Aguarelas Finas, Le Corbusier | Maison La Roche, Paris

20 novembro 2023

Semente | Poema

Sou como uma semente 
Que reúne em si  
Todos os nutrientes do mundo

Sou pura natureza
Força de existir

Sou em mim o mundo 
O mundo é em mim

É um ciclo de eterno retorno
É a eternidade em si

Numa semente única 
Que reúne em si 
Todas as sementes do mundo.

in: Poema: Semente, de Ana Gaspar, escrito: 6 Novembro 2023.

11 novembro 2023

Demónios | Fiódor Dostoiévski

 Maio atingira o seu auge, os anoiteceres eram espantosos. O sabugueiro estava em flor. Os dois amigos encontravam-se todos os fins de tarde no jardim e ficavam até à noite no pavilhão, expondo mutuamente sentimentos e ideias, desabafando um com o outro. Havia momentos poéticos. Varvara Petrovna, sob influência da mudança do seu destino, falava mais do que de costume. Parecia procurar apoio no coração do amigo, e assim continuou várias noites seguidas. Uma ideia estranha iluminou de repente Stepan Trofímovitch: "Não poderia ser que a viúva inconsolável contasse com ele e aguardasse que, ao fim do ano de luto, ele a pedisse em casamento?" (…)

A meu ver, mesmo na velhice tinha uma aparência muito imponente. Além disso, que velhice é a dos cinquenta e três anos? Porém, por uma espécie de picardia cívica, não só não se fazia de jovem como parecia exibir a maturidade dos seus anos e, com o seu fato, alto e magro, com o cabelo até aos ombros, parecia um patriarca, ou melhor, o retrato do poeta Kukolnik, numa qualquer litografia dos anos trinta, sobretudo quando, no verão, se sentara no banco do jardim ao pôr-do-sol, poeticamente pensativo, debaixo dos lilaseiros em flor, apoiando-se com ambas as mãos na bengala, com um livro aberto ao seu lado. Quanto aos livros, direi que nos últimos tempos começara a afastar-se da leitura. (…)

Apaixonou-se de imediato pelo retrato, como é hábito de todas as meninas de internatos apaixonarem-se pela primeira coisa que lhes cai debaixo de olho, incluindo professores, preponderantemente de caligrafia e desenho. (…)

O pobre do Stepan Trofímovitch estava sozinho, sem suspeitar de nada. Triste e pensativo, havia muito que espreitava pela janela, a ver se aparecia algum companheiro seu. Mas ninguém queria aparecer. Na rua chuviscava, em casa estava a ficar frio, era preciso acender o fogão; Stepan Trofímovitch suspirou. De súbito surgiu-lhe diante dos olhos uma visão terrível: Varava Petrovna, com este tempo e a esta hora insólita! E a pé! Ficou tão espantado que se esqueceu de mudar de roupa e a recebeu tal como andava por casa, com o seu habitual casaquinho cor-de-rosa forrado de algodão. 

- Ma bonne amie! … - Exclamou em voz alta, indo ao encontro dela.

- Ainda bem que está sozinho: detesto os seus amigos! Fuma demais; meu Deus, que ar se respira nesta casa! Ainda não acabou o seu chá e já passa das onze! Para si, a desordem é prazer! O seu deleite é a casa emporcalhada! Que papel rasgado é este? (…)

Dizem-me os senhores: mexericos … Mas será só um que grita? Toda a cidade grita, e eu apenas oiço e concordo: não é proibido concordar.

- A cidade grita? Grita o quê? (…)

Não descreverei a beleza de Lisaveta Nikoláevna. Já bastava toda a cidade apregoar a beleza dela, embora algumas das nossas meninas e senhoras não concordassem, com indignação, com quem assim apregoava. Entre elas havia mesmo algumas que já tinham ganhado ódio a Lisaveta Nikoláevna por causa do orgulho dela em primeiro lugar (…) Na nossa cidade, até ao momento, nunca houvera amazonas; era natural que o aparecimento de Lisaveta Nikoláevna passeando-se a cavalo, sem ainda sequer ter feito as devidas visitas, ofendia a sociedade. Aliás já todos sabiam que ela cavalgava por prescrição médica, por isso, ao falarem disso, referiam-se causticamente ao seu estado de saúde. De facto, estava doente. Uma coisa que se lhe notava ao primeiro olhar era a inquietude doentia, nervosa e permanente. (…) Transparecia-lhe do ardor dos olhos escuros um qualquer poder; apresentava-se sempre num jeito «de vencedora e para voltar a vencer». Parecia orgulhosa, até ousada às vezes; não sei se chegara a ser bondosa; mas sei que queria muito sê-lo e se esforçava, se atormentava neste sentido. Havia na sua natureza, sem dúvida, muitas aspirações maravilhosas e os desejos mais justos; mas era como se tudo nela andasse eternamente à procura da sua medida, sem a encontrar, como se tudo fosse caótico, e emocionado, inquieto. Talvez tivesse exigências demasiado rigorosas para consigo mesma e nunca encontrasse forças interiores para satisfazer tais exigências. Sentou-se no divã e pôs-se a observar a sala. (…)

O homem tem medo da morte porque gosta da vida, é assim que eu entendo.  

- Observei - E é assim que manda a natureza. (…)

Quem se matar apenas para matar o medo, torna-se Deus, logo. (…)

«Se quiseres vencer o mundo, vence primeiro a ti próprio» (…)

Oh meu amigo, o matrimónio é a morte, moral de qualquer alma orgulhosa, de qualquer independência. A vida de casado vai depravar-me, sugar-me as energias, a coragem de servir a causa, nascerão filhos, que ainda por cima não serão provavelmente meus, ou seja, que não serão meus de certeza; o homem sábio não deve ter medo de olhar a verdade na cara. (…)


in: Demónios, de Fiódor Dostoiévski, Editorial Presença, Lisboa, 2023