Aguarelas Finas, Le Corbusier | Maison La Roche, Paris

21 novembro 2022

A Química do Cérebro | Ginny Smith

Estes estudos e muitos outros que Loftus levou a cabo ao longo dos anos dizem-nos algo importante sobre a nossa memória. Está longe de ser infalível. Na verdade, é frágil e facilmente alterada. Algo tão simples como a forma como uma pergunta é feita pode modificar a nossa memória de um acontecimento, e esta mudança pode persistir, potencialmente para o resto das nossas vidas. (…)

Esta investigação pioneira provocou um surto de interesse pelo sistema de recompensa do cérebro, estando nós a começar a compreender como funciona e que regiões cerebrais envolve. Sabemos agora que a área em que Milner e Olds estavam interessados, a área septal, contém o núcleo accumbens, uma das mais importantes zonas de recompensa. Sabemos agora também existem outras regiões igualmente importantes, pelo que os cientistas falam de um «circuito de recompensa», em vez de uma área de recompensa. 

No que diz respeito às substâncias químicas do cérebro, a mais importante neste sistema é a dopamina. Os neurónios de Dopamina, com os seus corpos celulares numa região chamada área tegmental ventral, estendem-se até ao núcleo accumbens e ao córtex pré-frontal. Estas regiões trabalham em conjunto para nos levar a procurar uma recompensa. (…)

Talvez a serotonina, afinal de contas, seja realmente a «hormona da felicidade»! (…)

O hipocampo está envolvido no estabelecimento de ligações entre as emoções e as memórias e, neste sentido, se esta área encolher, poderá gerar problemas emocionais. (…)

Um estimulador do humor conhecido há muito tempo é o exercício físico (…) que pode ajudar a manter o cérebro saudável. Além disso, altera os níveis de uma variedade de outras substâncias químicas cerebrais, incluindo a serotonina e a dopamina, que podem contribuir para os seus efeitos estimuladores do humor. Outra técnica útil é a gratidão. Seja através da escrita de um diário, da amabilidade para com os outros, da meditação ou apenas da enumeração das coisas boas que temos a agradecer no final de um longo dia, há indícios crescentes de que centrar o foco nos aspectos positivos da nossa vida poderá ter benefícios tanto para a saúde como para o humor. (…)

Por todo o nosso corpo, existem relógios biológicos, ou ritmos circadianos, que controlam a afinação de processos como a libertação de enzimas digestivas a partir do fígado e o ciclo de produção das nossas mitocôndrias celulares. Mas todos eles são mantidos sincronizados por um relógio central no nosso cérebro, situado no núcleo supraquiasmático (NCQ), que faz parte do hipotálamo. (…)

E não é só o sono antes da aprendizagem que é importante; o sono tem outro papel a desempenhar depois de termos aprendido algo novo, ao ajudar a garantir que retemos essa informação. (…)

A interoceção é a capacidade de detectar estímulos e variações no interior do corpo, como o calor, a dor ou a fome. (…) Podem então confiar mais nestas pistas internas quando decidem quando e quanto comer, enquanto outras pessoas, com uma interoceção menos sensível, são mais guiadas por factores ambientais, como o quão saborosa é a comida ou a altura do dia em que se encontram. (…)

Com o seu habitual amor à categorização, decompuseram as maravilhas do amor romântico em três elementos: desejo sexual, atração e afecto. Cada um deles tem um padrão específico de actividade cerebral e de neuroquímica envolvida, embora existam bastantes sobreposições. (…)

Swami explicou-me que os psicólogos sociais costumam identificar três outros fatores importantes para a formação de uma relação - fatores tão simples que são muitas vezes negligenciados. O primeiro é a proximidade: tendemos a interessar-nos por pessoas que estão perto de nós. O segundo é a reciprocidade: gostamos de pessoas que gostam de nós. E o terceiro é a similaridade. (…) 

Seja como for que surja, em alguns casos, a atração conduz a uma relação e, após algum tempo, ao amor.

Os baixos níveis de dopamina, é preciso não esquecer, geram os sintomas da doença de Parkinson. (…)

É possível que, em alguns casos, os baixos níveis de serotonina estejam ligados à depressão, mas os altos níveis estão associados à ansiedade. Tudo indica que os nossos cérebros têm um «ponto ideal» no que diz respeito às substâncias químicas e desviarmo-nos dele, em qualquer uma das direções, tem o potencial de gerar problemas. (…)


in: A Química do Cérebro, de Ginny Smith, Bertrand Editora, Lisboa, 2022

05 novembro 2022

Eneida | Virgílio

 Virgílio era um epicurista; essa foi a doutrina a que parece ter aderido com maior convicção e acentuado empenho, em especial depois de ter frequentado em Nápoles a escola filosófica de Siro, seguidor de Epicuro. Ora, os epicuristas enjeitavam a participação na vida pública, menosprezavam a ambição e a glória, eram avessos a lutas de poder; preferiam a tais palcos o sossego, o recato, o alheamento, tudo quanto se traduzia no seu ideal de felicidade, que o conceito de ataraxia espelhava. 

Acontece que uma epopeia era justamente o oposto de tudo isso. Mais ainda, a epopeia de Roma, desenhada como a desenhou, ou seja, um canto tendente à glorificação de Augusto, através da sua identificação com o passado mítico, a apologia do regime que ele edificou, o Império, e bem assim de tudo quanto significava, das guerras travadas para o alcançar, das intrigas, as urdidas e as vencidas e as fracassadas, tudo isso podia representar uma renúncia a tais princípios do alheamento epicurista. Ou, pelo menos, deixava o poeta numa encruzilhada perigosa e à beira de um percurso semeado de contradições. (…)

E foi igualmente assim que o poeta desenhou um Eneias que, sem deixar de ser divino, que era, por filiação, nascido que fora de Vénus, a deusa do amor, era também humano, por ter sido gerado por Anquises, um mortal. Mais ainda, foi assim que desenhou nela com traços bem mais carregados o lado não divino, aquele que o fazia sentir como humano e que - supremo toque de mestria do poeta - se queria a si mesmo como humano. (…) 

Como será também essa a razão, decerto, por que o poeta lhe coloca no caminho Cartago e Dido e, com Dido, o amor. E que o faz ali permanecer, por vontade própria e sem contrariedade, mais propenso ao aconchego da rainha tíria do que a ter de fazer-se, de novo ao mar, enfrentar a viagem e rumar ao seu destino em Itália, ainda que soubesse, por revelação repetida, ser esse destino grandioso. (…)

Desertou, isso sim, do amor. Um amor condenado à partida, valha a verdade, uma vez que Dido, a rainha e amante, se apaixonara por um Eneias pertencente a um passado que ele próprio tinha de matar, antes de construir o futuro - o passado de Troia já morta, o passado da viagem. Esse Eneias, viandante troiano num percurso que não escolhera, tinha de morrer, para dar lugar a outro, o Romano, que virá a ser anunciado na passagem pelos Infernos. Aquele era, por isso mesmo, repita-se, um amor condenado. Além de que o amor, para os epicuristas, não era sinal de sabedoria e em circunstância alguma poderia ser opção de vida ou escolha avisada com vista à busca de felicidade. Rejeitá-lo, ainda que por imposição dos deuses, seria sempre - e foi - a melhor solução. (…)

Livro I

Mal perderam de vista a terra de Sicília, soltavam as velas rumo ao mar alto, 

cheios de alegria, e faziam esvoaçar com bronze das proas flocos de espuma salgada,

quando Juno, que guardava no fundo do coração uma ferida sem cura 

(…)

Ela mesma fez atear, a partir das nuvens, o fogo voraz de Júpiter

e disparou os navios e revoltou o mar à força dos ventos

e a ele, que, de coração trespassado, vomitava chamas, 

despedaçou-o num turbilhão e pregou-o na ponta de um penedo. 

(…)

Assim falou; e ao partir, uma luz fulgiu na nuca cor-de-rosa

e do alto da cabeça os cabelos de ambrósia exalaram 

um divino perfume; a veste descera até à base dos pés,

e pelo andar se revelou a deusa de verdade. Ele, quando reconheceu 

a mãe, com este brado veemente acompanhou o seu desaparecer:

«Porque tantas vezes iludes teu filho com enganosas imagens,

cruel que és também? Porque não há de poder unir-se a minha mão 

à tua mão e ouvir e responder palavras de verdade?»

Com tais palavras a interpela e os passos encaminha para as muralhas.

Mas Vénus envolveu numa espessa nuvem quem assim caminhava,

e a deusa espalhou à volta deles um largo manto de névoa, 

para que ninguém pudesse vê-los, para que ninguém pudesse tocá-los

ou retardá-los ou indagar deles as razões de ali virem.

Ela mesma partiu para Pafos e de novo voltou, feliz,

para seus paços, onde possui um templo, e em cem altares arde

incenso de Saba, e exalam o perfume de frescas grinaldas.

(…)


in: Eneida, de Virgílio, Tradução de Carlos Ascenso André, Quetzal Editora, Lisboa, Maio de 2022