Aguarelas Finas, Le Corbusier | Maison La Roche, Paris

29 dezembro 2023

Elogio da Loucura | Erasmo de Roterdão

Sou realmente, tal como me veem, aquela verdadeira repartidora de bens, à qual os Latinos chamam Loucura e os Gregos demência. (…)

Pois o espelho da alma nunca mente. (…) "As grandes orelhas denunciam a tolice" (…)

Em resumo: é necessário que o sábio recorra a mim, a mim insisto, se por ventura quer ser pai. (…)

A responsável pela propagação da espécie humana é aquela parte do corpo tão louca e tão ridícula que nem se pode a ela aludir sem provocar o riso. (…) qual a mulher que aceitaria casar-se se conhecesse ou pensasse nos perigos do parto (…)

Ora, esta vida porventura merece ser chamada vida, se dela retirarmos o prazer? (…)

Quantas brincadeiras não dá a conhecer Mercúrio com as suas artimanhas e furtos? (…)

Além disso, desterrou a razão para um canto reduzido da cabeça, deixando todo o resto do corpo entregue à desordem. (…)

Contra mim só por atribuir-lhes a loucura, eu que, além de mulher, sou a loucura. (…) devem agradecer à loucura o facto de a muitos títulos serem mais felizes do que os homens. (…) as faces das mulheres se apresentam sempre mimosas, a voz sempre fina, a pele aveludada, como se vivessem numa espécie de perpétua mocidade? (…) que outra coisa almejam nesta vida que não seja agradar acima de tudo aos homens? (…) Ora, porventura se recomendam mais aos olhos dos homens por outro título que não seja o de loucura? (…) nos disparates que o homem diz quando está com uma mulher e nas patetices que faz sempre que estiver determinado a gozar dos deleites da fêmea. (…) Não há qualquer dúvida de que, faltando o condimento da loucura, não há nada que seja agradável. (…)

Coisas que são indispensáveis no dia-a-dia, dir-se-ia que esse sábio é uma estaca e não um ser humano. A tal ponto não consegue ser útil nem para si mesmo (…) emigrar para um deserto e aí em solidão gozar da sua sabedoria.(…)

Na verdade são dois os principais obstáculos para se alcançar o conhecimento das coisas: a vergonha, que obscurece com fumo o espírito, e o medo, que diante do perigo dissuade de cometer as façanhas. (…)

São mais afortunadas as artes que possuem maior parentesco com a loucura (…)

O cavalo, tem emoções semelhantes às humanas, passou a viver nas proximidades dos homens, também partilha da infelicidade humana (…) A tal ponto em todos os aspectos é mais alegre aquilo que a natureza criou do que quanto a arte fingiu. (…)

Ó mui louco sábio, (…) E a tal ponto ninguém deseja fazer-lhe mal que até os animais ferozes se abstêm de atacá-los, movidos por uma espécie de instinto natural diante da inocência. É que estão verdadeiramente consagrados às divindades, sobretudo a mim, e por isso não é sem razão que todos assim o honram. (…)

E conheçam agora, e não é para voltar ao desprezo, o dote dos loucos: e é que só eles São sinceros e verdadeiros. (…) Tudo aquilo que um louco tem no peito, mostra-o no rosto e manifesta-o pela palavra. Ao passo que os sábios possuem duas línguas, consoante lembra o mesmo Eurípedes: com uma delas dizem a verdade e, com a outra, o que julgarem conveniente de acordo com a ocasião. (…)

Eu, a célebre loucura, sou a única que a todos abraço sem distinção com tão pronta bondade. (…) Nem misturo o céu com a terra se alguém convidando os demais deuses, me deixa em casa. (…) 

Devem-me menos os poetas, embora por inerência da sua função, façam parte da minha corporação, como uma raça livre (…)

A suprema sabedoria é fingir a propósito a loucura. (…)

Atribui a sabedoria exclusivamente a Deus, deixando a loucura a todos os homens. (…)

A demência dos amantes é de todas a mais feliz. Quem ama arrebatadamente já não vive em si, mas naquilo que ama (…) quanto mais perfeito é o amor maior é a felicidade. (…) 

O espírito há de ser assimilado de modo maravilhoso por aquele supremo entendimento, porque este é infinitamente mais poderoso. (…) A tal ponto o espiritual leva a vantagem sobre o corpo, o invisível sobre o visível. 

Ora se mostram alegres, ora abatidos, ora riem, ora suspiram, em suma: totalmente fora de si: logo a seguir voltam a si, dizem que não sabem onde estiveram, se no corpo ou fora do corpo, despertos ou a dormir. (…) vindoura felicidade. 

 

in: Elogio da Loucura, de Erasmo de Roterdão, Edições 70, Lisboa, Novembro 2023