanhas e os rios, meu sábio.

in: No Teu Deserto, de Miguel Sousa Tavares, Oficina do Livro, Lisboa, 2009, p. 54, 62, 73, 89, 91, 97, 100, 105, 107, 108, 111.