Aguarelas Finas, Le Corbusier | Maison La Roche, Paris

10 agosto 2019

A Náusea | Jean - Paul Sartre

Acho que fui eu que mudei: é a solução mais simples. A mais desagradável também. Mas, enfim, tenho de reconhecer que sou sujeito a estas transformações súbitas. Sucede que só muito raramente penso; assim uma infinidade de pequenas metamorfoses vai-se acumulando em mim sem eu dar por isso, e depois, um belo dia, produz-se uma verdadeira revolução. Foi o que deu à minha vida estes solavancos, este aspeto incoerente.
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Se não me engano, todos os sinais que se vão acumulando são precursores duma nova transformação brutal na minha vida, então tenho medo. Não que a minha vida seja rica, importante ou preciosa. Mas tenho medo do que vai nascer, apoderar-se de mim - e arrastar-me… para onde? Vou ter outra vez de partir, deixar tudo a meio, as minhas pesquisas, o meu livro? Voltarei a acordar daqui a alguns meses, daqui a alguns anos, derreado, desiludido, no meio de novas ruínas? Queria ver claramente o que se passa em mim, antes que seja tarde de mais.
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Eu então vivo sozinho, absolutamente sozinho. Nunca falo a ninguém; não me dão nada, não dou nada a ninguém.
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Dantes - mesmo muito tempo depois de me ter deixado - Anny inspirava os meus pensamentos, como se eu quisesse ser-lhe útil. Agora já não penso em ninguém; nem sequer me ocupo a procurar palavras. Mais ou menos depressa, uma corrente flui dentro de mim, mas não retenho nada, deixo andar. A maior parte das vezes, como não se prendem a palavras, os meus pensamentos ficam em estado de nevoeiro. Desenham formas vagas e engraçadas, depois imergem: e esqueço-me logo deles. … Quando se vive sozinho, deixa de se saber o que seja narrar: a verosimilhança desaparece ao mesmo tempo que os amigos. E os acontecimentos também: deixamo-los afundarem-se veem-se surgir bruscamente pessoas que se põem a falar e se retiram, mergulhamos em histórias sem pés nem cabeça: que execrável testemunha se seria nestes casos!
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Os objetos não deviam impressionar-nos o tato, visto que não vivem. Servimo-nos deles, pomo-los no seu lugar, vivemos no meio deles: são úteis, nada mais. E, a mim, os objetos tocam-me; é insuportável. Tenho medo de entrar em contacto com eles, como se fossem animais vivos.
Agora percebo; lembro-me melhor do que senti, no outro dia, à beira-mar, quando tinha a pedra na mão. Era uma espécie de enjoo adocicado. Que desagradável que era! E a sensação vinha da pedra, tenho a certeza, passava da pedra para as minhas mãos. Sim é isso, é exatamente isso: uma espécie de náusea nas mãos.
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Estou emocionado; sinto o meu corpo como uma máquina de precisão em descanso. Eu, sim, tive verdadeiras aventuras.
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Alguma coisa começa para acabar: a aventura não admite prolongamentos artificiais; só da sua morte lhe vem o sentido. Sem possibilidade de voltar atrás, sou arrastado para essa morte, que talvez seja também a minha. Cada instante só aparece para trazer os que se lhe seguem. Sinto-me ligado a cada um, do fundo do coração: sei que ele é único, insubstituível - e não faria, porém, um gesto para o impedir de voltar ao substituível - e não faria, porém, um gesto para o impedir de voltar ao nada.
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Viver é isto. Mas quando se conta a nossa vida, tudo muda.
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Como pude eu escrever ontem esta frase absurda e pomposa: "estava sozinho, mas caminhava"
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Pessoas que levaram a vida num torpor, meio a dormir; que se casaram precipitadamente, por impaciência, e fizeram filhos por acaso. Encontraram os outros homens nos cafés, nos enterros, nos casamentos.
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É preciso não ter medo.
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Mandar não é um direito da elite, é o seu principal dever.
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O Senhor é demasiado modesto. Para suportar a sua condição, a condição humana, precisa como toda a gente, de muita coragem.
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Uma árvore raspa a Terra por debaixo dos meus pés com uma unha negra … a existência penetra em mim. Não posso dizer que me sinta aliviado, nem contente; pelo contrário estou esmagado. A náusea sou eu.
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A última palavra perde-se na garganta.
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Vou sobrevivendo a mim própria. Sei que nunca mais encontrarei coisa nenhuma nem ninguém que me inspire paixão. Sabes? Pôr-se uma pessoa a amar alguém não é tarefa fácil. É preciso ter energia, uma generosidade. É preciso cegueira… Há um momento, logo ao princípio, em que se tem de saltar por cima dum precipício: quem reflete não salta- E eu sei que nunca mais saltarei.
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É isto, exatamente. Não há aventuras, não há momentos perfeitos.
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Anny está sozinha como eu.
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Mas isso só me interessava se Anny se tivesse entregado de todo o coração. Agora, nenhuma curiosidade me resta … Pequenos clarões de sol à superfície de um mar escuro e frio.
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Tenho um medo pavoroso de voltar à minha solidão.
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Só os safados é que julgam ganhar. Agora vou fazer como a Anny vou sobreviver. Comer, dormir - dormir, comer. Existir lentamente, suavemente, como aquelas árvores, como uma poça de água.
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As cidades só dispõem de um único dia, que volta igualzinho todas as manhãs. Aos domingos é que enfeitam um pouco mais. Que imbecis! Repugna-me pensar que vou voltar a ver-lhes as caras fechadas e aquietadas. Pessoas que legislam, que escrevem romances populistas, que se casam, que cometem a extrema tolice de fazer filhos.
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É da existência que tenho medo.
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Estava a começar a sua aprendizagem de solidão.
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Vou-me embora, sinto-me vago. Não me atrevo a tomar uma decisão. Se tivesse a certeza de ter talento… Mas, nunca - nunca, escrevi nada nesse género...  

in: A Náusea, de Jean-Paul Sartre, Porto Editora, 2018