Aguarelas Finas, Le Corbusier | Maison La Roche, Paris

24 dezembro 2020

Fernando Pessoa | Sónia Louro

Lá não fiz nenhum amigo, tal como não os fiz em lado algum … É uma criança que gosta de se isolar - ouvi repetidamente ao longo da minha infância e adolescência. (…) Gostava de brincar só e sentia muitos impulsos de raiva, de quase ódio, e muito medo. Mas nunca me isolei, pelo menos não da vida imaginária.

Há dias, melhor, há noites, em que as memórias me afogam no mar que é a minha cama e sinto-me um náufrago agarrado como última esperança ao meu cobertor como a um toco. O Chevalier de Pas não vem em meu auxílio porque já não sou criança, embora me sinta mais indefeso do que então. Mas nessa altura era feliz porque não tinha consciência de nada: da minha fragilidade, da minha solidão e do amor que era meu e me levaram. Sou mais indefeso agora porque sei que o sou, era feliz então porque não sabia que o era. 

Desde hoje estou só, humanamente abandonado e só. Era a partir de hoje que estava só, embora soubesse que sempre tivesse estado. 

Fechei o negócio das máquinas pelo telefone, sem ver nada antes. Só como um louco faria, assomou à minha ida para Portalegre, onde as máquinas se encontravam. (…) O deserto do Alentejo, emoldurado pela janela do comboio na viagem para Portalegre para ir buscar as máquinas para a minha tipografia, inspiravam-me palavras que, esperançosamente, escrevia junto do papel para não as perder.

E todos os versos do universo, os que já foram escritos e os que todos os poetas ainda hão-de escrever, volteiam na minha cabeça, como que a zombar por eu não conseguir apanhar nenhum. E sinto-me invadido por uma epifania divina sem razão de deus: e se existir apenas um único verso, daí a razão por um universo se chamar "uni-verso" e por todos os meus versos terem o valor que têm?

Sinto um desvairamento tal, como se tivesse deixado de ser senhor da minha lucidez. Eu vivo preso num dilema sem solução: "A solidão desola-me; a companhia oprime-me". 

O artista deve nascer belo e elegante, pois o que cultua a beleza não deve ser ele mesmo feio. E é seguramente uma terrível dor para um artista não descobrir absolutamente em si mesmo aquilo por que ele luta. (…) Que me restava então a mim, que tinha nascido feio, senão tentar ser elegante? E, sendo elegante, parecer assim menos feio. 

Por mais que a arca se enchesse, a minha cabeça nunca se esvaziava e não conseguia compilar um livro de versos, nem concluir uma das várias novelas … Eu queria esvaziar a minha cabeça e por isso escrevia tudo, tudo … 

Arre! Que um rio nunca se esgota por mais que se deite para o mar. As palavras nunca cessam por mais que tentasse ver-me livre delas, despejando-as para o papel. (…) Ah, porquê todas estas palavras que não param se não as consigo escrever melhor? Porém, ainda que não as escrevesse melhor, o que seria de mim se não as escrevesse? Seria um rio que galga a terra e causa enchentes …?

in:  Fernando Pessoa, de Sonia Louro, Edições Saída de Emergência, Portugal

01 dezembro 2020

Eternar a Natureza | Ana Gaspar


 


O Homem e a Arte. O Homem e a relação com a Natureza. 

Da interação com o espaço natural, e a partir dos materiais que dele se podem extrair, resultam momentos carregados de sentimentos e de emoções de fundo, como o prazer do instante e da "intimidade" desse espaço interior, cujo acto de espiritualidade e de entrega a esse local produz um acto criativo que daí até à sua interligação através dos materiais recolhidos no imediato se revelam numa criação eterna desse momento único. Este veículo de comunicação entre o indivíduo e a sua atitude revela um eternar a natureza, num registo visual cujo importância demostram ao universo da arte.

Desta relação "amorosa" entre Homem e Natureza, podem e resultam Obras de Arte únicas, que "vieram da Terra e para ela retornam", num "Eterno Retorno" do sentir da vida (tal como Nietzsche escreveu e pensou). Ainda e todo este encanto pela Beleza Natural à sua volta, o Homem-Artista desperta para um olhar sensível, curioso, e de uma entrega, à sua paixão de criação, tal como uma criança desperta a sua alegria, ao olhar a flor, a árvore, o céu, as cores, e a abundância de vida à sua volta, sentindo-se a ela ligada, como fazendo parte de um Todo, Natural e Humanizado, através da sua presença! (Tal como Einstein também chamou a atenção para a importância do "encanto" e da "curiosidade" na criança).

Em todo este processo, o Artista-Homem, com o seu poder criador, e com a sua visão ampliada pelo processo da vida natural, observando cada pormenor da vida vegetal e animal, se apropria de cada parte, proporcionando bem estar físico, emocional e ampliando este prazer aos olhos, através da sua criação neste espaço, proporcionando aos outros homens, um encanto, muitas vezes perdido, pela urbanidade, esquecida do contributo e da importância do verde, das cores, e sobretudo do movimento da Terra! 

A Terra, este local maravilhoso que permitiu a existência deste Artista-Homem sempre parte da vida natural, e a partir da qual aprendeu a criar, e potenciar a sua homeostasia nas suas criações fantásticas. A importância do movimento da Terra, do Sol, da Lua, e do próprio olhar e movimento do Homem ao longo destes milhões de anos carrega em si o poder da criação, como algo único e ancestral. 

No mundo contemporâneo, a necessidade de criação a partir do espaço natural é emergente e urgente, nesta relação antropológica, com a arte, e o ciclo natural.

in: Apontamentos de Ana Paula Gaspar, Maio de 2020

in: Obras de Arte: Círculo Nº 3 (Pinhas), e Círculo Nº 10 (Alfazema Selvagem), de Ana Paula Gaspar, 8 de Fevereiro 2020, e 22 de Março 2020. O núcleo é constituído por um total de 21 obras, designadas por Círculo e numeradas pela data de criação, desde Janeiro a Novembro de 2020. 

16 novembro 2020

Alexandrina Cereja | Ana Patrício

1. 

Alexandrina tinha vergonha daquela casa velha, de um amarelo desbotado, com dois ridículos limoeiros e uma nespereira num pequeno jardim quase impenetrável e incompreensível, entregue aos gatos. Também tinha vergonha do seu nome, porque mais ninguém se chamava Alexandrina. 

A mãe explicava às vezes que tinha ido, quando era nova, a uma festa, que bebera uns copos de vinho, e que sonhara depois com uma menina maravilhosa, chamada Alexandrina. 

E dizia que Alexandrina lembrava Alexandria, uma cidade no Egipto, cuja história incluía um Farol e uma Biblioteca. Às vezes Alexandrina tinha vontade de bater na mãe.

Mas aos onze anos as coisas mais simples parecem insuportáveis, e as coisas insólitas são aceites com naturalidade.

A casa e o nome eram as coisas mais simples da vida de Alexandrina e eram ao mesmo tempo as suas preocupações mais sérias. 

O resto da vida às vezes era triste, às vezes um bocadinho misterioso, às vezes assustava-a um pouco mas dava-lhe sempre a sensação de ser como as personagens dos livros; ainda que fosse uma vulgar rapariga de olhos e cabelos castanhos, essa sensação era reconfortante. 

2. 

O pai estava na América a estudar. Não era o seu verdadeiro pai, mas tinha um nome lindo: Renato. Era um médico importante de Lisboa, ainda muito novo e extremamente bonito, estava a especializar-se numa coisa que Alexandrina não sabia o que era, só que era parecido com Psiquiatria, mas mais complicado ainda - tinha a ver com descobertas novas que os americanos faziam e experimentavam.

Mandava-lhe todas as semanas um postal. Nunca a tratava pelo verdadeiro nome. Chamava-lhe Cereja, num pequeno código que tinham entre ambos, por ela gostar de cerejas.

Os postais da América eram incríveis. Alguns tinham música, outros vinham com perfume, e o pai escrevia sempre um PS: Toma conta da tua mãe!

Alexandrina sentia então uma momentânea responsabilidade, que depressa se dissipara. 

A mãe era linda. (…) Era louca e chamava-se Elisa. Raramente saía do quarto, onde bebia chávenas de chá e se enfeitava com lenços e pulseiras. Era uma mãe um bocadinho louca. (…)

7.

Alexandria passou o dia seguinte a limpar a casa. Telefonou à Daniela e disse que estava com febre, se ela não se importava de informar os professores. A Daniela disse que estava bem. 

Então, determinada, Alexandrina varreu todos os quartos, limpou as carpetes, fez as camas de lavado e lavou o chão gasto da cozinha, que ficou quase brilhante.

Pôs a roupa suja na máquina de lavar e telefonou para a clínica, de onde a informaram que a mãe não piorara, mas que ainda não recebia visitas.

A rapariga foi ao jardim, apanhou margaridas, rosas, camélias e umas outras flores amarelas e pequenas, que abundavam por ali. Enfeitou a casa toda com as flores.

Pé ante pé entrou no quarto da mãe, que cheirava a fumo e a fechado, e abriu a janela, para que o ar fresco da manhã lhe desse um ar saudável. 

Alexandrina despejou os cinzeiros, ajeitou as almofadas de veludo, apanhou os vestidos do chão e voltou a pendurá-los. Apanhou os livros espalhados e colocou-os nas prateleiras. Depois, numa jarra verde, de um vidro antigo, misturou todas as flores que trouxera do jardim. E achou que o quarto tinha ficado com um ar alegre. 

Em cima da cómoda estava aberto um caderno, onde se podia ver a letra incerta da mãe, mas Alexandrina não se atreveu a espreitar o que tinha escrito.

Fechou-o solenemente e deixou-o no lugar.

Estafada, sentou-se na cozinha a comer uma maçã- mas nem por um segundo lhe ocorreu pensar que tudo aquilo era injusto.

Durante cinco dias Alexandrina viveu completamente sozinha. (…)

Alexandrina disfarçou os soluços, limpou as lágrimas com as mãos, e respondeu que preferia ir para a avó Eduarda, para o campo. (…)

9.

As coisas na vida mudam às vezes tão rapidamente que quase não damos pela mudança. Aos onze anos é fácil adaptarmo-nos a tudo, principalmente à beleza.

E a Beira Alta era verde e bonita e a quinta da avó Eduarda um sítio óptimo para se viver.

Alexandrina aprendeu imenso sobre animais, sobre árvores de fruto e outras coisas interessantes.

Experimentou descer a correr uma pequena colina coberta de ervas altas, que levava a um riacho cristalino, e adorou a sensação. Parecia que tinha vivido sempre na Beira Alta.

Pela primeira vez na vida tinha muitas pessoas da sua idade para conviver. (…)

Alexandrina chegou à conclusão que uma escritora - agora já não acrescentava famosa tantas vezes - tinha que viver a proximidade da Natureza para ser realmente boa. E pensava que a mãe escrevia poemas porque crescera ali. (…)

Alexandrina gostava muito deles mas não tinha nenhuma vontade de voltar para Lisboa. Só quando fosse mais velha, para estudar literatura, grego e latim. (…)

Os nomes destes novos amigos tinham para Alexandrina um som doce, muito macio. (…)

10.

E assim a vida se desenlaçou como um novelo, como o decorrer das estações.

Um dia, quando Alexandrina já tinha treze anos, recebeu uma carta da mãe. A Câmara demolira a casa amarela e o Renato comprara uma casa ao pé do mar, numa terra chamada Azenhas do Mar. A mãe contava que cheirava sempre a mar, que ali era sempre feliz e convidara-a para ir viver com eles. E o Renato escreveu também: vem, Cereja!

Deu-lhe vontade de chorar. Lembrar-se dos postais da América, da casa amarela que agora era só uma estrada mais larga, por onde os autocarros podiam passar sem atropelos.

Lembrou-se do prédio moderno onde o pai vivia, daqueles fins-de-semana em que a convidavam por dever, e sentiu então que agora era dali, da Beira Alta, e de mais lugar nenhum.

(…)

E, como uma escritora verdadeira, saiu de casa, passeou lentamente até ao riacho, e pensou que a maior aventura da vida das pessoas era a amizade. Os seus livros, um dia, falariam disso.

 

in: Alexandrina Cereja, de Ana Patrício, Prémio Revelação 1996, Difel Editora

15 outubro 2020

O Estúdio de Alberto Giacometti | Jean Genet

 Ora a obra de Giacometti torna o nosso universo tão insuportável quanto este artista parece ter sabido afastar o que lhe perturba a visão, e descobre o que resta do homem expurgadas que sejam as aparências. É tão profunda a nostalgia que o fortaleceu no trabalho, que Giacometti também deve ter tido necessidade dessa inumana condição imposta. (…)

Aceito mal o que em arte se designa por inovador. Deverá uma obra ser entendida pelas gerações futuras? Porquê? Que quererá isso dizer? Que elas poderão utilizá-la? Em quê? Não vejo bem. Já vejo melhor - ainda que muito obscuramente - toda a obra de arte que pretenda atingir os mais altos desígnios deve, com paciência e uma infinita aplicação desde início, recusar milénios e juntam-se, se possível, à imemorial noite povoada pelos mortos que irão reconhecer-se nessa obra.

Nunca, nunca, o obra de arte se destina às novas gerações. Ela é oferenda ao inúmero povo dos mortos. Que a acolhem. Ou rejeitam. Mas os mortos de que falo nem vivos foram. Ou então esqueci-os. Porque foram-no suficiente para que os esqueçam, já que a vida teve como fim levá-los a cruzar esta tranquila margem de onde aguardam (…)

A obra de Giacometti transmite ao povo dos mortos o conhecimento da solidão de todos os seres e de todas as coisas, solidão, nossa mais certa glória. (…)

Zona secreta, solidão onde se refugiam os seres - e as coisas - é ela que dá beleza à rua: por exemplo, se for sentado num autocarro basta olhar pela janela. A rua cede o que o autocarro devassa. (…)

Solidão, como eu a entendo, não designa estatuto de miséria mas secreta soberania, nem profunda incomunicabilidade mas conhecimento mais ou menos obscuro de uma singularidade intocável. (…)

A mão vive, a mão vê. (…)

Alegria dos meus dedos bastantemente conhecida, sempre renovada ao passá-los - olhos fechados - sobre uma estátua. (…)

Giacometti, o escultor para cegos.


in: O Estúdio de Aberto Giacometti, de Jean Genet, Ed. Assírio & Alvim, Lisboa, 1999

10 outubro 2020

Tríptico Azul

Tenho os pés cansados de caminhar.

Tenho o coração a arder de tanto amar.

Tenho o tempo nas mãos, que me foge como a areia do deserto com o vento.

E é esta a solidão que carrego desde que nasci.

Não adianta fugir.

Também não tenho para onde ir.

Só me resta o Azul do céu, o Branco das nuvens e o cansaço desta turbulenta Vida na Terra.



in: Poema, de Ana Paula Gaspar, 11 de setembro de 2020
in: Tríptico, de Ana Paula Gaspar, Pintura em Acrílico sobre tela, 1996

05 outubro 2020

O Banquete | Platão

 O que distingue eros de outros termos, também traduzíveis por "amor", como philia (amor/amizade) ou ágape (amor/afeição), é o cambiante típico de impulsividade e sobreposse, cujo potencial destrutivo a tragédia explora à saciedade, como é patente n'As Traquínias de Sófocles ou no Hipólito de Eurípides.

Independentemente desse cambiante, que passaria talvez despercebido no uso comum, eros é sempre um sentimento que mobiliza as forças da psique humana na prossecução de um objetivo - de algo que se quer ter ou dominar (…)

Sabe-se que a passagem do jantar à bebida era acompanhada de libações, preces e cânticos; seguidamente fixava-se um programa, estabelecendo-se não só o modo de beber mas também os assuntos que regulariam a conversação; um presidente (symposiarkhos) velava pela execução do programa - papel que neste diálogo será primeiro desempenhado por Fedro, o "pai do assunto", e mais tarde por Alcibíades. Por outro lado, era costume o dono da casa proporcionar aos seus hóspedes espectáculos variados e divertidos em que intervinham a tocadora de flauta, a dançarina ou mesmo uma companhia de artistas, como sucede em Xenofonte. O ambiente geral caracterizava-se pela boa disposição e liberdade, não raro terminando em orgia. (…)

… o amante (eron) é a parte activa da relação, competindo-lhe assumir as iniciativas e o encargo do aperfeiçoamento do amado (eromenos); a este cabe o papel meramente passivo, retribuindo o amor do amante com a philia, "amizade", e a obrigação de o gratificar (kharizesthai) em tudo o que lhe for solicitado. (…)

Com Aristófanes, penetramos numa esfera de sonho e idealidade onde a dynamis, "poder", do Amor se liberta de todas as suas implicações sociais e sociológicas para encontrar na physis humana a sua origem mais remota e verdadeira, e cujos padecimentos apenas eros pode curar. (…)

A realidade contraditória do Amor prefigura-se com o mito do seu nascimento (203 a-c), onde Platão alcança uma das suas mais belas e sugestivas criações artísticas: Eros, filho de Penia, a Pobreza, e de Poros, o deus Engenho, resume em si as qualidades antitéticas que opõem os seus progenitores: é por um lado pobre, o que equivale a dizer indigente e ignorante; por outro lado é rico, herdando do pai a sabedoria e o engenho que o levam a superar o estado natural de Pobreza, a sua mãe; ainda, o facto de ter sido concebido no dia do nascimento de Afrodite determina a sua natureza essencial como um "apaixonado do belo"(…)

Ao longo delas, o filósofo vai apreendendo, pelo amor, a beleza dos corpos, depois, a beleza das almas e dos conhecimentos, desviando-se a cada passo de um "belo objeto" para outro, onde lhe será possível gerar e produzir novos logoi, sucessivamente profundos e enriquecidos, pelos quais a sua ânsia de imortalidade se firma. É a revelação do Belo - o ser divino, simples e imutável - que culmina esta dialética ascendente do sensível ao inteligível. Pela sua contemplação e em união com ele (ephaptomenoi), o filósofo não só alcança gerar a verdadeira virtude (arete), mas ainda assegura uma imortalidade que lhe advém como prémio do seu esforço. (…) 

in: O Banquete, de Platão, Relógio d'Água Editores, 2018

03 setembro 2020

The Picture of Dorian Gray | Oscar Wilde

In the centre of the room, clamped to on an upright easel, stood the full-lenght portrait of a young man of extraordinary personal beauty, and in front of it, some little distance away, was sitting the artist himself, Basil Hallward, whose sudden disappearance some years ago caused, at the time, such public excitement, and gave rise to so many strange conjectures. 
(…)
'It is your best work, Basil, the best thing you have ever done', said Lord Henry, languidly. 
(…) 
'I don't think I shall send it anywhere,' he answered, tossing his head back in that odd way that used to make his friend laught at him at Oxford. 'No: I won´t send it anywhere. 
(…) 
'I know you will laugh at me,' he replied, but I really can´t exhibit it. I have put too much of myself into it.' 
(…) 
But beauty, real beauty ends where an intellectual expression begins. Intellect is in itself a mode of exaggeration, and destroys the harmony of any face. 
(…) 
Oh, I can't explain. When I like people immensely I never tell their names to anyone. It is like surrendering a part of them. I have grown to love secrecy. It seems to be one thing that can make modern life mysterious or marvellous to us. The commonest thing is delightfull if one only hides it. When I leave town now I never tell my people where I am going. If I did, I should lose all my pleasure. 
(…) 
I make a great difference between people. I choose my friends for their good looks, my acquaintances for their good characters, and my enemies for their good intellects. 
(…) 
An artist should create beautifull things, but should put nothing of his own life into them. 
(…) 
Because to influence a person is to give him one's own soul. 

 in: The Picture of Dorian Gray, by Oscar Wilde, Macmillan Collector's Library, London, 2017

03 agosto 2020

O Sol | Ponto de partida …




O Sol, ponto de partida, uma bola de fogo à arder! 
A terra, ponto azul, com os seus mares, oceanos e céu azul! 
A Lua, branca, tranquila, transparente por vezes! 
Três movimentos em contínuo e em sintonia harmoniosa. 
As cores quentes do Sol, desde o seu surgimento à sua sua partida.
A luz do dia e o surgimento do verde nas Árvores e nas Plantas.
O mar infinito de azuis, as ondas que vão e vêm … 
A distância, a proximidade, e o encadeamento destes movimentos constantes. 
As cores da Vida na Terra.

in: 16 Pinturas, de Ana Paula Gaspar, (Ecoline sobre papel Fabriano, 70 x 50 cm), Processo de pintar de Setembro de 2019 a Fevereiro de 2020. Com texto a 11 de julho de 2020.


13 julho 2020

Inteligência Emocional | Daniel Goleman

A última década, mau grado todas as más notícias, assistiu igualmente a um grande surto de estudos científicos relacionados com a emoção. Particularmente espectaculares são os vislumbres do cérebro a funcionar, tornando possíveis pelos novos métodos, como as recentes tecnologias de visualização do cérebro. Estes processos vieram tornar visível, pela primeira vez na história da humanidade, aquilo que sempre tinha sido uma fonte de profundo mistério: exactamente como esta intrincada massa de células funciona enquanto pensamos e sentimos, imaginamos e sonhamos. Esta vaga de dados neurobiológicos permite-nos compreender mais claramente que nunca como é que os centros de emoção do cérebro nos levam à raiva ou às lágrimas e como partes mais antigas desse cérebro, que tanto nos incitam à guerra como ao amor, podem ser canalizados para o melhor e para o pior. (…)
Para começar, o impulso é o meio através do qual a emoção se exprime; a semente de todo o impulso é um sentimento que quer traduzir-se em ação. Aqueles que estão à mercê do impulso - aos quais falta o autocontrole - sofrem de uma deficiência moral: a capacidade de controlar o impulso é a base da vontade e do carácter. Do mesmo modo, a raiz do altruísmo reside na empatia, na capacidade de ler as emoções dos outros; quem é incapaz de sentir as necessidades ou o desespero de outra pessoa, não pode amar. E se ha duas atitudes morais que os nossos tempos exigem, são precisamente estas, autodomínio e compaixão. (…)
A nossa herança genética dotou cada um de nós com um conjunto de estruturas emocionais que determinam o nosso carácter. Mas os circuitos do cérebro envolvidos são extraordinariamente maleáveis; o temperamento não é fatalidade. (…)
As nossas emoções, afirmam, guiam-nos quando temos de enfrentar situações e tarefas demasiado importantes para serem deixadas apenas a cargo do intelecto - perigo, grandes desgostos, persistir na prossecução de um objetivo mal-grado todas as frustrações, ligar-me-nos a um companheiro ou companheira, fundar uma família. (…) Para o melhor e para o pior, a inteligência pode não ter o mínimo valor quando as emoções falam. (…)
Tal como Freud descreve em O Mal-Estar da Civilização, a sociedade tem de impor do exterior regras destinadas a dominar as vagas de excesso emocional que surgem demasiado livremente no seu interior.
Mal-grado estas restrições sociais, as paixões estão permanentemente a sobrepor-se à razão. Esta constante da natureza humana decorre da arquitetura básica da vida mental. Em termos de concepção biológica do circuito neuronal de emoções básico, aquilo com que nascemos é o que resultou melhor para as últimas 50 000 gerações humanas, e não para as últimas 500, e certamente não para as últimas cinco. As forças lentas e deliberadas da evolução que moldaram as nossas emoções fizeram o seu trabalho ao longo de um milhão de anos; os últimos 10 000 - apesar de terem assistido à rápida ascensão da civilização humana e à explosão da população de cinco milhões para cinco biliões - quase não deixaram marca nas nossas matrizes biológicas para a vida emocional. (…)
A parte mais primitiva do cérebro, partilhada com todas as espécies que têm mais do que um sistema nervoso mínimo, é o tronco cerebral, que rodeia o topo da espinal medula. Este cérebro "de raiz" regula as funções básicas da vida, como respirar e o metabolismo dos outros órgãos do corpo, além de controlar as reações e movimentos estereotipados. (…) Este cérebro reinou como senhor absoluto durante a Era dos Répteis: imagine-se uma cobra a sibilar como sinal de uma ameaça de ataque. (…) Da raiz mais primitiva, o tronco cerebral, emergiram os centros emocionais. Milhões de anos mais tarde, a partir destas áreas emocionais, evoluiu o cérebro pensante, ou neocórtex, o grande bolbo de tecidos convolutos que constituem as camadas superiores. (…) Havia um cérebro emocional muito antes de aparecer o cérebro racional. 
A mais antiga raiz da nossa vida emocional reside no sentido do olfacto, ou mais precisamente, no lóbulo olfactivo, as células que captam e analisam os cheiros. (…) A partir do lóbulo olfactivo, começaram a evoluir os antigos centros da emoção … À medida que evoluía, o sistema límbico refinava duas ferramentas muito poderosas: a aprendizagem e a memória. (…)
Há cerca de 100 milhões de anos, o cérebro dos mamíferos deu um novo e grande salto em frente. Por cima das duas camadas gémeas do córtex - as regiões que planeiam, compreendem o que é sentido, coordenam os movimentos - foram acrescentadas várias novas camadas de células cerebrais, que vieram formar o neocórtex … O neocórtex do Homo sapiens, maior que o de qualquer outra espécie, trouxe consigo tudo o que é distintamente humano. O neocórtex é a sede do pensamento; contém os centros que integram e compreendem aquilo que os sentidos captam. Acrescenta a um sentimento aquilo que pensamos a respeito dele - e permite-nos ter sentimentos a respeito de ideias, arte, símbolos, imaginações. (…) À medida que subimos na escala filogenética, de réptil para macaco Rhesus para ser humano, aumenta a massa do neocórtex; este acréscimo determina um aumento em progressão geométrica das interligações dos circuitos cerebrais. Quanto maior é o número destas ligações, mais vasta a gama de respostas possíveis. O neocórtex é o responsável pelas subtilezas e complexidades da vida emocional, como a capacidade de ter sentimentos a respeito dos nossos sentimentos. (…)
As lágrimas, um sinal emocional único da espécie humana, são desencadeadas pela amígdala e por uma estrutura que lhe fica próxima, o gyrus cingulado; ser-se acariciado, abraçado ou de qualquer outra maneira confortado acalma estas áreas do cérebro, pondo fim ao choro. (…) A arte de nos acalmarmos a nós mesmos é uma habilidade fundamental da vida. (…) 
De todos os estados de espírito a que as pessoas procuram escapar, a raiva parece ser a mais intransigente; a ira é a mais sedutora das emoções negativas; (…) Ao contrário da tristeza, a raiva dá energia, é excitante. (…) Os benefícios intelectuais de uma boa gargalhada tornam-se sobretudo evidentes quando se trata de resolver um problema que exige uma solução criativa. (…) A realização criativa depende de uma imersão total e exclusiva. (…)
A empatia nasce da autoconsciência; quanto mais abertos formos às nossas próprias emoções, mais capazes seremos de ler os sentimentos dos outros.
Os custos emocionais, ao longo da vida, da falta de sincronização durante a infância podem ser muito pesados - e não apenas para a criança. (…) As emoções são contagiosas. (…) Em cada encontro que temos emitimos sinais emocionais, e esses sinais afectam quem está connosco. Quanto mais hábeis somos socialmente, melhor controlamos os sinais que emitimos …
Robert Ader, um psicólogo, descobriu que o sistema imunológico, a exemplo do cérebro, é capaz de aprender. (…) O sistema imunológico é, nas palavras do neurocientista Francisco Varela, da École Polytechnique de Paris, o cérebro do corpo, definindo-lhe o sentido de identidade própria - aquilo que lhe pertence e o que lhe é alheio. As células imunológicas viajam por todo o corpo através da circulação sanguínea, contactando com praticamente todas as outras células. Deixam em paz as que reconhecem, atacam as desconhecidas. Este ataque defende-nos contra os vírus, as bactérias e o cancro, ou, se as células imunológicas identificaram erradamente como "intrusas" outras células do próprio corpo, provoca uma doença auto-imunológica como uma alergia ou lúpus. (…) 
Acresce sons de silêncio à lista dos riscos emocionais para a saúde e inclua laços emocionais na lista dos factores protectivos. (…) O poder do isolamento como factor de risco de mortalidade - e o poder curativo das relações íntimas. (…)
A aprendizagem emocional começa nos primeiros momentos da vida e continua ao longo de toda a infância. (…)
A demonstração clássica do impacto da experiência no crescimento do cérebro foi feita por Thorsten Wiesel e David Hubel, ambos neurocientistas galardoados com o Prémio Nobel. Wiesel e Hubel demonstraram que no caso dos gatos e dos macacos há um período crítico, durante os primeiros meses de vida, para o desenvolvimento das sinapses que transportam sinais do olho até ao córtex visual, onde esses sinais são interpretados. (…) Nos seres humanos, o período crítico equivalente para a visão corresponde aos primeiros seis anos de vida. (…)
Os estudos com ratos 'ricos' e 'pobres' proporcionam-nos uma demonstração vívida do impacte da experiência no cérebro em desenvolvimento. Os ratos 'ricos' viviam em pequenos grupos em gaiolas bem fornecidas de 'divertimento para ratos', como escadas e rodas. Os ratos 'pobres' viviam em gaiolas iguais, mas vazias e desprovidas de qualquer espécie de diversão. Ao longo de um período de meses, o neocórtex dos ratos ricos desenvolveu uma rede muitíssimo mais complexa de circuitos sinápticos entre os neurónios; os circuitos neuronais dos ratos pobres eram, em comparação, muito mais esparsos. A diferença era tão grande que os ratos ricos tinham cérebros mais pesados e eram, talvez sem surpresa, mais hábeis do que os pobres a resolver problemas de labirintos. Experiências feitas com macacos resultaram nas mesmas diferenças entre 'ricos' e 'pobres' em experiência, e o mesmo efeito ocorre seguramente com seres humanos.  

in: Inteligência Emocional, de Daniel Goleman, Lisboa, Círculo de Leitores, 2010

01 junho 2020

Pintura em Quarentena | Março e Abril 2020


Pandemia Covid 19 
Março de 2020 em Portugal.
Ficar em casa.
Trabalhar em casa e isolamento social.

No meu caso Ensino à Distância.
Reflexão neste período: 
Agora não preciso de carro, de roupa cara, de viajar, de perfume ou de qualquer tipo de ostentação.
Preciso de dormir, comer pouco, de conversar, de partilhar, de amizades, de observar o planeta Terra e sobretudo de respirar!

É tudo mais simples.
É esta a simplicidade da Vida!
A sabedoria de viver e aprender a desfrutar…

Assim, nasceram 60 pinturas neste período.
60 dias = 60 pinturas de paisagens.
Correspondente ao início do período da Primavera de 2020.



in: Paisagens, Ecoline sobre papel, de Ana Paula Gaspar, Março e Abril de 2020.

03 maio 2020

O Culto do Chá | Wenceslau de Moraes

(…)
Consta mais que, em certa noite, as pálpebras se lhe cerraram de fadiga, e o bom Darumá deixou-se adormecer, para só acordar pela manhã. Então, pedindo a alguém uma tesoura ou instrumento parecido, cortou a si próprio as pálpebras indignas e arremessou-as ao solo, num gesto de despeito … As pálpebras, por milagre, enraizaram, dando nascença a um gracioso arbusto nunca visto, que medrou mui de pronto e cujas folhas, tratadas de infusão pela água quente, foram um remédio precioso contra o sono e contra o cansaço das vigílias. Estava conhecido o chá; tem pois na China a sua origem, e é coisa santa, como se acaba de provar. Crê quem quer; mas devo advertir que este livro foi escrito para crentes.
Da China, veio o chá para as terras de Nippon, mas não se sabe quando.
Velhas crónicas mencionam (no dizer dos entendidos neste caso melindroso) que, em 729 da era cristã, durante uma festa religiosa de espavento, o imperador Shomu oferecia chá a bonzos de alta jerarquia; mas fica-se ignorando se já antes seria conhecido … Parece que um bom abade budista, Dengyo Daishi, foi o primeiro que obteve a planta em solo japonês, em 805; o chá era então já uma beberagem favorita entre os bonzos chineses, que dela se serviam durante as vigílias prolongadas das suas práticas noturnas. Mais recentemente, ainda outro bonzo, Eisei, tendo ido à China, de lá voltou, trazendo as sementes preciosas, e no monte Sefuri, em Chikuzen, cuidou da sua sementeira. Pouco depois, ainda mais outro bonzo (sempre os bonzos!) de nome Mioyé, colhendo de Eisei os vários segredos de cultura, novas sementes adquiriu, e em Toga-no-o e em Uji, lugares vizinhos de Quioto, atentamente se entreteve em cultivar o chá; em Uji, de preferência, foram os resultados excelentes. Dois séculos depois, cerca de 1400, o shogun (generalíssimo) Ashikawa Yoshimitsu imprimiu vigoroso impulso às plantações de Uji, as quais tanto foram prosperando, mercê da riqueza do torrão, que de então até hoje o chá daquele sítio tem sido celebrado como o melhor de todo o Império; dele exclusivamente se serve o imperador.
O Japão é a terra das camélias …
(…)
Passando, em horas de ócio, junto dos campos de chá, dos quais sinto prazer em acercar-me, palestro com os aldeões e aprendo noções várias respeitantes à delicada planta. Não pode ser transplantada, nem se multiplica por estacas ou por enxerto, só por sementeira se propaga. Os países quentes, como os países frios, são-lhe nocivos; prospera nos climas temperados, nos sítios lavados de ar e de luz, vizinhos dos cursos de água, convindo um ligeiro declive ao solo de cultura. Os arbustos são dispostos em renques paralelos, de norte a sul, para que o sol lhes bata em cheio desde pela manhã até à noite; … No fim de quatro anos, já o arbusto se presta à primeira colheita; mas são as velhas plantas, de cem anos, de duzentos anos, as que melhor produzem.
(…)
Quem quiser tomar conhecimento com a planta de chá, nas melhores condições de prosperidade e em mais belas galas de aspecto pitoresco, tem de ir até Uji, distante quinze milhas de Quioto; escolhendo de preferência um dos primeiros dias de Maio, quando os rebentos novos começam vicejando, o que marca o início da faina da colheita. Faina e festa;
(…)
As moças de Uji estreiam kimonos novos para o caso, arregaçando as mangas com fitas escarlates; amarram em turbante em volta dos cabelos toalhas de cor azul-e-branca; e assim, esbeltas, graciosíssimas, em ranchos de dez, de doze companheiras, dirigirem-se ao trabalho. É então um encanto para os olhos ir a gente surpreende-las no afã do seu mister, dispersas pelas campinas fora, como borboletas; indo de um ramo a outro ramo, de um arbusto a outro arbusto, por vezes ocultando-se entre o verde mais denso da folhagem. Os dedos róseos, miudinhos, a escorrerem de orvalho e multiplicando-se em gestos delicados, vão colhendo os rebentos tenros do chá e atirando-os a grandes ceiras dispostas pelo chão;
(…)
No Japão, toda a gente toma chá - ricos e pobres, nobres e plebeus - bebe-se na ocasião das refeições e a toda a hora, a pequeninos goles. No lar, quando entra o visitante, oferece-se-lhe, após as reverências, uma almofada de regalo e uma chávena de chá.
(…)
Nos templos famosos, em Quioto, por exemplo, o bonzo oferece chá ao peregrino antes de lhe mostrar as relíquias e os museus.
(…)
Um restaurante, na pitoresca linguagem japonesa, diz-se uma Chaya - que quer dizer - casa de chá. De sorte que a chávena de chá, que acompanha os bons dias dados a quem chega, não constitui simplesmente uma norma rotineira, um hábito banal, tornou-se como um símbolo da doce hospitalidade japonesa, um rito de bonomia desta gente, exercido religiosamente entre amigos, entre estranhos também, porque ao estranho, que larga à porta as sandálias, vem ao nosso lar e nos saúda, deve-se já um sorriso e a sua parte de conforto.
Na casa, nua de móveis, porém mimosa de asseios requintados, figura sempre o braseiro sobre a esteira, e nas brasas vai fervilhando a chaleira de ferro cheia de água; o Bon (uma bandeja) está cerca, contendo o bule, as cinco chávenas (cinco porquê? talvez por serem cinco os dedos em cada mãozita japonesa), os cinco pires de madeira ou de metal, o cofre de estanho contendo o chá em folhas e ainda o pequenino recipiente em porcelana chamado yuzamashi, cuja ordinária serventia vai muito em breve conhecer-se. O sentido artístico japonês deprava-se naturalmente na indústria de hoje, em grande parte com destino à exportação para a Europa e para a América;
(…)
O Chá japonês tem a virtude de mitigar a sede. Assim se explica o hábito dos japoneses não beberem água; mesmo na força dos calores, em pleno Agosto, a chávena de chá, saboreada a goles, lhes dá pleno consolo. Aponta-se-lhe mais outros condões: excita ligeiramente o organismo, combate o cansaço das vigílias, predispõe ao bem-estar, infiltra no cérebro não sei que subtil embriaguez, lúcida todavia, que nos torna mais afectivos às sensações de agrado e mais aptos às elaborações do pensamento.

in: O Culto do Chá, de Wenceslau de Moraes, Relógio d'Água Editores, Lisboa, 2008

10 abril 2020

Da Velhice | Cícero

Por conseguinte, se é hábito vosso admirar a minha sabedoria- que oxalá seja digna da nossa estima e do nosso cognome - nós, que seguimos a natureza, o melhor dos guias, e a ela obedecemos como a um deus, somos realmente sábios.
Os velhos que foram com efeito moderados, sem nunca terem sido difíceis ou desumanos, têm uma velhice que pode ser tolerada; por outro lado, a má índole e a desumanidade são dolorosas para qualquer idade.
(…)
O mesmo pode dizer-se da velhice: na verdade, nem pode a velhice ser agradável para o sábio no meio da maior indigência, nem para o ignorante, ainda que rodeado da maior riqueza. (…) Quando já se viveu o bastante, produzem frutos extraordinários, porque não só nunca nos abandonam, e muito menos no final da vida …
Górgias de Leontinos, chegou até aos cento e sete e nem uma só vez abandonou a leitura e o estudo, o qual, como lhe tivessem perguntado porque razão amava tanto a vida, respondeu: "nada vejo que me leve a acusar a velhice" - resposta brilhante, digna de um homem esclarecido. (…) Os insensatos, com efeito, atribuem à velhice os seus próprios defeitos e a sua própria culpa.
(…)
Como é evidente a temeridade é própria da idade que floresce, enquanto a prudência, da que envelhece. (…) Mas a memória enfraquece - assim creio, se não a exercitares ou se fores naturalmente lento de raciocínio.
Sófocles escreveu tragédias até uma idade muito avançada …
Assim como admiramos um jovem em que existe algo de velho, da mesma maneira o fazemos com um velho no qual persiste algo de jovem. Quem adoptar tal postura, poderá envelhecer de corpo, mas, nunca de espírito.
Estou profundamente grato à velhice por ter aumentado em mim o desejo de conversar afastando-me do apetite pela bebida e pela comida.
(…)
Os cabelos brancos não ganham prestígio de repente, nem tão pouco as rugas; mas, uma vida honesta e sabiamente gerida colhe sempre do prestígio os melhores frutos.
(…)
Como na vida, assim no Teatro podemos bem entender a cena entre os dois irmãos em Os Irmãos: a rudeza de um perante a doçura de outro! E de facto assim é: como acontece com o vinho, do mesmo modo nem toda a Natureza se azeda devido à velhice.
Na verdade, encontra-se nos velhos o pensamento, a sensatez e a sabedoria, sem os quais os estados não poderiam absolutamente existir.
(…)
Como já disse tanta vez, a memória e a abundância de bens adquiridos são os frutos da velhice. Tudo o que é, com efeito, conforme com a natureza deve ser tido como bom. Que existe de mais conforme à natureza se não for a morte dos velhos? Quando a mesma ceifa a vida dos jovens, a natureza opõe-se e tenta resistir. (…) Os frutos das árvores se ainda não amadureceram, têm de ser arrancados com força, mas se já estão maduros ou ressequidos pelo sol, caem naturalmente- assim é a vida arrancada aos jovens à força, e aos velhos, colhida naturalmente.
A velhice não é apenas doce, como ainda não causa sofrimento, além de ser também jovial. (…) É, porém, ao homem possível extinguir-se no momento oportuno: a natureza, como acontece todas as outras coisas, sabe quanto devemos viver.

in: Catão-O-Velho ou Da Velhice, de Marco Túlio Cícero, Biblioteca Editores Independentes, 2009

03 abril 2020

Da Vaidade | Montaigne



Desde quando escrevemos tanto senão desde que nos encontremos em apuros?
Desde quando os romanos o fizeram senão depois da sua ruína?
(…)
As prosperidades servem-se de disciplina e aprendizagem, como aos outros as adversidades e as vergastadas. (…) Os homens não se tornam pessoas de bem senão na adversidade. (…) Entre as condições humanas, esta é a mais comum: agradamo-nos mais com as coisas estrangeiras do que com as nossas e gostamos de agitação e de mudanças. (…) Aqueles que seguem o outro extremo, o de se asilar em si mesmos, o de estimar o que se consideram acima do resto.
(…)
 Entreguei-me tardiamente ao governo da minha propriedade. Aqueles que a natureza fez nascer antes de mim libertaram-me dessa tarefa durante muito tempo.
Na pior das hipóteses corri sempre pela diminuição da despesa perante a pobreza. (…) A solução que tenho em minha casa é a de, para gastar sem conta e medida pelo meu lado, pelo outro poupar-se em tudo.
(…)
Não quero que o prazer do viajante corrompa o prazer do descanso; pelo contrário, entendo que se devem alimentar e ajudar um ao outro.
Escondo-me nas ocasiões em que me irrito e ignoro as coisas que estão mal. (…) De modo que, para fazer o menor mal possível, é necessário ajudar-se a si mesmo a esconder-se. Vãs picadas, vãs, mas picadas? (…)
A turba de pequenos males ofende mais que a violência de qualquer um, por maior que seja. À medida que estes espinhos domésticos se tornam incessantes e mais delgados, mordem-nos mais agudamente e sem aviso, com facilidade nos surpreendendo subitamente. (…) Não sou filósofo; os males oprimem-me conforme o seu peso; e pesam muito em função da forma e da matéria, e por vezes mais. Não possuo conhecimento que não seja o vulgar, ainda que tenha muita paciência.
(…)
É esta coisa terna e agradável que é a vida que perturba. "Ninguém resiste, se cedeu ao primeiro impulso" (Séneca, Carta 13).
A minha atitude é mera tolice, ou mais estúpida do que gloriosa. Preferia ser um bom escudeiro do que ser um bom pensador.
(…)
Contento-me em fruir o mundo, sem me apressar, em viver uma vida apenas justificável, e que simplesmente não me pese a mim nem a qualquer outro.
"Nunca fruímos plenamente dos frutos de génio, da virtude e de toda e qualquer superioridade senão quando os partilhamos com os nossos amigos mais próximos." (Cícero)
(…)
Mas como? Vivemos num mundo em que a lealdade dos próprios filhos é um enigma.
O que quer que seja, ou arte ou natureza, que nos imprime esta condição de viver em relação como outro, faz-nos muito mais mal do que bem. Defraudamos as nossas próprias valias, para exibir aparências à opinião corrente. De facto, qualquer que seja o nosso ser em nós, importa-nos muito o modo como ele se apresenta ao conhecimento público. Os próprios bens de espírito e a sabedoria parecem -nos inférteis se forem apenas desfrutados por nós e se não se apresentarem à vista e à aprovação dos estranhos.
A necessidade harmoniza os homens e une-os. Esta ligação fortuita transforma-se depois em lei.
(…)
Em todos os nossos êxitos, comparamo-nos a quem está acima de nós e olhamos para eles que são melhores. Comparamo-nos ao que está abaixo de nós.
(…)
Dia a dia a minha memória piora cruelmente. (…) Não me defendo nada das minhas fantasias.
(…)
O reconhecimento público proporcionou-me um pouco mais de audácia do que não estava à espera, mas o meu maior receio é de me embriagar …
Não te prendas a mim, leitor, por aqueles temas que se derramam aqui pela imaginação ou descuido de outrem; cada mão, cada autor, transmite os seus. Não me meto na ortografia (…) nem na pontuação; sou pouco conhecedor de uma de outra.
(…)
Se a ação não possuir algum esplendor de liberdade não tem qualquer graça nem virtude. (…) Para onde a necessidade me arrasta, gosto de libertar a vontade "porque, nas ações impostas, há maior reconhecimento para aquele que ordena que para aquele que executa" (…) sei de quem siga esta atitude até à injustiça.
(…)
Conheço-me bem.
Por tudo isto ganhei um ódio mortal a ficar presa quer do outro quer de mim mesmo.
Endurecemos relativamente a tudo o que nos acostumamos.
(…)
Sei que a amizade tem uns braços suficientemente compridos para se agarrar e juntar num canto ao outro do mundo. (…) Os estóicos afirmam, e bem, que existe uma grande aliança e relação entre os sábios, de tal modo que aquele que janta em França alimenta o seu companheiro no Egipto; e que estendendo apenas um dedo, ou o que quer que seja, todos os sábios sobre a Terra habitável, sentem a sua proteção. (…)
A decrepitude é uma categoria solitária. Sou sociável até ao excesso. Se, doravante, me parecer razoável que me afaste da vista do mundo a minha inconveniência e que deva retirar-me ficando a sós comigo mesmo, entrarei em inactividade e recolher-me-ei na minha carcaça, como as tartarugas. Aprendo a observar os homens sem me deter neles.
Escrevo o meu livro para poucas pessoas e há poucos anos.
Quero ficar alojado num lugar que me seja íntimo, sem ruídos, limpo, arejado e sem fumos. Procuro acarinhar a morte através destas situações frívolas…
(…)
Deixei alguma coisa para ver atrás de mim?
Volto atrás: este é sempre o meu caminho. Nunca traço nenhuma linha, nem recta, nem curva. Não encontro nada onde vou, foi o que me disseram. (Como acontece muitas vezes, as avaliações dos outros não estão de acordo com as minhas, por isso considero-as, na maioria, falsas) não lastimo o meu esforço: aprendi que o que dizem não me interessa. (…)
A diversidade de modos de uma nação para outra toca-me apenas pelo prazer da variedade. Cada terra com seu uso, cada roca com seu fuso. Sejam pratos de estanho, de madeira ou de argila, as refeições cozido ou assado, com manteiga ou azeite, quentes ou frias, para mim tudo é uno. (…) Tenho vergonha de ver os homens arrebentados … Bem que se diz que um homem de sociedade, é um homem heterogéneo. (…) Pelo contrário, viajo para o estrangeiro bastante farto dos nossos hábitos … procuro mais os gregos e os persas; aproximo-me deles, estimo-os; é a isso que me presto e me entrego. E o mais interessante, é que me parece que não descobri nenhuns modos que não sejam tão válidos como os nossos … nenhum prazer tem efeito sobre mim sem comunicação.
(…)
Quem não pretende ser tolo, precisa de ter uma dose de loucura, assegurar quer os preceitos dos nossos mestres, quer ainda mais os seus exemplos.
Quem não prefere não ser lido, a sê-lo de forma adormecida e fugidia?
(…)
Aristóteles gabava-se de qualquer lugar o comover: viciosa comoção.
Pelo contrário, empenho-me em fazer valer a própria vaidade e a estupidez se elas me dão prazer, e deixo-me ir atrás das minhas inclinações naturais sem as controlar de muito perto. (…) Das coisas que em qualquer lugar são grandes e extraordinárias, admiro mesmo as partes mais simples.
(…)
O que tenho de pouco neste mundo e nesta vida deve-se a mim mesmo.
Não possuo especificamente nenhum bem essencial e sólido que não deva à sua generosidade. Ela não é uma coisa só, tão vazia e necessitada como tu, que abraças o Universo.

in: Da Vaidade, de Michel de Montaigne, Ática, 2010

03 março 2020

Eu Dou Dinamite! | Sue Prideaux

Invulgarmente sensível à música … os antepassados de Nietzsche eram gente modesta da Saxônia, camponeses (…) a família de Nietzsche tinha de facto uma forte tendência para a instabilidade mental e neurológica.
«Desde a infância que procurei a solidão, e era nos momentos em que conseguia entregar-me a mim mesmo sem que me perturbassem que me sentia melhor. E isso acontecia geralmente no templo ao ar livre da natureza, que era a minha verdadeira alegria. (…) da minha seriedade (…) quando tinha doze anos invoquei para mim mesmo uma trindade maravilhosa … foi assim que comecei a filosofar.»
(…)
… as guerras religiosas dos anos 1500 e 1600. Quando a luta terminou e o catolicismo romano foi rejeitado, o príncipe-eleitor da Saxônia, que apoiara Martinho Lutero … foi uma das mais importantes escolas de latim fundada em 1528 … acrescentou o ensino do hebraico ao latim e ao grego. (…)
… o Bund alemão moldado com base na estrutura da Grécia antiga: um sistema de pequenos Estados que existiam separada e criativamente no seio da unidade artística e intelectual. (…) O conhecimento era evolutivo, com ele vinha a Bildung, a evolução do próprio estudioso, um processo de crescimento espiritual mediante a aquisição de conhecimento, que Von Humboldt descrevia como uma interação harmoniosa entre a personalidade e a natureza do próprio estudante. (…)
A sua paixão pela música, manteve-se … reuniam-se em volta do rapaz corpulento de óculos grossos e cabelo comprido puxado para trás, sentado desajeitadamente no banco do piano. (…) A teoria herética da evolução, de Darwin … e três pensadores que iriam inquietar o seu pensamento criativo durante anos: Emerson, o filósofo e poeta grego Empedocles, e o filósofo e poeta alemão Fried. Holderlin. (…)
«Se quiseres alcançar a paz de espírito e a felicidade, então tem fé, se quiseres ser um discípulo da verdade, então procura. (…) Toda a vida é um anseio por um estado impossível e por conseguinte toda a vida é um sofrimento.» (…)
Schopenhauer, por outro lado foi profundamente influenciado pelo estudo das filosofias budista e hindu com ênfase de renúncia no sofrimento, destino e fado, e no facto de os desejos, quando satisfeitos, só darem origem a novos desejos. (…) Para Schopenhauer, a música era única arte capaz de revelar a verdade acerca da natureza do próprio ser.
«O sublime não deverá ser procurado nas coisas da natureza, mas sim nas nossas próprias ideias.»
(…) Burckhardt e Wagner viriam a ser duas grandes influências no pensamento de Nietzsche nos anos seguintes.
… Tal como a procriação depende da dualidade dos sexos, também o desenvolvimento contínuo da arte e da cultura, ao longo das épocas depende da dualidade do apolíneo e do dionisíaco. Tal como os dois sexos, estão envolvidos numa luta constante apenas interrompida por períodos temporários de reconciliação. (…) As qualidades de Apolo podem ser resumidas … ao aparente … representação … O mundo de Apolo é constituído por indivíduos morais, racionais (…) As artes que pertencem a Dionísio são a música e a tragédia. Na Grécia antiga, como homem e animal. Representava um mundo encantado de experiências extraordinárias que transcendia as fronteiras existenciais. Deus do vinho … da loucura ritual e de êxtase, do teatro, da máscara, da imitação e da ilusão … transformados por ela. (…) A música e a tragédia são capazes de apagar o espírito individual e de despertar impulsos … enquanto o espírito é transportado … Embriaguez, música, canto e dança eram as actividades onde o principium individuationis se perdia. Estava aqui a resposta dionisíaca ao sofrimento da vida.
(…)
Nietzsche sabia que a sua Lhama era uma mulher inteligente. E tratava-a como tal. Nisso, era alguém fora do comum para a sua época. Durante toda a sua vida valorizou as mulheres inteligentes e estabeleceu amizades próximas e douradoras com elas. Só se apaixonou por mulheres inteligentes - a começar por Cosima - Não gostava de mulheres ignorantes e preconceituosas. (…)
O seu Seminário sobre Safo foi cancelado devido à falta de participantes. (…)
«O educador tem de ajudar o aluno a conhecer o seu próprio caráter.» (…)
Mas agora neste volume, a sua escrita foi beber tanto à elegância de Schopenhauer como à humanidade de Montaigne.
«Que a alma jovem contemple a sua vida passada com a pergunta: que amaste verdadeiramente até agora, que atraiu a tua alma para cima, que a dominou, e ao mesmo tempo a abençou?»
(…)
Mas para si escreveu de uma forma diferente, confessando que estremecia ao pensar que poderia ter morrido sem ver o mundo mediterrânico.
Paul Rée tinha menos cinco anos que Nietzsche e era filho de um comerciante judeu rico; não precisava de ganhar a vida e tornou-se uma espécie de estudante eterno, frequentando várias universidades, onde estudou direito, psicologia e fisiologia. Terminara o seu doutoramento em filosofia no ano anterior. (…) A mera ideia de culpa ou transgressão estava errada … o ensino altera o nosso comportamento, mas não o nosso carácter. A religião nasce do medo da natureza, a moral do medo dos seres humanos.
(…)
«A qualidade mais importante numa esposa (depois do dinheiro) era uma mulher com quem pudesse ter conversas inteligentes até à velhice. (…) O casamento embora realmente desejável, é a coisa mais improvável- sei-o muito claramente.»
Caminhando oito a dez horas por dia.
Ficar em silêncio.
Agora os ataques incluíam amiúde três dias de dor atroz e vómitos, acompanhados pela sensação de estar paralisado, náuseas … ataques súbitos de rara felicidade com uma intensidade …
«A loucura era a liberdade total … se a loucura não foi atribuída tem de ser assumida … A loucura para que possa finalmente acreditar apenas em mim!»
Durante vários dias se alimentava de frutos secos. Não tinha dinheiro para aquecer o quarto. Mas, mal surgia o sol (…)
Rée ficou imediatamente impressionado com a personalidade de Lou Salomé, uma rapariga de vinte e um anos, cosmopolita, elegante … considerava que dizer a verdade é uma 'mesquinhez imposta'.
Poderia ser a descrição da relação entre Lou e o seu venerado Professor mais velho e do efeito traumático (…) As pessoas que pensam profundamente sentem que são comediantes na sua relação com os outros, porque primeiro têm de simular uma superfície para serem entendidas.
… e frase de Píndaro, "Torna-te o que és, depois de o teres aprendido." (…) Cada doença era uma morte, um mergulho fundo no Hades. Cada recuperação um alegre renascer, uma regeneração. Este modo de vida refresca-o. (…) Lou não tinha qualquer dúvida que ele era a causa da sua doença.
A mãe de Lou alertou Nietzsche claramente em relação à sua filha. Lou era incontrolável e perigosa; era uma fantasia louca.
Mais tarde, escreveu a Lou: "Quando estava em Orta, concebi um plano para te conduzir, passo a passo, até à consequência final da minha filosofia - tu como a primeira pessoa que considerei preparada para tal". (…) Ambos descreveram quão similarmente pensavam e sentiam as coisas e como as palavras se precipitavam entre os dois. Tiravam as palavras, como se fossem alimento, da boca um do outro. A autoridade individual dissolvia-se enquanto terminavam os pensamentos e as frases um do outro. (…)
O seu único sofrimento, comentou a Ida, era a ideia de ser tão pouco conhecido e lido.
«Deus morreu! Deus continua morto. E nos matá-mo-lo. Como podemos consolar-nos, nós os assassinos.»
O Homem valorizava a grandeza humana por ser baseada numa perda do animalesco … sendo um animal superior … A partir de agora, as conclusões filosóficas basear-se-iam em observação e experiências empíricas. Também falaram do eterno retorno (…)
«Assim serei daqueles que tornam belas as coisas. Amor Fati (Amor do destino): que doravante seja esse o meu amor.»
… O homem a tornar-se ele mesmo, tinha de aderir ao destino … uma opinião fixa era uma opinião morta. (…) Ainda sofria daquilo a que chamava "doença da corrente", uma ligação emocional que te puxa para baixo no teu caminho para te tornares o ser que és.
«Pois, estou a ir realmente para a solidão total.»
Chegara a altura de se libertar da doença da corrente. (…) Passou sozinho o dia de natal.
«A não ser que consiga descobrir o artifício alquímico para transformar esta - imundície em ouro, estou perdido - a minha falta de confiança é agora imensa.» Confessou.
«Tenho aqui a mais esplêndida oportunidade de provar que, para mim, todas as experiências são úteis, todos os dias santos … e pelo Argonauta solitário que estivesse decido a naufragar … uma odisseia espiritual extática, poética, profética, através do mundo moral moderno … o antigo profeta persa Zaratustra desce a montanha depois da morte do conceito de Deus para …»
Vingança transformando "Foi assim", em "Assim o Desejei".
«Porque que te amo eternidade! (…) Sempre sentira que tinha uma missão …»
«Olha, estou farto da minha sabedoria, como uma abelha que recolheu demasiado mel; preciso de mãos estendidas… e eu tenho de ser perpetuamente a vítima de levar uma vida completamente escondida. Ir-me-ei abaixo, caso não aconteça algo …»
O querido Professor, meio cego.
«… Preveniu-a que era impossível estar isento de preconceitos.»
Zaratustra desenvolve os temas fundamentais da sua filosofia da maturidade: eterno retorno, autosuperação e tornarmo-nos o Ubermensch; através das violentas, mas misteriosas, visões que nos desafiam a pensarmos por nós próprios … e que aquilo que não o mata torna-o forte … um viajante que ruma a um destino que ainda não existe. Acolhe com prazer cada nova alvorada pela evolução do prazer que trará. (…) Empurra cada um de nós para a sua solução pessoal e independente.
«Quase todas as minhas relações humanas resultaram de ataques de uma sensação de isolamento … pura e simplesmente já não conseguia suportar mais a solidão … as minhas palavras tenham cores diferentes …»
«Escravizámo-nos a padres, a astrólogos e filósofos. A sua influência é grave e perigosa para a psicologia do homem. … O mais grave erro dos últimos 2000 anos foi a invenção do espírito puro, por Platão. … Os filósofos são os vendedores da banha da cobra da alma. … Todas as verdades são apenas interpretações pessoais. Não somos mais do que a nossa memória e os nossos estados mentais … A psicologia, e não o dogma, é a chave para dar sentido ao mundo. … Não devemos agarrar-nos a nada, nem sequer a um sentimento do nosso próprio desapego. Poucos são feitos para essa independência … O primeiro sacrifício humano à religião é o sacrifício da verdadeira natureza de cada um. (…) Como é que aceitámos de bom grado os valores judaico-cristão que nos transformaram em gado obediente? Porquê que adoptámos a moral do escravo? (…) Judeus e Cristãos terem sido escravos … invertendo os valores … riqueza e poder transformaram-se em sinónimos de mal. … O cristianismo era uma negação da vontade de viver e transformada em religião. O cristianismo odiava a vida e a natureza humana. (…) É uma neurose, uma necessidade de infligir dor a si mesmo e ao outro. (…) É o animal que se magoa contra as grades da sua jaula… A vontade de poder nunca está quieta, é dinâmica. Desde a infância que procuramos o poder (…) chamar, melhoramento à domesticação de um animal quase nos parece uma anedota!»
Com o seu espírito mais presente, também estava a fazer anotações sobre psicologia. Elaborou uma lista dos estados de transformação que configuram a nossa ânsia de vida. Era encabeçada pelo impulso sexual, a que se seguiam a embriaguez, as refeições e a primavera.
(…)
Na falta de um círculo de jantares de pessoas com afinidades … uma surpresa feliz surgiu sob a forma de uma carta da Dinamarca, do escritor Georges Brands … era importante crítico literário da Europa setentrional … costumava referir-se a ele como um anti-cristo …
Falou a Brandes no seu isolamento e citou as palavras de Ovídio que estavam gravadas no túmulo de Descartes Bene vixit qui bene latuit (Viveu bem quem bem se escondeu). (…) Sentia-se realmente como se viesse de um país onde não vivia mais ninguém.
Reitera os seus pensamentos relativos à desonestidade do cristianismo ao desvalorizar a vida da terra em comparação com a hipotética vida vindoura. Este favorecimento errado da eternidade de nuvem de algodão em detrimento do monte de lixo da realidade quotidiana alimentava o ressentiment, a mentalidade vingativa, invejosa e moralmente superior usada pelos sacerdotes para dominar populações completas que conseguiam reduzir à mentalidade de escravo.
Todo o mundo fictício da religião tinha as suas raízes no ódio à natureza e num profundo mal-estar em relação à realidade e, assim, todo o reinado da moral subsequente por todo o mundo cristão era invalidado, porque tudo se inseria neste conceito de causa e de efeito imaginários.
Lei contra o cristianismo … Guerra ao vício, até à morte: o vício é o cristianismo. (…) O local execrável onde o cristianismo chocou os seus ovos de basílico (Israel? Jerusalém?) deveria ser arrasado. Sendo o ponto mais depravado sobre a Terra, deveria ser o horror de toda a posteridade. Sobre ele deveriam ser criadas serpentes venenosas. (…) Aquele que prega a castidade é o verdadeiro pecador. (…)
A Piazza estava cheia de velhos cavalos cansados entre os varais das carroças e tipoias que esperavam passageiros: cavalos miseráveis cujas costelas se podiam contar a serem atormentadas para fazerem algo que se assemelhasse a trabalho pelos seus amos. Ao ver o cocheiro de uma tipoia a bater impiedosamente no seu cavalo, Nietzsche foi-se abaixo. Dominado pela paixão, a soluçar devido ao espectáculo, abraçou-se protectoramente ao pescoço do cavalo e desfaleceu. (…)
O Ubermensch como o resultado de um combate metafísico pessoal através da vontade de poder existente em todos e em tudo - embora o combate que retrata não seja necessariamente contra terceiros, mas contra as emoções mesquinhas dentro de cada um, como a inveja e o ressentimento.
(…)
O ano seguinte caracterizou-se por uma temível excitabilidade, rugidos e gritos, alternando com períodos de total prostração. Uma visita de Overbeck coincidiu com esta última. Encontrou Nietzsche na mesma posição física em que o encontrara em Turim, semi-enroscado num canto do sofá, o que lembrou a Overbeck um animal ferido mortalmente, encurralado e ansiando pela morte.
(…)
Nietzsche comunicara que queria descer à sepultura como um autêntico pagão. Quanto a música, queria apenas a sua versão do "Hino à Vida", de Lou. Nenhum ritual cristão. Acima de tudo, nenhum sacerdote. (…)
Elisabeth nunca compreendera o terramoto conceptual que se encontrava na base do pensamento do irmão.
(…)
Continua a ser um desafio perfeitamente moderno. Parte do encantado duradouro de Nietzsche talvez resida na sua relutância em nos dar uma resposta. Espera-se que encontremos o significado e a resposta, se é que existe, por nós próprios: é esta a verdadeira façanha do Ubermensch.
Pode rejeitar-se a ciência como fé; pode rejeitar-se a própria crença religiosa, mas conservar ainda valores morais. Primeiro, o homem tem de se tornar ele próprio. Em segundo lugar, amor fati; tem de aceitar o que a vida traz, evitando os becos sem saída do ódio a si mesmo e do Ressentiment. Então, finalmente, o homem pode subjugar-se a si mesmo para encontrar a verdadeira realização como o Ubermensch, o homem em paz consigo mesmo, que encontra a alegria na sua finalidade terrena, rejubilando com a pura magnificência da existência e conformado com a finitude da sua mortalidade.
(…)
Se visitar a Villa Silberblick hoje em dia, descobrirá que as árvores cresceram no jardim, escondendo a vista magnífica que deu nome à mansão. (…)
«Conheço o meu destino», escrevera. «Um dia associar-se-á ao meu nome a lembrança de algo temível- de uma crise como nenhuma outra anterior na Terra, da mais profunda colisão de consciência, de uma decisão proferida contra tudo aquilo em que, até então, se acreditara, fora exigido e santificado. Não sou um homem, sou dinamite.»

in: Eu Sou Dinamite!, de Sue Prideaux, Círculo de Leitores, 1ª Edição, Abril 2019
Ver Filme: Dias de Nietzsche em Turim, 1'24''

10 janeiro 2020

Amor | Lou Andreas Salome

“(…) para quem ama, o amor, por muito tempo e pela vida afora, é solidão, isolamento, cada vez mais intenso e profundo. O amor, antes de tudo, não é o que se chama entregar-se, confundir-se, unir-se a outra pessoa. […] O amor é uma ocasião sublime para o indivíduo amadurecer, tornar-se algo por si mesmo, tornar-se um mundo para si, por causa de um outro ser: é uma grande e ilimitada exigência que se lhe faz, uma escolha e um chamamento para longe.”
Excerto do livro “Os Sentidos da Paixão” – Ed.Cia das Letras, 1987
in: www.comunidadeculturaearte.com/lou-andreas-salome-o-filme-que-conta-a-historia-da-mulher-que-mexeu-com-os-coracoes-de-nietzsche-freud-e-rilke/