Aguarelas Finas, Le Corbusier | Maison La Roche, Paris

28 dezembro 2021

A Divina Comédia | Dante Alighieri


Dir-se-ia que, muito avant la lettre, a escrita de Dante tem uma qualidade visualmente cinematográfica (…)

A Divina Comédia, que, «como todas as grandes obras canónicas, destrói a distinção entre escrita sagrada e secular», é também, entre muitas outras coisas, essa tensão vertiginosa entre micro e macrocosmos, esse confronto do indivíduo concreto com o universo dos seus saberes integrados, numa epopeia do conhecimento humano apostado na busca obsessiva de uma verdade do Ser, busca essa que, aqui culmina na visão de Deus, termo do arco sustentado que vai do desespero humano e da miséria humana a uma absoluta serenidade final. (…)

Conviveu com autores e outros artistas (sobretudo músicos e pintores), construiu a sua própria noção de modernidade estética, teve experiências sentimentais de vária ordem, das quais uma decisiva para a vida e para a sua obra, pelo menos no plano literário. (…)

Acresce que ele faz também a longa e irreversível experiência do exílio e da conspiração, sabendo-se condenado à morte, se regressar a Florença. Guiado pela sombra de Virgílio, primeiro, pelas presenças de Beatriz e de S. Bernardo, depois, acompanhado longamente por Estácio, entretanto fará a sua jornada transcendente, da abjeção das trevas à redenção da luz. (…)

(…)

Ó musas e alto empenho, me ajudai;

ó mente que escreveste do que vias,

tua nobreza aqui provar-se vai.

(…)

Eu sou Beatriz, ora a fazer-te andar;

do lugar venho a que voltar pretendo,

e amor me move, que me faz falar.

(…)

«Ora desçamos pois ao cego mundo»,

começou o poeta a empalidece:

«irei primeiro e tu irás segundo.»

(…)

É Homero, o poeta soberano;

o outro Horário sátiro que vem;

o outro Ovídeo e o último Lucano.

(…)


in: A Divina Comédia, de Dante Alighieri, Quetzal Editora, Lisboa, 2021

Obra de Arte: Inferno XXXIV, de Rui Chafes, («Se transmutem em longos cabelos femininos - e ganham corpo em ferro e desestabilizam, em suspensão, o espaço»), 2014

13 dezembro 2021

O Infinito Num Junco | Irene Vallejo

A Lenda de Alexandria não parou de crescer. Dois séculos depois de se escrever o diálogo de Gílide e da rapariga tentada, Alexandria foi o cenário de um dos maiores mitos eróticos de todos os tempos: a história de amor entre Cleópatra e Marco Aurélio. (…) Certa vez, durante uma madrugada alcoólica, num gesto de ostentação provocadora, ela dissolveu uma pérola de tamanho fabuloso em vinagre e bebeu-a. Por isso, Marco Aurélio escolheu um presente do qual não poderia desdenhar com um ar aborrecido: pôs aos seus pés duzentos mil volumes para a Grande Biblioteca. Em Alexandria, os livros eram combustível para as paixões. (…)

Ptolomeu instalou-se no Egipto, onde passaria o resto da sua vida. (…) Tudo ali era surpreendente: as pirâmides; as íbis; as tempestades de areia; as ondas de dunas; o galope dos camelos; os estranhos deuses com cabeça de animal; os eunucos; as perucas e as cabeças rapadas; as enchentes humanas nos dias de festa; os gatos sagrados, que era crime matar; os hieróglifos; as cerimónias palacianas; os templos à escala sobre-humana; o enorme poder dos sacerdotes; o negro e lamacento Nilo a arrastar-se pelo seu delta rumo ao mar; os crocodilos; as planícies onde as abundantes colheitas se alimentam dos ossos dos mortos; a cerveja; os hipopótamos; o deserto, onde nada permanece a salvo do tempo destruidor; o embalsamento; as múmias; a vida ritualizada; o amor pelo passado; o culto da morte. (…) Ptolomeu destinou grandes riquezas para a construção do Museu e da Biblioteca de Alexandria. (…)

Para um grego, um museu era um recinto sagrado em honra das musas, as filhas da Memória, as deusas da inspiração. A Academia de Platão e, mais tarde, o liceu de Aristóteles tinham a sua sede em pequenas florestas dedicadas às musas porque o exercício do pensamento e da educação podiam entender-se como atos metafóricos e luminosos de culto às nove musas. O museu de Ptolomeu chegou mais longe: foi uma das instituições mais ambiciosas do helenismo, uma versão primitiva dos nossos centros de investigação, universidades e laboratórios de ideias. Eram convidados para o Museu os melhores escritores, poetas, cientistas e filósofos da época. Os escolhidos mantinham o posto para sempre, libertados de qualquer preocupação material, para que pudessem dedicar todas as suas energias a pensar e a criar. Ptolomeu atribuía-lhes um salário, alojamento gratuito e um lugar num luxuoso refeitório coletivo. Para além disso, eximia-os de pagarem impostos, talvez o melhor presente em tempos de voracidade das arcas reais.

Durante séculos, o museu reuniu, como deseja Ptolomeu, uma resplandecente constelação de nomes: o matemático Euclides, que formulou os teoremas da geometria; Estratão, o maior físico da época; o astrónomo Aristarco de Samos; Erastóstenes, que calculou o perímetro da Terra com admirável exactidão; Herófilo, pioneiro da anatomia; Arquimedes, inventor da hidrostática; Dionísio de Trácia, que escreveu o primeiro tratado de gramática; os poetas Calímaco e Apolónio de Rodes. Em Alexandria nasceram teorias revolucionárias, como o modelo heliocêntrico do sistema solar, que resgatado no século XVI, provocaria a revolução copernicana e a condenação de Galileu. Quebrou-se o tabu das dissecações de cadáveres - e também, segundo as más-línguas, de presos vivos das prisões - que permitiram avançar na medicina. Desenvolveram-se novos ramos de saber, como a trigonometria, a gramática e a conservação de manuscritos. Ali, teve início o estudo filológico dos textos. (…)

A Biblioteca tinha um lugar essencial naquela pequena cidade de sábios. Poucas vezes na História se fez um esforço parecido, consciente e deliberado, para reunir num único lugar as mentes mais brilhantes da época. E nunca antes os melhores pensadores tiveram acesso a tantos livros, à memória do saber anterior, aos sussurros do passado com os quais aprender o ofício de pensar.

O Museu e a Biblioteca faziam parte do recinto do palácio, protegidos pelos muros da fortaleza. A vida daqueles primeiros investigadores profissionais era passada no isolamento do espaço fortificado. A sua rotina consistia em dar conferências, aulas e discussões públicas, mas, acima de tudo, era a silenciosa investigação que dominava. (…)

Desde os primeiros séculos da escrita até à Idade Média, a norma era ler em voz alta, para si próprio ou para os outros, e os escritores pronunciavam as frases à medida que as escreviam ouvindo assim a sua musicalidade. Os livros não eram uma canção que se cantava com a mente, como agora, mas sim uma melodia que saltava para os lábios e soava em voz alta. O leitor convertia-se no intérprete que lhe emprestava as suas cordas vocais. Um texto escrito entendia-se como uma partitura muito básica e por isso apareciam as palavras, uma atrás de outra, numa cadeia contínua sem separações nem sinais de pontuação- era preciso pronúncia-las para entendê-las. Quando se lia um livro costumava haver testemunhas. Eram frequentes as leituras em público, e os relatos que agradavam andavam de boca em boca. (…) 

Talvez por esse motivo, os primeiros a ler como você, em silêncio, em conversa muda com o escritor, tenham chamado poderosamente a atenção. No século IV, Agostinho de Hipona ficou tão intrigado ao ver o bispo Ambrósio de Milão ler desta forma que anotou nas suas Confissões. Era a primeira vez que alguém fazia algo assim à sua frente. (…)

A nossa pele é uma grande página em branco; o corpo, um livro. O tempo vai escrevendo pouco a pouco a sua história nas faces, nos ventres, nas barrigas, nos sexos, nas pernas. Acabados de chegar ao mundo, imprimem-nos na barriga um grande «O», no umbigo. Depois vão aparecendo lentamente outras letras. As linhas da mão. Os sinais, como pontos finais. Os riscos que os médicos deixam quando abrem a carne e depois a cosem. Com os anos, as cicatrizes, as rugas, as manchas e as ramificações varicosas traçam as sílabas que relatam a vida. (…)

Só há uma presença feminina no cânone literário grego: Safo. (…)

Safo - conta-o ela própria- era baixinha, morena e pouco atraente. Nasceu numa família aristocrática em decadência. Ao contrário de Cleobulina, não era filha de reis. O seu irmão esbanjou a fortuna da família, ou o que restava dela. Casaram-na com um estranho, como era habitual, e teve uma filha. Tudo a encaminhava para uma vida anónima. As mulheres gregas não escreviam poesia épica, claro. (…)

Safo escreveu: «Alguns dizem que nada é mais belo na negra terra do que um esquadrão de ginetes, ou de infantes, ou de naus. Mas eu digo que o mais belo é a pessoa amada.» Estas simples palavras escondem uma revolução mental. Quando foram escritas, no século VI a.C., quebraram os esquemas tradicionais. Num mundo profundamente autoritário, o poema surpreende porque múltiplas perspectivas, e até parece celebrar a liberdade do desacordo. Para além disso, atreve-se a questionar aquilo que a maioria admira: os desfiles, os exércitos, a exibição e o alarde de poder. (…) Diante das aborrecidas exibições de força guerreira, ela preferia sentir e evocar o desejo. «O mais belo é o que cada um ama.» Inesperado, este verso afirma que a beleza está primeiro no olhar do amante; que não desejamos quem nos parece mais atraente, mas sim parece-nos mais atraente porque o desejamos. Segundo Safo, quem ama cria a beleza; não se rende a ela como as pessoas costumam pensar. Desejar é um ato criativo, tal como escrever versos. Favorecida com o dom da música, a pequena e feia Safo podia decorar o minúsculo mundo que a rodeava com as suas paixões e embelezá-lo. (…) O seu casamento acabou e ela trocou as rotinas do lar por uma nova atividade (…) Sabemos que orientou um grupo de raparigas novas, filhas de famílias ilustres. Sabemos também que se apaixonou em momentos sucessivos por algumas delas - Átis, Dica, Irana, Anactória - e que juntas compunham poesia, faziam sacrifícios a Afrodite, entrançavam coroas de flores, sentiam desejo, acariciavam-se, cantavam e dançavam, alheias aos homens. (…) Dizem-nos que na ilha de Lesbos havia grupos parecidos, orientados por mulheres a quem a Safo considera inimigas. (…) Os gregos achavam que o amor era a principal força educadora. (…)

Num fragmento de apenas uma linha que chegou até nós por acaso, lemos: «eu afirmo que alguém se lembrará de todas nós.» E, embora aquela possibilidade parecesse ser quase impossível, após trinta séculos continuamos a ouvir a voz ténue daquela mulher baixinha.    


Ovídio foi um explorador de novos territórios literários, e o primeiro escritor a prestar uma atenção singularizada às suas leitoras. (…) Numa época de rápida expansão nos horizontes de leitura, Ovídio juntou-se com agrado à transgressão dos valores arcaicos e das velhas normas. A sua literatura jovem, inconformista e erótica atraía as romanas da época; ele sabia-o e jogava com os limites. Não via o abismo que pisava. (…) Ovídio lançou um olhar revolucionário sobre algumas questões essenciais na Roma do século I a.C.: o prazer, consentimento e a beleza. Naquela época os casamentos eram uma combinação entre famílias, que costumavam entregar raparigas adolescentes a homens poderosos já maduros. (…) Ovídio desfez todas essas convenções e clichés ao escrever que gostava de mulheres maduras, não de crianças. E que o seu prazer erótico precisava do prazer da sua companheira. Eis uma passagem de A Arte de Amar: «Prefiro uma amante que tenha ultrapassado os trinta e cinco anos e já tenha cabelos grisalhos na sua melena: que os apressados bebam o vinho novo; eu gosto mais de uma mulher madura que conheça o seu prazer. Tem experiência, que constitui todo o talento, e conhece mil posições no amor. A voluptuosidade nela não é falsa. E, quando a mulher goza ao mesmo tempo que o seu amante, é o cúmulo do prazer. Odeio o abraço em que um e outra não se entregam inteiramente. Odeio essas uniões que não deixam os dois exaustos. Odeio uma mulher que se entrega porque tem de fazê-lo, que não se humedece, que pensa nas suas tarefas. Não quero uma mulher que me dê prazer por dever. Que nenhuma mulher faça amor comigo por obrigação! Gosto que a sua voz traduza a sua alegria, que murmure que é preciso ir mais devagar, que ainda me devo conter. Gosto de ver a minha amante a usufruir com os olhos vencidos e que desfaleça e não permita que a acaricie mais.» (…)

A Arte de Amar foi considerado um livro imoral e perigoso. (…)

No ano 8, Ovídio, que tinha acabado de fazer cinquenta anos, foi desterrado repentinamente, através de édito imperial, para a aldeia de Tomi - a atual Constança, na Roménia. (…) O poeta partiu sozinho para o exílio. (…) Ovídio ia ficar separado de tudo aquilo que, na sua opinião, tornava a vida digna de ser vivida: amigos, amor, livros, conversas e, sobretudo, paz. (…) Sobreviveu nove anos, a enviar constantes súplicas para Roma e a escrever as suas Tristia, um precedente da carta De Profundis que séculos mais tarde redigiria desde a prisão outro grande bon vivant castigado, Oscar Wilde. (…)

A Arte de Amar, esse livrinho alegre e erótico, perseguido por um dos imperadores mais poderosos do Império e várias vezes proibido em épocas posteriores por ser obsceno e escandaloso, encontrou o caminho até às nossas bibliotecas. A sua história é a de um longo salvamento, levado a cabo século após século pelos leitores em quem Ovídio confiou, contra as autoridades. A subversão também cria clássicos.


Obra de Arte: Escultura de Safo, 1883, do Artista Italiano Francesco Confalonieri (1850-1925), Palácio Nacional da Ajuda, Lisboa

in: O Infinito Num Junco, de Irene Vallejo, Bertrand Editora, Lisboa, 2021