Um calor estranho espalha-se logo como uma flor, algures no baixo-ventre. (…)
Estas palavras fascinam-me, quero agarrá-las, pô-las em mim, na minha escrita. Apropriava-me delas e, ao mesmo tempo, era como se me apropriasse de todas as coisas de que falavam os livros. (…) Adoro as palavras dos livros, aprendo-as todas. A minha mãe oferece-me o Larousse de páginas rosadas a meio, ela conta orgulhosamente à professora que passo horas com o nariz enfiado no dicionário. (…)
Aos poucos, as leituras tornavam-se inúteis, invento sozinha um nome, uma cidade, uma família. (…)
A égua preta! (…) Sempre a ler, a não fazer nada, no quarto, ou na cozinha, nunca na loja nem no café. (…)
A ligeireza, eis o que as distingue, e sempre impecáveis, asseadas. Os outros, os outros assemelham-se todos aos clientes. (…)
Por vezes sonho ser órfã. Ou faço resoluções, não volto a criticar nada, vou fingir que a casa me agrada. (…)
Os professores que me dizem que devo agradecer, que devo ser querida para ela, não aguentariam um dia em minha casa, ficariam repugnados, não param de dizer que têm pavor de gente grosseira, fazem cara de asno quando espirramos ruidosamente, se nos coçamos, se não nos sabemos exprimir. E queriam eles que eu fosse querida … Para me safar, tinha de fechar os olhos, fingir que comia, lia, dormia num hotel qualquer. Acima de tudo, não podia ver o que era feio, sujo, esfarrapado. (…)
No entanto, nada me escapou. Eu fingia simplesmente que não via, fechava-me no quarto com os meus livros, ignorava as bebedeiras no bar. (…) Farta. Detesto tudo. Atada de pés e mãos. (…)
O dia mais belo da minha vida teria incluído um frigorífico, cubinhos de gelo nos copos, iogurtes frescos, para convidar as minhas amigas. Não podia. E havia coisas piores, a ausência de casa de banho, o penico no quarto, ou a latrina no pátio, a merda a céu aberto. (…)
Nas aulas de Ciências Naturais, eu aprendia as regras de higiene, a luta contra os micróbios, forno de esterilização, lixívia, e vejo as moscas a redemoinharem de volta do patê, dos queijos, a minha mãe a apanhar as beatas com os dedos, os bêbados físicos a destilarem a sua porcaria no fumo que serpenteia do café à cozinha, paira sobre os nossos pratos. Lavar-me, uma obsessão, a grande banheira a transbordar de espuma. A felicidade. O meu primeiro duche, na cidade universitária, aos dezoito anos. Nem sequer tive prazer, cheirava a dia de lavar a roupa, eu ouvia a rapariga ao lado a esfregar-se. Senti-me constrangida. (…)
A culpa é deles se … que se lixe o que os professores dizem sobre os pais. Eu era um pequeno monstro, uma miúda suja, perdida lá no fundo. (…) Não posso continuar a odiar sozinha. Queria que me vissem como eu que os clientes deles, a casa, era tudo mau, feio, humilhante, humilhante … «Deixa-nos em paz! Concentra-te nos teus estudos!» e «Mais tarde, fazes o que quiseres, estuda (…)»
Ninguém acreditaria que fui criada assim. Sozinha. Com o meu asco, os meus ataques de raiva. A culpa é deles … Não, eles nasceram assim. (…) Detestava-me por não ser querida para eles, por não ser como as outras, tão meigas, tão afetuosas. (…) Catorze anos e o mundo deixara de me pertencer. (…)
Eu estava farta de mim própria, ao ponto de explodir, não havia um canto, uma brecha onde enfiar a vergonha, o reconhecimento obrigatório aos pais, o obrigada a Deus por ter podido continuar os estudos e merda, lá se foram as tretas morais. (…)
Odeio-os mais do que nunca. Os meus pais não sabem nada, são uns ignorantes, uns labregos, nem música, nem pintura, nada lhes interessa a não ser vender litros de vinho, comer frango sem falar ao domingo. (…)
A minha amiga é filha de uns agricultores sovinas, vem à escola numa velha bicla, mal-vestida. Odette, a segunda melhor aluna da turma. Nunca falamos dos nossos pais. (…) Boas alunas. (…) Não gosto verdadeiramente dela. o professor de literatura cita Montaigne «porque era ele, porque era eu». (…) Umas marginais juntas, sem o sabermos. (…)
Tinha, no entanto, a impressão de guardar em mim uma graciosidade escondida, um ritmo de dança paralisado, a heroína dos romances pronta a ganhar vida. (…)
Eles faziam tudo por mim. (…)
Grávida e isso não faria sentido nenhum. Eu não queria morrer.
in: Os Armários Vazios, de Annie Ernaux, Livros do Brasil, Porto Editora, Abril de 2024