Virgílio era um epicurista; essa foi a doutrina a que parece ter aderido com maior convicção e acentuado empenho, em especial depois de ter frequentado em Nápoles a escola filosófica de Siro, seguidor de Epicuro. Ora, os epicuristas enjeitavam a participação na vida pública, menosprezavam a ambição e a glória, eram avessos a lutas de poder; preferiam a tais palcos o sossego, o recato, o alheamento, tudo quanto se traduzia no seu ideal de felicidade, que o conceito de ataraxia espelhava.
Acontece que uma epopeia era justamente o oposto de tudo isso. Mais ainda, a epopeia de Roma, desenhada como a desenhou, ou seja, um canto tendente à glorificação de Augusto, através da sua identificação com o passado mítico, a apologia do regime que ele edificou, o Império, e bem assim de tudo quanto significava, das guerras travadas para o alcançar, das intrigas, as urdidas e as vencidas e as fracassadas, tudo isso podia representar uma renúncia a tais princípios do alheamento epicurista. Ou, pelo menos, deixava o poeta numa encruzilhada perigosa e à beira de um percurso semeado de contradições. (…)
E foi igualmente assim que o poeta desenhou um Eneias que, sem deixar de ser divino, que era, por filiação, nascido que fora de Vénus, a deusa do amor, era também humano, por ter sido gerado por Anquises, um mortal. Mais ainda, foi assim que desenhou nela com traços bem mais carregados o lado não divino, aquele que o fazia sentir como humano e que - supremo toque de mestria do poeta - se queria a si mesmo como humano. (…)
Como será também essa a razão, decerto, por que o poeta lhe coloca no caminho Cartago e Dido e, com Dido, o amor. E que o faz ali permanecer, por vontade própria e sem contrariedade, mais propenso ao aconchego da rainha tíria do que a ter de fazer-se, de novo ao mar, enfrentar a viagem e rumar ao seu destino em Itália, ainda que soubesse, por revelação repetida, ser esse destino grandioso. (…)
Desertou, isso sim, do amor. Um amor condenado à partida, valha a verdade, uma vez que Dido, a rainha e amante, se apaixonara por um Eneias pertencente a um passado que ele próprio tinha de matar, antes de construir o futuro - o passado de Troia já morta, o passado da viagem. Esse Eneias, viandante troiano num percurso que não escolhera, tinha de morrer, para dar lugar a outro, o Romano, que virá a ser anunciado na passagem pelos Infernos. Aquele era, por isso mesmo, repita-se, um amor condenado. Além de que o amor, para os epicuristas, não era sinal de sabedoria e em circunstância alguma poderia ser opção de vida ou escolha avisada com vista à busca de felicidade. Rejeitá-lo, ainda que por imposição dos deuses, seria sempre - e foi - a melhor solução. (…)
Livro I
Mal perderam de vista a terra de Sicília, soltavam as velas rumo ao mar alto,
cheios de alegria, e faziam esvoaçar com bronze das proas flocos de espuma salgada,
quando Juno, que guardava no fundo do coração uma ferida sem cura
(…)
Ela mesma fez atear, a partir das nuvens, o fogo voraz de Júpiter
e disparou os navios e revoltou o mar à força dos ventos
e a ele, que, de coração trespassado, vomitava chamas,
despedaçou-o num turbilhão e pregou-o na ponta de um penedo.
(…)
Assim falou; e ao partir, uma luz fulgiu na nuca cor-de-rosa
e do alto da cabeça os cabelos de ambrósia exalaram
um divino perfume; a veste descera até à base dos pés,
e pelo andar se revelou a deusa de verdade. Ele, quando reconheceu
a mãe, com este brado veemente acompanhou o seu desaparecer:
«Porque tantas vezes iludes teu filho com enganosas imagens,
cruel que és também? Porque não há de poder unir-se a minha mão
à tua mão e ouvir e responder palavras de verdade?»
Com tais palavras a interpela e os passos encaminha para as muralhas.
Mas Vénus envolveu numa espessa nuvem quem assim caminhava,
e a deusa espalhou à volta deles um largo manto de névoa,
para que ninguém pudesse vê-los, para que ninguém pudesse tocá-los
ou retardá-los ou indagar deles as razões de ali virem.
Ela mesma partiu para Pafos e de novo voltou, feliz,
para seus paços, onde possui um templo, e em cem altares arde
incenso de Saba, e exalam o perfume de frescas grinaldas.
(…)
in: Eneida, de Virgílio, Tradução de Carlos Ascenso André, Quetzal Editora, Lisboa, Maio de 2022