Aguarelas Finas, Le Corbusier | Maison La Roche, Paris

05 novembro 2022

Eneida | Virgílio

 Virgílio era um epicurista; essa foi a doutrina a que parece ter aderido com maior convicção e acentuado empenho, em especial depois de ter frequentado em Nápoles a escola filosófica de Siro, seguidor de Epicuro. Ora, os epicuristas enjeitavam a participação na vida pública, menosprezavam a ambição e a glória, eram avessos a lutas de poder; preferiam a tais palcos o sossego, o recato, o alheamento, tudo quanto se traduzia no seu ideal de felicidade, que o conceito de ataraxia espelhava. 

Acontece que uma epopeia era justamente o oposto de tudo isso. Mais ainda, a epopeia de Roma, desenhada como a desenhou, ou seja, um canto tendente à glorificação de Augusto, através da sua identificação com o passado mítico, a apologia do regime que ele edificou, o Império, e bem assim de tudo quanto significava, das guerras travadas para o alcançar, das intrigas, as urdidas e as vencidas e as fracassadas, tudo isso podia representar uma renúncia a tais princípios do alheamento epicurista. Ou, pelo menos, deixava o poeta numa encruzilhada perigosa e à beira de um percurso semeado de contradições. (…)

E foi igualmente assim que o poeta desenhou um Eneias que, sem deixar de ser divino, que era, por filiação, nascido que fora de Vénus, a deusa do amor, era também humano, por ter sido gerado por Anquises, um mortal. Mais ainda, foi assim que desenhou nela com traços bem mais carregados o lado não divino, aquele que o fazia sentir como humano e que - supremo toque de mestria do poeta - se queria a si mesmo como humano. (…) 

Como será também essa a razão, decerto, por que o poeta lhe coloca no caminho Cartago e Dido e, com Dido, o amor. E que o faz ali permanecer, por vontade própria e sem contrariedade, mais propenso ao aconchego da rainha tíria do que a ter de fazer-se, de novo ao mar, enfrentar a viagem e rumar ao seu destino em Itália, ainda que soubesse, por revelação repetida, ser esse destino grandioso. (…)

Desertou, isso sim, do amor. Um amor condenado à partida, valha a verdade, uma vez que Dido, a rainha e amante, se apaixonara por um Eneias pertencente a um passado que ele próprio tinha de matar, antes de construir o futuro - o passado de Troia já morta, o passado da viagem. Esse Eneias, viandante troiano num percurso que não escolhera, tinha de morrer, para dar lugar a outro, o Romano, que virá a ser anunciado na passagem pelos Infernos. Aquele era, por isso mesmo, repita-se, um amor condenado. Além de que o amor, para os epicuristas, não era sinal de sabedoria e em circunstância alguma poderia ser opção de vida ou escolha avisada com vista à busca de felicidade. Rejeitá-lo, ainda que por imposição dos deuses, seria sempre - e foi - a melhor solução. (…)

Livro I

Mal perderam de vista a terra de Sicília, soltavam as velas rumo ao mar alto, 

cheios de alegria, e faziam esvoaçar com bronze das proas flocos de espuma salgada,

quando Juno, que guardava no fundo do coração uma ferida sem cura 

(…)

Ela mesma fez atear, a partir das nuvens, o fogo voraz de Júpiter

e disparou os navios e revoltou o mar à força dos ventos

e a ele, que, de coração trespassado, vomitava chamas, 

despedaçou-o num turbilhão e pregou-o na ponta de um penedo. 

(…)

Assim falou; e ao partir, uma luz fulgiu na nuca cor-de-rosa

e do alto da cabeça os cabelos de ambrósia exalaram 

um divino perfume; a veste descera até à base dos pés,

e pelo andar se revelou a deusa de verdade. Ele, quando reconheceu 

a mãe, com este brado veemente acompanhou o seu desaparecer:

«Porque tantas vezes iludes teu filho com enganosas imagens,

cruel que és também? Porque não há de poder unir-se a minha mão 

à tua mão e ouvir e responder palavras de verdade?»

Com tais palavras a interpela e os passos encaminha para as muralhas.

Mas Vénus envolveu numa espessa nuvem quem assim caminhava,

e a deusa espalhou à volta deles um largo manto de névoa, 

para que ninguém pudesse vê-los, para que ninguém pudesse tocá-los

ou retardá-los ou indagar deles as razões de ali virem.

Ela mesma partiu para Pafos e de novo voltou, feliz,

para seus paços, onde possui um templo, e em cem altares arde

incenso de Saba, e exalam o perfume de frescas grinaldas.

(…)


in: Eneida, de Virgílio, Tradução de Carlos Ascenso André, Quetzal Editora, Lisboa, Maio de 2022