Aguarelas Finas, Le Corbusier | Maison La Roche, Paris

09 junho 2024

As Pequenas Memórias | José Saramago

 

«Deixa-te levar pela criança que foste»


Sem que ninguém de tal se tivesse apercebido, a criança já havia estendido gavinhas e raizes, a frágil semente que então eu era havia tido tempo de pisar o barro do chão com os seus minúsculos e mal seguros pés, para receber dele, indelevelmente, a marca original da terra, esse fundo movediço do imenso oceano do ar, esse lodo ora seco, ora húmido, composto de restos vegetais e animais, de detritos de tudo e de todos, de rochas moídas, pulverizadas, de múltiplas e caleidoscópicas substâncias que passaram pela vida e à vida retornaram, tal como vêm retornando os sóis e as luas, as cheias e as secas, os frios e os calores, os ventos e as calmas, as dores e as alegrias, os seres e o nada. Só eu sabia, sem consciência de que sabia, que nos ilegíveis fólios do destino e nos cegos meandros do acaso havia sido escrito que ainda teria de voltar à Azinhaga para acabar de nascer. (…)

O que não sei é onde se irão meter os lagartos. (…)

A criança, durante o tempo que foi, estava simplesmente na paisagem, fazia parte dela, não a interrogava, não dizia nem pensava, por estas ou outras palavras: «Que bela paisagem, que magnífico panorama, que deslumbrante ponto de vista!»

Toda a água me passa entre as palmas abertas, e de repente não sei se as águas nascem de mim, ou para mim fluem. (…) Nadam-me peixes no sangue (…) Ao fundo do rio e de mim, desce como um lento e firme pulsar de coração. (…)

Olho de cima da ribanceira a corrente que mal se move, a água quase estagnada, e absurdamente imagino que tudo voltaria a ser o que foi se nela pudesse voltar a mergulhar a minha nudez da infância, se pudesse retomar nas mãos que tenho hoje a longa e húmida vara ou os sonoros remos de antanho, e impelir, sobre a lisa pele de água, o barco rústico que conduziu até às fronteiras do sonho um certo ser que fui e que deixei encalhado algures no tempo. (…)

Meto um bocado de pão de milho e um punhado de azeitonas e figos secos no alforge, pego num pau para o caso de ter de me defender de um mau encontrar canino, e saio para o campo. (…)

Lembro-me de um poente belíssimo, e eu ali sentado na soleira da porta, a olhar as nuvens vermelhas e o céu violeta, sem saber o que me iria acontecer (…)

Nem tudo foram sustos nas salas de cinema aonde o garoto de calções e cabelo cortado à escovinha podia entrar. (…) mas os atores de quem eu mais gostava eram o Pat e o Patachon, que hoje parecem ter caído em completo esquecimento. (…) Muito mais tarde viria a saber que eram dinamarqueses (…)

Nunca fui grande pescador. Usava, como qualquer outro rapaz da mesma idade e de posses tão modestas como eram as minhas, uma cana vulgar com anzol, a chumbada e a boia de cortiça atados ao fio de pesca, nada que se parecesse com os artefactos modernos que por ali haveriam de aparecer mais tarde (…)

É um homem como tantos outros nesta terra, neste mundo, talvez um Einstein esmagado sob uma montanha de impossíveis, um filósofo, um grande escritor analfabeto. Alguma coisa seria que nem pôde ser nunca. (…) Mas a imagem que não me larga nesta hora de melancolia é a do velho que avança sob a chuva, obstinado, silencioso, como quem cumpre um destino que nada poderá modificar. (…)

Muitas vezes esquecemos o que gostaríamos de poder recordar, outras vezes, recorrentes, obsessivas, reagindo ao mínimo estímulo, vêm-nos do passado imagens, palavras soltas, fulgurâncias, iluminações, e não há explicação para elas, não as convocámos, mas elas aí estão. (…)

Éramos assim, feridos por dentro, mas duros por fora. As coisas são o que são, agora se nasce, logo se vive, por fim se morre, não vale a pena dar-lhe mais voltas, o José Dinis veio e passou, choram-se umas lágrimas na ocasião, mas o certo é que a gente não pode levar a vida a chorar os mortos. (…)

Nunca mais tornei a ver o lagarto verde.


in: As Pequenas Memórias, de José Saramago, Porto Editora, Lisboa, 2022