Falas como uma poetisa - disse Perseu. - Uma poetisa marinheira. (…) Fechei os olhos. Vá lá, Medusa. Tu és mais forte do que isso. As minhas cobras juntaram-se mais, formando uma auréola protectora, mas não me senti mais forte. (…)
O ar é fresco. O céu desvanece-se de um azul carregado para um negro profundo. E há sempre uma brisa, um silêncio para o coração perturbado. Um sítio secreto. Eu lembro-me. - Perseu ficou em silêncio por um momento. (…) Toquei nas minhas cobras, que agora dormiam tranquilas. (…)
Infância, esse país de onde vimos mas nunca conseguimos identificar com precisão no mapa. (…)
Não interessa - eu nunca conseguiria explicar a este rapaz dourado e brilhante como era ter o azar a acumular-se, imparável, aos nossos pés, até sentirmos que nos estávamos a afogar na nossa própria tristeza. (…)
Claro que as minhas irmãs tinham razão. Eu havia mudado, só que desta vez, felizmente, era uma mudança que não se podia ver. (…) Pensei em Perseu escondido na gruta. Tinha sido tão fácil falar com ele. Era o meu segredo. Eu nunca tivera um segredo, ainda para mais escondido das minhas irmãs, que haviam feito tudo o que era possível para me proteger depois da vida ter corrido mal. (…) Um segredo era uma fissura no chão entre nós. (…) Durante muito tempo o amor fora um fantasma. (…)
Percebi que o meu cabelo tinha desaparecido e que no lugar havia agora uma coroa de serpentes, vigorosas, fortes, de todas as cores do arco-íris. (…) Medusa - prosseguiu a deusa. - ouve bem. Ai do infeliz que se atreva a olhar para ti agora! (…)
Senti-me deslocada em relação a mim mesma, como se o meu coração e a minha alma tivessem sido removidos do seu lugar. Percebia que as minhas cobras não gostavam. (…) Teria que passar o resto da minha vida escondida numa caverna? (…) Acariciei a cabeça da pequena Eco, tentando reconfortá-la. Calisto, uma cobra maior, de cor magenta profundo (…)
Já provaram algum perigo doce? (…) Pior, porque depois de o provarmos, tudo o que vier a seguir só pode ser enfadonho. (…)
Aquilo de que nos lembramos e de que modo o lembramos faz de nós o que somos. Talvez tenhamos uma escolha ou talvez não. (…)
Ouve - disse Euríale, começando a perder a paciência - és diferente de todas as mulheres do mundo. Deverias desfrutar disso. (…)
Eu estava encurralada. Era a única pessoa que nunca poderia escapar. (…) Mas, não eu era Medusa. Um monstro. Uma rapariga que se escondia. (…) Se eu fosse uma caixa trancada, Perseu poderia ter sido o único a encontrar a chave. (…) Ambos éramos centenários e cordeiros. Eu esperava pelo amor. (…)
Eu e Perseu. A Lua e o Sol, a prata e o ouro. Para que tinha ele aquela espada, aquele capacete, aquele escudo? (…) Como metais preciosos, os nossos corpos tinham sido transformados em armas. (…)
Eu sou teimosa. Sou um mapa inacabado e quero ser eu a traçar o meu percurso, não que alguém o faça por mim. Era o meu barco, Perseu. A minha vida. (…)
Não foi mau. Comia o pão, deixando metade para Atena (…) de costas voltadas para o mar. (…)
Eu era dona da minha história. Só eu a podia conservar ou rejeitar. (…)
Compreendo que somos semelhantes. Somos sobreviventes. (…)
Mas não é possível começar novo capítulo antes de terminar o anterior. (…) Uma mecha não pega sem faísca, e o fogo não havia sido apenas obra de Perseu. (…)
Porém, embora a luz nos permita ver claramente, também nos deixa sem um sítio para nos escondermos. (…) Como «ouro de tolos» em lápis-lázuli. (…)
Só me queria esconder já fora demasiado castigada apenas por ser eu mesma. (…)
E não com a felicidade de Medusa, ou com o seu direito de andar à vontade com o seu corpo, sem medos? Não. A verdade é que estás com inveja, Atena. (…) Vejo-o com bastante clareza - disse Esteno. A Medusa é mais bonita do que tu. (…) - As palavras podem magoar mais profundamente do que o golpe de uma espada. (…) Percebi que algo mau vinha na minha direção. (…)
O olhar de Atena queimou-me a pele, a sua fúria cobriu-me como mortalha. À medida que o seu poder entrava em mim. (…) E tu, agora, apesar de tudo, gostarias de regressar? Perguntei a mim mesma. (…)
Todos merecem ser amados. (…) Foram invejosas e interesseiras, e a seguir cruéis e críticas, e tu acreditaste sempre no que elas tinham a dizer sobre ti. (…)
Isso não faz sentido, Perseu. Como podes cortar a cabeça de alguém que não é real? (…) Sempre soubera que dentro das coisas novas crescem sementes da perda, mas não esperava que a minha perda fosse tão imediata. (…)
Sou Medusa. O monstro que querias encontrar. (…)
Não tinha acabado, que a minha história estava apenas a começar. (…)
A morte seria um escape. Perseu recuperaria a mãe e eu obteria paz. Os deuses poderiam finalmente ficar satisfeitos. (…) Mas eu não queria morrer. (…) Devemos sempre dar ouvidos ao nosso instinto. (…) Seria o amor mais fácil quando um já não existe? E então lembrei-me do aviso de Atena: «Ai do infeliz que se atreva a olhar para ti agora!» (…) Ambos sabíamos que o tempo acabaria por nos apanhar. (…)
Quando a minha história se tornou finalmente minha. (…) Vi o meu rosto naquele escudo e pareceu-me bem. Perseu atacou-me por causa de uma história, e não foi a que contei aqui. Devem ter cuidado com quem conta a vossa história. (…) Mas, sabia que o meu tempo chegaria.
in: Medusa, de Jessie Burton, Minotauro (Uma chancela de Edições Almedina), Coimbra, Julho 2024