E a vaga de ternura e piedade que de repente lhe encheu o coração não era o movimento de uma alma que conduz o filho à evocação do pai desaparecido, mas a perturbada compaixão que um homem feito experimenta perante a criança injustamente assassinada - algo não se encontrava na ordem natural e, na verdade, não havia ordem, mas apenas loucura e caos numa situação em que o filho era mais velho que o pai. A sequência do próprio tempo agitava-se em torno dele imóvel entre as sepulturas que já não via, e os anos deixavam de se ordenar ao longo do grande rio que rolava em direção à foz, ao seu termo. (…) Revia a sua vida louca, corajosa, indolente, obstinada e sempre apontada ao objetivo de que ignorava tudo, e na verdade desenrolara-se totalmente sem que ele tivesse tentado imaginar o que podia ser um homem que lhe dera precisamente a vida para ir morrer em seguida numa terra desconhecida, do outro lado dos mares. (…) A tarde chegou ao fim. O ruído de uma saia perto dele, uma sombra negra, fê-lo regressar à paisagem das sepulturas e do céu que o rodeava. Mas não podia isolar-se daquele nome, daquelas datas. Já só havia cinzas e pó debaixo daquela pedra. Mas, para ele, o pai voltava a viver, uma estranha vida taciturna, e dava-lhe a impressão de que ia abandoná-lo de novo, deixá-lo continuar mais aquela noite na solidão interminável em que o tinham lançado e depois abandonado. O céu deserto com uma denotação intensa e brusca. Um avião invisível acabava de transpor a barreira do som. Jacques Cormery voltou as costas à sepultura e abandonou o pai. (…)
- Há criaturas que justificam o mundo, ajudam a viver com a sua mera presença.
- Sim, e morrem. (…)
Durante o silêncio que se seguiu, o vento soprava com um pouco mais de intensidade em torno da casa. (…)
Mas ele evadira-se, respirava, no enorme dorso do mar, respirava por ondas, sob o largo balouçar do sol, podia finalmente dormir e voltar à infância, de que nunca se curara, ao segredo de luz, de pobreza calorosa que o ajudara a viver e vencer tudo. (…)
Delicado e astuto, uma espécie de inteligência instintiva permitia-lhe orientar-se num mundo e através de seres, que todavia, para ele, eram obstinadamente silenciosos. (…)
«Que é? Que é?», como a fera pré-histórica que acordava todos os dias para um mundo desconhecido e hostil. Ao invés, uma vez acordado, o corpo, e o seu funcionamento, assegurava-lhe o equilíbrio na terra. Não obstante o ofício duro de tanoeiro, gostava de nadar e caçar. (…)
Magoavam-se uns aos outros sem o desejar e simplesmente porque eram, cada um para os restantes, os representantes da necessidade miserável e cruel em que viviam. E, de qualquer modo, ele não podia duvidar do apego quase animal do tio pela avó, em primeiro lugar, e depois pela mãe de Jacques e seus filhos. Quanto a ele, sentira-o no dia do acidente na tanoaria. Jacques visitava a tanoaria todas as quintas-feiras. Se havia trabalhos de casa para fazer, despachava-os muito rapidamente e corria para a oficina, com a mesma alegria com que noutras ocasiões se reunia aos amigos de rua. (…)
Depois, eram as aulas. Com o senhor Bernard, as sessões eram constantemente interessantes pela simples razão de que ele amava apaixonadamente a sua profissão. (…)
Somente a escola proporcionava estas alegrias a Jacques e a Pierre. E sem dúvida o que amavam tão apaixonadamente nela era o que não encontravam em casa, onde a pobreza e a ignorância tornavam a vida mais dura, mais triste, como que encerrada em si própria; a miséria é uma fortaleza sem ponte levadiça. (…)
Era nessa galeria, entre os primeiros alunos chegados, que, na sua maioria, dissimulavam o nervosismo com atitudes descontraídas, salvo algumas exceções de rosto pálido e silêncio, sinais de ansiedade, que o senhor Bernard e os seus alunos aguardavam, diante da porta fechada, na manhã ainda fresca e perante a rua ainda húmida que, dentro de pouco tempo, o sol cobriria de pó. Tinham chegado com cerca de meia hora de antecedência, calados, permanecendo junto ao professor, que não encontrava nada para lhes dizer e, de repente, os abandonou dizendo que voltaria. Com efeito, viram-no reaparecer um momento mais tarde, sempre elegante, com o seu chapéu de abas voltadas para cima e as polainas que calçara naquele dia, trazendo em cada mão dois embrulhos de papel de seda e, quando se aproximou, eles viram que o papel estava manchado de gordura. «Aqui têm croissants», disse o senhor Bernard. (…) «Não se precipitem», recomendou o professor. «Leiam bem o enunciado do problema ou o tema da redação. Leiam-no várias vezes. Têm tempo para isso.» Sim, eles lê-los-iam várias vezes, obedeceriam a quem sabia tudo e junto do qual a vida não tinha obstáculos; bastava que se deixassem guiar por ele. (…)
Ao meio dia, o senhor Bernard aguardava-os à saída. Eles mostraram-lhe os rascunhos. Somente Santiago se enganara na resolução do problema. «A tua redação está muito boa», disse o professor a Jacques. À uma, voltou a acompanhá-los. Às quatro, achava-se de novo à espera e examinou o trabalho dos alunos. «Agora, resta esperar», acabou por dizer. Dois dias mais tarde, encontravam-se mais uma vez os cinco diante da porta às dez da manhã. Esta abriu-se e o contínuo tornou a ler uma lista, agora muito mais curta, que era a dos aprovados. No murmúrio de excitação que se seguiu, Jacques não ouviu o seu nome. Mas recebeu uma cordial palmada nas costas e o senhor Bernard disse-lhe: «Bravo, mosquito. Foste admitido.» (…) E Jacques já não sabia onde estava, nem o que acontecia, regressaram os quatro no tranvia. (…) e, Jacques ficou só, perdido no meio das mulheres, e precipitou-se para a janela para olhar o professor, que o saudou pela última vez e o deixou finalmente só, e, em lugar de alegria do êxito, um imenso pesar infantil comprimia-lhe o coração, como se soubesse antecipadamente que, com aquele êxito, acabava de ser arrancado ao mundo inocente e caloroso dos pobres, um mundo hermético como uma ilha na sociedade, mas em que a miséria reforçava a família e a solidariedade, para ser lançado noutro desconhecido, que já não era o seu, em que não conseguia acreditar que os professores fossem mais eruditos que os daquele em que o coração sabia tudo, e teria de passar a aprender e compreender sem ajuda, tornar-se finalmente um homem sem o auxílio do único que lhe acudira, crescer e desenvolver-se enfim só, pelo preço mais caro. (…)
Jacques pôs-se a escrever o termo, deteve-se e, de repente, conheceu de repente a vergonha e a vergonha de ter tido vergonha. (…) Mas ele necessitaria de um coração de uma pureza heróica excepcional para não sofrer com a descoberta que acabava de fazer, tal como necessitaria de uma humildade impossível para não acolher com raiva e vergonha o sofrimento do que lhe descobria da sua natureza. (…)
Ao longo das arcadas, as lojas sucediam-se, comerciantes de tecidos a granel, cujas fachadas eram pintadas em tons sombrios e onde as pilhas de tecidos claros reluziam docemente na sombra, mercearias que cheiravam a cravinho e a café, pequenos balcões onde os comerciantes árabes vendiam doçarias escorrendo azeite e mel, obscuros e profundos cafés onde os percoladores fumegavam àquela hora (…)
A quinta-feira era também o dia em que Jacques e Pierre iam à biblioteca municipal. Desde sempre, Jacques devorava todos os livros que lhe caíam nas mãos e tragava-os com a mesma avidez com que vivia, praticava jogos ou sonhava. Mas a leitura permitia-lhe escapar-se para um universo inocente em que a riqueza e a pobreza eram igualmente interessantes, por serem perfeitamente irreais. (…)
Interessa pouco saber o que os livros continham. O que importava era o que eles sentiam ao entrar na biblioteca, onde não viam as palavras de livros pretos, mas um espaço e múltiplos horizontes, que após a transposição da porta, os arrancavam da vida estreita do bairro. (…)
Assim, durante anos, a vida de Jacques partilhou-se desigualmente entre duas vidas que não podia ligar entre si. Ao longo de doze horas, ao som do tambor, numa sociedade de rapazes e professores, entre os jogos e o estudo. Durante duas ou três horas de vida diurna em casa no velho bairro, junto da mãe com quem re reunia verdadeiramente apenas no sono dos pobres. (…)
… três dias antes, saboreara pela primeira vez, quase desfalecido, o contacto com a boca de uma jovem. (…)
Naquela escuridão, nascia o ardor faminto, a loucura de viver que sempre o habitara e ainda hoje conservava o seu ser intacto, tornando simplesmente mais amargo - no seio da família reencontrada e perante as imagens da infância -, o sentimento de súbito terrível de que o tempo da juventude se afastava, como aquela mulher que amara, sim, amara profundamente com todo o coração e corpo, sim, o desejo era real com ela, e o mundo quando ele se afastava dela com um grande grito silencioso no momento do prazer encontrava a sua ordem ardente, e ele amara-a devido à sua beleza e àquela loucura de viver, generosa e desesperada, que era a sua e o levava a recusar, recusar que o tempo pudesse passar, embora soubesse que passava precisamente naquele momento (…)
… razões para envelhecer e morrer sem revolta.
in: O Primeiro Homem, de Albert Camus, Livros do Brasil/Porto Editora, 2018