Com quinze anos de idade, a minha avó tornou-se concubina de um caudilho militar, o general chefe da polícia de um vago governo nacional chinês. Corria o ano de 1924 e a China estava mergulhada no caos. Em grande parte do território, incluindo a Manchúria, onde vivia a minha avó, o poder era exercido por chefes militares, os senhores da guerra. Yixian, situada no sudoeste da Manchúria, acerca de 150 quilómetros da Grande Muralha e 380 quilómetros a nordeste de Beijing. Como a maioria das pequenas cidades chinesas, Yixian fora construída como uma fortaleza. Tinha a protegê-la uma cerca de muralhas do tempo da dinastia Tang (618-907 d.c.), com dez metros de altura e mais de três e meio de espessura, suficientemente larga no topo para permitir passagem fácil a um cavaleiro, encimada por ameias e reforçada por dezasseis bastiões dispostos a intervalos regulares. O acesso fazia-se por quatro grandes portas, uma em cada ponto cardeal, todas elas defendidas por portões exteriores. O conjunto da fortificação estava cercado por um profundo fosso. (…) uma alta torre sineira ricamente decorada, construída em pedra castanho-escuro, cujas origens remontam ao século VI, quando o Budismo se difundira na região. (…)
Ser funcionário significava poder, e poder significava dinheiro. Sem poder e sem dinheiro nenhum chinês podia considerar-se a salvo das exações do funcionalismo ou da violência gratuita. (…) chegar a mandarim era a única maneira de um filho de uma família plebeia poder escapar ao ciclo de injustiça e medo. (…) Uma vez que a família não tinha preocupações intelectuais e não detinha qualquer cargo oficial, e tratando-se de uma rapariga, nem sequer lhe deram um nome. Sendo a segunda filha, tratavam-na simplesmente por «rapariga número dois». O pai morreu quando ela era ainda uma criança, de modo que foi criada por um tio. (…) O casamento era visto acima de tudo como um dever, um arranjo entre duas famílias. Com sorte podiam apaixonar-se depois. Quando casou, com catorze anos, e tendo feito até aí uma vida muito protegida, o meu bisavô pouco mais era do que um rapazito. (…)
A minha avó era uma beldade. Tinha um rosto de forma oval, com faces rosadas e pele sedosa. Usava cabelos, negros, compridos e muito brilhantes, entretecidos numa grossa trança que lhe caía até à cintura. Sabia ser discreta quando a ocasião o exigia, o que significava quase sempre, mas sob aquele exterior recatado fervilhava um vulcão de energia reprimida. Era de pequena estatura, um pouco menos de um metro e sessenta, e tinha uma figura muito esbelta, de ombros descaídos, o que era considerado o ideal. O seu grande valor residia, porém, nos seus pés enfaixados, chamados em chinês «lírios dourados» com oito centímetros (San-tsun-gin-lian). Significava isto que caminhava «como um tenro rebento de salgueiro numa brisa primaveril», no dizer tradicional dos connoisseurs chineses de mulheres. A visão de uma mulher a caminhar vacilantemente sobre uns pés enfaixados tinha supostamente um efeito erótico nos homens, em parte, sem dúvida, porque a vulnerabilidade dela despertava em quem a via um impulso protetor. (…)
Depois punha-se a cortar pedaços de pele morta. A dor era provocada não só pelos ossos partidos, mas também pelas unhas, que cresciam para dentro das pontas dos dedos. Na realidade, os pés da minha avó tinham sido enfaixados precisamente na altura em que a prática estava prestes a desaparecer para sempre. Quando a irmã dela nasceu, em 1917, o costume já tinha sido praticamente abandonado, de modo que conseguiu escapar ao tormento. Na época em que a minha avó cresceu, no entanto, a atitude prevalecente numa cidade pequena como Yixian era ainda a de que os pés enfaixados eram essenciais para um bom casamento - embora fossem apenas um começo. Os planos que o pai tinha para ela envolviam treiná-la para ser uma senhora perfeita ou uma cortesã de grande classe. Desprezando a sabedoria tradicional da época - segundo a qual era virtuoso para as mulheres das classes inferiores serem iletradas - mandou-a para uma escola de raparigas que tinha sido instalada na cidade em 1905, e onde ela aprendeu igualmente a jogar xadrez chinês, ma-jongg e go. Estudou desenho e bordado. O seu motivo preferido eram os patos mandarins (que simbolizam o amor porque nadam sempre aos pares, e costumava bordá-los nos minúsculos sapatos de seda que fazia para os seus próprios pés. Para culminar a lista das suas prendas, foi contratado um professor para ensiná-la a tocar Qin, um instrumento musical parecido com a cítara. A minha avó era considerada a beldade da terra. Os habitantes locais costumavam dizer que ela se destacava como «um grou no meio de galinhas». (…) Em 1924 tinha quinze anos, e o pai começava a preocupar-se com o facto de o tempo estar a esgotar-se no que respeitava ao seu único verdadeiro bem e à sua única possibilidade de conseguir uma vida descansada. (…) O casamento era uma transação, não uma questão de sentimentos. (…) Naqueles tempos, uma mulher respeitável não podia ser apresentada a estranhos (…)
O meu bisavô tinha feito bem os planos. A posição em que a minha avó estava ajoelhada revelara não só as calças de seda, bordadas a fio de ouro como o casaco, mas também os minúsculos pés enfaixados, nos seus sapatinhos de cetim bordado. Quando acabou de rezar (…) Ela corou, baixou a cabeça, e em seguida fez meia volta e afastou-se, o que era exatamente o que devia fazer. O pai adiantou-se um pouco e apresentou-a ao general. (…)
No dia do casamento, uma liteira fechada, envolta em pesados panejamentos de seda vermelha bordada a ouro e de cetim, apareceu diante da casa dos Yang. Precedia-se uma procissão transportando pendões, faixas e lanternas de seda em que estava pintada a imagem de uma fénix dourada, o mais belo símbolo da mulher. (…) Fazer muito barulho era considerado essencial para um bom casamento (…) Depois de ter sido mostrada à cidade, chegou ao seu novo lar, uma grande e bonita casa. Yu-fang estava satisfeita. (…)
Era permitido visitar os pais, mas mesmo isso de má vontade, e não podia passar a noite em casa deles. Embora fossem as únicas pessoas com quem estava autorizada a falar, as visitas que lhes fazia eram sempre penosas (…) Estava muito bem uma mulher ter saudades do marido, isso era virtuoso, mas uma mulher não podia queixar-se. (…) Passaram seis anos. (…) Tinha saudades dele, embora soubesse que era apenas uma das suas muitas concubinas, provavelmente espalhadas um pouco por toda a China, e nunca lhe passou pela cabeça que ficaria para sempre a seu lado. (…)
Pouco tempo depois, a minha avó apercebeu-se que estava grávida. No décimo sétimo dia da terceira lua, na Primavera de 1931, deu à luz uma menina: a minha mãe. Escreveu ao general Xue a dar-lhe a notícia, e ele respondeu-lhe dizendo-lhe que desse à menina o nome de Bao Qin e a levasse a Lulong logo que estivessem ambas suficientemente fortes para viajar. A minha avó ficou encantada por ter a filha. Agora, sentia, a sua vida ter um objetivo, e canalizou para a minha mãe todo o seu amor. Assim se passou um ano de felicidade. (…)
Já no exterior, a esposa intimou a minha avó a não perturbar o amo. (…) A minha avó ficou aterrorizada. Como concubina, o seu futuro e o da filha estavam em perigo, talvez num perigo mortal. Não tinha quaisquer direitos. Se o general morresse, ficaria inteiramente à mercê da viúva, que tinha sobre ela um poder de vida e de morte. Poderia fazer o que quisesse: vendê-la a um homem rico, ou inclusivamente para um bordel, o que era bastante comum. Se isso acontecesse nunca mais voltaria a ver a filha. Soube então que tinham de fugir dali o mais depressa possível. (…)
A minha avó, porém, nunca o viu: ignorou o chamamento e não esteve presente no funeral. A próxima coisa que aconteceu foi que o gerente da casa de penhores deixou de aparecer com a mesada. Cerca de uma semana mais tarde, os pais dela receberam uma carta da esposa de Xue. As últimas palavras do meu avô tinham sido para devolver à minha avó a sua liberdade. O gesto, na época, era extremamente invulgar, e Yu-fang quase não queria acreditar em tanta sorte. Com vinte e quatro anos de idade, estava livre. (…)
in: Cisnes Selvagens, de Jung Chang, Editora Quetzal, Lisboa, 2018