Aguarelas Finas, Le Corbusier | Maison La Roche, Paris

24 dezembro 2020

Fernando Pessoa | Sónia Louro

Lá não fiz nenhum amigo, tal como não os fiz em lado algum … É uma criança que gosta de se isolar - ouvi repetidamente ao longo da minha infância e adolescência. (…) Gostava de brincar só e sentia muitos impulsos de raiva, de quase ódio, e muito medo. Mas nunca me isolei, pelo menos não da vida imaginária.

Há dias, melhor, há noites, em que as memórias me afogam no mar que é a minha cama e sinto-me um náufrago agarrado como última esperança ao meu cobertor como a um toco. O Chevalier de Pas não vem em meu auxílio porque já não sou criança, embora me sinta mais indefeso do que então. Mas nessa altura era feliz porque não tinha consciência de nada: da minha fragilidade, da minha solidão e do amor que era meu e me levaram. Sou mais indefeso agora porque sei que o sou, era feliz então porque não sabia que o era. 

Desde hoje estou só, humanamente abandonado e só. Era a partir de hoje que estava só, embora soubesse que sempre tivesse estado. 

Fechei o negócio das máquinas pelo telefone, sem ver nada antes. Só como um louco faria, assomou à minha ida para Portalegre, onde as máquinas se encontravam. (…) O deserto do Alentejo, emoldurado pela janela do comboio na viagem para Portalegre para ir buscar as máquinas para a minha tipografia, inspiravam-me palavras que, esperançosamente, escrevia junto do papel para não as perder.

E todos os versos do universo, os que já foram escritos e os que todos os poetas ainda hão-de escrever, volteiam na minha cabeça, como que a zombar por eu não conseguir apanhar nenhum. E sinto-me invadido por uma epifania divina sem razão de deus: e se existir apenas um único verso, daí a razão por um universo se chamar "uni-verso" e por todos os meus versos terem o valor que têm?

Sinto um desvairamento tal, como se tivesse deixado de ser senhor da minha lucidez. Eu vivo preso num dilema sem solução: "A solidão desola-me; a companhia oprime-me". 

O artista deve nascer belo e elegante, pois o que cultua a beleza não deve ser ele mesmo feio. E é seguramente uma terrível dor para um artista não descobrir absolutamente em si mesmo aquilo por que ele luta. (…) Que me restava então a mim, que tinha nascido feio, senão tentar ser elegante? E, sendo elegante, parecer assim menos feio. 

Por mais que a arca se enchesse, a minha cabeça nunca se esvaziava e não conseguia compilar um livro de versos, nem concluir uma das várias novelas … Eu queria esvaziar a minha cabeça e por isso escrevia tudo, tudo … 

Arre! Que um rio nunca se esgota por mais que se deite para o mar. As palavras nunca cessam por mais que tentasse ver-me livre delas, despejando-as para o papel. (…) Ah, porquê todas estas palavras que não param se não as consigo escrever melhor? Porém, ainda que não as escrevesse melhor, o que seria de mim se não as escrevesse? Seria um rio que galga a terra e causa enchentes …?

in:  Fernando Pessoa, de Sonia Louro, Edições Saída de Emergência, Portugal