Aguarelas Finas, Le Corbusier | Maison La Roche, Paris

23 outubro 2023

As Abelhas Cinzentas | Andrei Kurkov

 Sergey Sergeyich foi despertado pela aragem fria quando eram cerca de três horas da manhã. O fogão a lenha que tinha construído em pedra, segundo uma fotografia da Cozy Cottage, com uma pequena porta envidraçada e dois bicos, tinha deixado de produzir qualquer calor. Os dois baldes de lata a seu lado estavam vazios. Baixou a mão até ao que estava mais perto e os dedos tocaram no pó do carvão. (…)

Também ali só restava uma pessoa - Pashka Khmelenko, que estava reformado, tal como Sergey. Os dois tinham praticamente a mesma idade e eram inimigos desde os primeiros dias de escola. (…)

Os outros habitantes da pequena Starhorodivka quiseram partir assim que o conflito começou. Portanto, foram-se embora - porque receavam mais pelas suas vidas do que pelas suas propriedades, e o medo maior venceu. Mas a guerra não tinha levado Sergeyich a recear pela vida. Só o tinha deixado confuso, e, de repente, indiferente a tudo o que se passava ao seu redor. Foi como se tivesse perdido todo o sentimento, todos os sentidos, excepto um: o da responsabilidade. E esse sentido, que poderia deixá-lo numa aflição terrível a qualquer hora do dia, estava inteiramente focado num ponto: as suas abelhas. De momento, as abelhas estavam a hibernar. O interior dos telhados e dos quadros tinham sido reforçados com feltro. (…)

Em casa, por essa altura, não havia ninguém com quem Sergeyich pudesse conversar: a mulher e a filha já tinham desertado enquanto ele estava no mercado de produtores de Gorlivka. Tinham deixado uma ferida no seu coração. Mas ele persistiu. (…) Prosseguiu com a sua vida - e a sua vida era calma e satisfatória. No verão, apreciava o zumbido das abelhas; no inverno, a paz e a tranquilidade, a brancura da neve sobre os campos e a imobilidade absoluta dos céus cinzentos. (…)

Sergeyich passou o dia seguinte na cama, cuidando da própria saúde, como se fosse o seu próprio filho enfermo. Ouviu-se tossir como se estivesse fora do próprio corpo, dividido em dois: metade paciente, metade curandeiro. (…) Acaba por acontecer a todos os que vivem sozinhos. (…)

Mas isso era agora, fevereiro, quando o silêncio era tão frágil como um grão de pó num raio de sol. Dentro de um mês, talvez menos, ia soltar um exército de abelhas nesse silêncio. (…) Sergeyich sorriu perante os próprios pensamentos e deixou-se submergir por sonhos que evocaram a chegada da primavera. (…) A escuridão ganhava terreno, ia-se infiltrando pelas janelas. (…)

Tu é que tens sorte - disse Pashka, sacudindo a mão. - Adorava ter esse tipo de vida: não ouvir nada, não ver nada, não saber que dia da semana é (…)

Quando começou a conduzir o Lada para o quintal, começaram a cair pingos de chuva. Sergeyich desviou o olhar para o céu, e a chuva caiu a direito nos seus olhos abertos. As gotas também lhe caíram nos lábios e língua, e pareceu-lhe que eram salgados. Parecia que eram lágrimas celestiais em vez de chuva, como se o céu estivesse a chorar por ele, por Sergeyich, porque também ele não sabia se voltaria algum dia. E, se voltasse, fosse quando fosse, será que iria encontrar tudo o que deixava para trás? (…) Aquilo - as árvores, os portões, as portas e as janelas - tinha-o protegido como uma fortaleza, como um colete à prova de balas. (…)

Não, ele não ia passar pela sua casa apenas para dar corda ao relógio, mesmo que prometesse fazê-lo. Era inútil preocupar-se com o tempo, claro. O tempo só importa quando está lá alguém a contabilizar a sua passagem, a depender disso. E, se ninguém se ocupar dessa missão, também o tempo para e desaparece. (…) 

Porém, as abelhas não entendem o que é a guerra. As abelhas não conseguem passar da paz à guerra e de volta à paz, como fazem as pessoas. É preciso que tenham condições para cumprir a sua principal função - aquela que lhes foi atribuída pela natureza e por Deus: colher e espalhar pólen. Era por isso que tinha de as levar para um sítio mais tranquilo, onde o ar estivesse a encher-se aos poucos da doçura da vegetação primaveril, onde ao coro dessas ervas se juntasse, em breve, o coro das cerejeiras, macieiras, damasqueiros e acácias em flor. (…)

Tinha-se desacostumado de ajuntamentos coletivos. Três anos de abandono numa aldeia com Pashka tinham-no ensinado que podia ter-se pouca gente por perto e que nada de mal havia nisso. Por outro lado, esse isolamento quase absoluto podia ajudar uma pessoa a conhecer-se melhor a si própria, à sua própria vida. (…)

De manhã, abriu os olhos e não voltou a duvidar de que tinha entrado no paraíso. Viu-se num conto de fadas, em que a natureza não apenas serve as pessoas, mas chega a conceder-lhe dádivas; em que o sol espera que termine as suas tarefas do dia para partir; em que o ar está preenchido do tinido de sinos de sinos invisíveis e incontáveis; em que se pode ser livre e invisível; em que cada ser vivo - cada árvore, cada videira - tem a sua própria voz. (…)

De repente, uma dor aguda espetou-lhe o coração como uma faca. Sentiu inveja do falecido. Akhtem. Ocorreu-lhe que não tinha nenhum filho e que, se alguma coisa lhe acontecesse, as abelhas tornar-se-iam órfãs. Iriam morrer de doenças ou de parasitas ou, simplesmente, perecer por negligência. Tinha uma filha, claro, mas, na realidade, a sua ex-mulher, Vitalina, é que a tinha tido. De qualquer forma a sua filha não se interessava por abelhas - o amor às abelhas não se passa pelo leite da mãe. Esse pensamento estranho deixou-o perplexo. (…)

Para quê desperdiça-la quando a sua casa já não era uma tenda, mas sim o mundo inteiro ao seu redor, com todas as montanhas, árvores, vinhas, pássaros, ouriços e abelhas? (…)

 Sergeyich sentia-se fascinado pela sabedoria da natureza. Sempre que a sua sabedoria era visível e compreensível para si, comparava-a com as manifestações da vida humana - sempre em detrimento desta última. (…)

Enfim, pelo menos há alguém à minha espera, pensou Sergeyich, ao pisar o acelerador. 


in: As Abelhas Cinzentas, de Andrei Kurkov, Porto Editora, 2022