Aguarelas Finas, Le Corbusier | Maison La Roche, Paris

20 setembro 2024

A Idade do Sol | Exposição Ana Gaspar



in: A idade do Sol, (Exposição de Pintura: ecoline sobre papel de aguarela), de Ana Gaspar, na Biblioteca de Azeitão, 2 a 25 de Setembro 2024

18 setembro 2024

As Cinco Mães de Serafim | Rodrigo Guedes de Carvalho

Miguel Serafim tem uma convicção - quem sobrevive à morte de um grande amor nunca mais terá medo de nada. Nunca mais encontrará um adversário à altura e derrotará todas as circunstâncias. Qualquer outro acontecimento será menor, qualquer problema se resolverá. 

Miguel Serafim é o menos suicida de todos os seres. Tudo na morte o repugna e não lhe reconhece nenhuma vantagem. (…) Nenhuma flor sobre as campas o atrai. (…) A morte é só feia e invencível. (…)

A morte só entra em festas para caçar. (…) Estamos só todos em pânico, nada mais. O que fazemos com o medo é o que nos distingue - uns controlam-se, outros enlouquecem. (…)

Serafim quer cá estar. Jovem e bonito seria bom, mas se só lhe derem uma vida eterna de velho, tudo bem, aceita. (…) odeia a morte. É um ódio que traz desde sempre (…) Detesta as chamadas actividades radicais e os que as inventam e praticam, e impingem aos outros o suposto interesse de uma filosofia de constante desafio à morte. (…) Não se chama a morte para a mesa, não se lhe deixa a porta aberta, à espera de ver o que fará ela com uma oportunidade. (…) Miguel Serafim despreza quem despreza a vida. A extraordinária riqueza que nos cabe, de um dia nascermos e andarmos por aqui, num planeta de maravilhas. A dádiva da vida. Despreza quem demonstra não a merecer de facto (…) Pensou em muitas ideias, frases, imagens, antes de concluir que esta é, afinal, a expressão exata - a dádiva da vida. Há que respeitá-la acima de todas as coisas, de todos, de tudo o que possa suceder. A dádiva da vida trás um contrato e ele despreza quem não o leu ou não o compreendeu. A morte é para ser combatida. Evitada, sempre, até já não ser possível. É a luta que nos entregam assim que pela primeira vez respiramos, na primeira vez que abrimos os olhos, na primeira vez que reagimos a um ruído. Miguel Serafim acha que não devemos bater muitas vezes à porta do Diabo, que um dia ele vai abrir. (…)

Os amigos reconhecem-se e acenam, a contarem os segundos (…) e quem estiver a ver perceberá que no momento em que se abraçam com força imensa sorriem e choram, e não falam. Porque têm hoje sessenta anos e estão no mesmo sítio onde deram um abraço triste de despedida, e tinham então dezanove anos (…)

O suicídio é a coragem suprema ou a cobardia mais indigna? (…) Ou o extraordinário corajoso que abraça a morte no momento que escolheu porque não tem medo de nada (e isto, sim, é não ter medo de nada. Ou o desprezível fraco que tem tanto medo da vida que escolhe a saída fácil, a que se diz que acaba todo o sofrimento (…)

Quando Miguel Serafim desatou num choro nervoso. As cores estavam todas misturadas, numa amálgama que escangalhava o arco-íris em palete que fascinava o menino, o degradê de azulão, celeste, verde, alface, amarelo, laranja, vermelho, lilás, roxo, mais o preto e o branco nas pontas, e porque a caixa tinha agora uns montinhos de lápis de cor aflitos fora do lugar, Miguel Serafim irritou-se por eles, e antes que a mãe lhe aplicasse duas palmadas no traseiro (não suportava birras de sono) o pai tratou de arranjar a disposição das cores, em dois perfeitos noventa graus que se encostam, simétricos, e iluminam o céu depois da chuva, e o filho acalmou-se. Foi este comportamento que fez com que colegas e professores reparassem nele logo na primária. A lentidão meticulosa com que tirara da pasta os lápis, as canetas e o caderno, e os colocava no tampo da carteira sempre, mas sempre na mesma posição. Como em qualquer infância, foi por aqui que o atacaram: não se pode exibir de tal forma o calcanhar de Aquiles. Não tardaram os episódios em que fervia de ansiedade se lhe misturavam os objetos. Quanto mais se enervava, mais o provocavam. Depois os colegas e os professores habituaram-se. Já em pequeno Miguel Serafim só  entendia a existência como uma orquestra, a cada instrumento uma missão específica, de entrada e duração marcada na pauta. E todos constroem e respeitam uma harmonia. E um dia alguém se lembrou de lhe passar a chamar Maestro porque Miguel Serafim estendeu a obsessão à geral, o que significava que por vezes, distraído, alinhava os objetos das outras carteiras, aventurava-se até à secretária da professora, endireitava três ou quatro livros que ela tinha empilhado de qualquer maneira e, havendo no quadro negro alguns rabiscos mal apagados da aula anterior, apagava-os em círculos lentos, até a lousa voltar a brilhar. (…)

Os artistas pertencem à classe dos bandidos. De pequeno delito, a maioria, embora se conheçam saques de monta. Acontece porque o artista necessita de combustível para carburar. Por isso observa muita gente e muita coisa, o que o distingue das pessoas que olham só para ver por onde vão e não tropeçar, e que de resto se limitam a respirar, comer e trabalhar para ganhar dinheiro que lhes permita continuar a comer. Pessoas que se concentram nessa resposta básica que alimenta o corpo básico. Enquanto o artista está sempre a fazer perguntas, a interrogar-se, a questionar a forma como os mecanismos da vida funcionam. O artista é bandido por espia e rouba. Uma estratégia é espiar a vida dos outros e depois escrever o que observou. (…)

Tornou-se maestro contra o caos do mundo. Ninguém sabe que não era só a música. Era a ordem, a simetria, a matemática implacável das partituras. (…) Ninguém sabe que o Miguel Serafim gostava de chegar primeiro do que os músicos, vê-los ocupar cada um o seu espaço, como alinhavam a cadeira e o suporte de pauta, como verificavam se a luz está bem posicionada. Os que aprumam a fatiota, orgulhosos e confortáveis, os que estão sempre a desejar que pudessem actuar mais informais. As peças de xadrez todas  a mexerem-se, gestos, barulhos, risos, tosses, o violoncelo a fazer escalas para afinar, as falanges dos violinistas a sentirem as cordas, ainda sem arco. Depois ele ergue a batuta, imóvel por segundos em posição de profeta, e tudo acontecerá consoante a sua vontade e mandamento. Tornou-se maestro na busca de uma ordem. Uma serena limpidez que o impedisse de desistir e matar-se. Pensou nisso muitas vezes desde o horror. Levou muito tempo a abandonar a ideia e a passar para o oposto. Decidiu viver, com todos os custos, sozinho contra a violência do que perdeu. (…)

Mas todos os grandes músicos amam o silêncio, que vale tanto ou mais do que uma nota a tinir. Gostava do silêncio acima de todas as coisas, e pessoas assim tendem a ligar-se só a quem respeite e compreenda. O que poderá explicar porque é que os grandes amigos ficam tantas vezes calados, lado a lado, a olhar a mesma paisagem. (…)

Que sabem realmente as pessoas da vida dos outros? Porque falam tanto, cheias de certezas, porque apontam factos os meros e gratuitos palpites? (…)

Os dias são candeeiros de lava, uma matéria pastosa que parece quase parada mas move-se, impulsiona e transforma a forma seguinte. (…)

Até para chorar é preciso estar com cabeça e disponibilidade. Com quantas emoções conseguimos lidar ao mesmo tempo? (…)


in: As Cinco Mães de Serafim, de Rodrigo Guedes de Carvalho, Editora Dom Quixote, Lisboa, 2023