Aguarelas Finas, Le Corbusier | Maison La Roche, Paris

16 junho 2022

Filosofia Felina | John Gray

 Os gatos não precisam de filosofia. Obedientes à sua natureza, satisfazem-se com o que a natureza lhes dá. Nos humanos em contrapartida, parece ser-lhes natural a insatisfação com a sua natureza. Com resultados inevitavelmente trágicos e absurdos, o animal humano nunca deixa de aspirar a ser o que não é. Os gatos em nada se esforçam para isso. Boa parte da vida humana é uma luta pela felicidade. (…)

A filosofia nasce da ansiedade, e os gatos só a sentem se se sentirem ameaçados ou derem por si num lugar estranho. Para os humanos, o próprio mundo é um lugar estranho e ameaçador. (…)

A falta de pensamento abstrato nos gatos não é prova da sua inferioridade, mas traço da sua liberdade de pensamento. (…) Os gatos, que confiam no que podem tocar, cheirar e ver, não são governados por palavras. 

A filosofia é a demonstração da fragilidade do espírito humano. (…)

Os gatos nunca foram domesticados pelos humanos. (…) Foram os gatos a iniciar, à sua maneira, este processo de domesticação. O genoma do gato doméstico em pouco difere do do seu parente selvagem. As pernas são um pouco mais curtas, a pelagem tem maior variedade cromática. (…) A não ser que sejam mantidos em casa, o comportamento dos gatos domésticos não é muito diferente do dos gatos selvagens. Ainda que um gato possa considerar mais de uma casa como lar, a casa é a base onde come, dorme e dá à luz. O tamanho do cérebro dos gatos domésticos é mais pequeno que o dos selvagens, mas isso não os torna menos inteligentes ou adaptáveis. (…) Um motivo para a aceitação dos gatos pelos humanos foi a sua utilidade na redução das populações de roedores. Os gatos comem-nos, à milhares de anos já comiam ratos que se alimentavam das provisões de alimentos dos humanos. (…)

Uma razão mais basilar para os humanos terem aceitado os gatos em casa é os gatos terem ensinado os humanos a amá-los. É este o verdadeiro fundamento da domesticação felina. São tão cativantes, que muitas vezes não se consideram deste mundo. Os humanos precisam de algo além do mundo humano, senão dão em loucos. O animismo, a mais antiga e universal das religiões, cumpre esta necessidade ao reconhecer os animais não humanos como nossos pares espirituais, e mesmo superiores a nós. Os nossos antepassados, que veneravam estas criaturas, conseguiram interagir com uma vida além da sua.

Desde que domesticaram os humanos que os gatos não precisam de caçar alimento. Mas, não deixaram de ser caçadores por natureza e, quando os seres humanos não lhes dão sustento, rapidamente voltam a uma vida de caça. (…) Grandes ou pequenos, os gatos são hiper-carnívoros: em meio selvagem, só comem carne. (…) Caçar e matar o que comem é instintivo nos gatos; as crias, quando brincam, é às caçadas. Os gatos precisam de carne para viver. Só conseguem digerir os ácidos gordos, neles vitais, presentes na carne de outros animais. (…) A relação dos gatos uns com os outros decorre da sua natureza de caçadores solitários. (…) A ausência nos gatos de reconhecimento de líderes pode ser razão para não se submeterem aos humanos. Não obedecem nem veneram os humanos com quem muitos deles coabitam. Confiam em nós, mas são independentes. Se demonstram afeto, não é mero amor por interesse. Se não apreciam a nossa companhia, vão-se embora. Se ficam, é por quererem estar connosco. Também por isso tantos de nós gostam deles. (…)

No fundo, o ódio aos gatos pode ser uma expressão de inveja. Muitos humanos têm uma vida miserável oculta. Torturar outras criaturas alivia, porquanto inflige nelas sofrimento pior. Torturar gatos dá particular contentamento, pois eles têm-no de sobra. O ódio aos gatos é muitas vezes o ódio que os humanos miseráveis têm de si e que redirecionam para criaturas que sabem não ser infelizes. 

Os gatos vivem seguindo a sua natureza, os humanos vivem reprimindo a sua. Paradoxalmente, essa é a sua natureza. (…) 

Os gatos são menosprezados pela aparente indiferença por quem deles cuida. Damos-lhe comida e abrigo, mas não nos consideram donos ou amos deles, e não nos dão nada a não ser a sua companhia. Se os tratarmos com respeito, vão gostando de nós, mas não sentem a nossa falta quando nos vamos embora. Sem o nosso amparo, depressa se tornam outra vez selvagens. Mesmo sem mostrarem grande preocupação com o futuro, parecem destinados a sobreviver-nos. Os gatos, depois de se terem disseminado pelo planeta nas embarcações que os humanos usaram para ampliar o seu domínio, vão andar por cá muito depois de os humanos e todo o seu labor terem desaparecido sem deixar rasto.


in: Filosofia Felina, os Gatos e o Sentido da Vida, de John Gray, Editorial Presença, Lisboa, 2021