Aguarelas Finas, Le Corbusier | Maison La Roche, Paris

13 abril 2024

Istambul | Bettany Hughes

Alguns destes habitantes de Istambul da Idade da Pedra andaram descalços, outros usaram sapatos de couro delicadamente produzidos, talvez até tamancos de madeira, idênticos aos utilizados nos hamames da atual cidade. (…)

Quando passamos tempo na companhia de Istambul, urge ter em mente que esta é uma história de uma cidade e também uma história do mar. (…)

As águas fazem história e escondem-na. Assim, os primeiros habitantes de Istambul, os nativos, dão o seu testemunho de forma tácita; a sua história tem de ser retirada da terra e das águas escuras do Bósforo. A população helénica imigrante de Istambul é que apregoa a sua presença. Os gregos, que inventaram a noção de história e que, por conseguinte, ambicionavam aí inscrever-se, afiançavam que a antiga colónia de Bizâncio lhe pertenceu (…) dizem-nos que estes gregos primeros nos foram, de facto, os pioneiros da tecnologia do velejar. De forma única, terão sido capazes de cartografar as suas rotas não só nas costas do Mediterrâneo, mas também em águas profundas. (Cerca de 1615 a. C.) (…)

Uma das «safiras» azuis entre as quais se diz que Istambul se localiza «como um «diamante» era o Bósforo. O Bósforo não é apenas uma exigente fronteira psicológica; também é complicado do ponto de vista físico. Aqui, a mescla entre a água salgada e a água doce, rodopia e redemoinha. Formas macias como o cetim moldam a superfície da água, um padrão mesmérico que esconde marés ferozes. O fluxo do canal ao longo da extensão de 35 quilómetros muda nove vezes entre o Mar Negro e o mar de Mármara. Um rio submerso recém-descoberto, um canal sub-marino, no leito do estreito propriamente dito, ajuda a explicar a natureza instável. Água e sedimentos a correr pelo maciço canal submerso gerado pela enchente  do Mar Negro enroscando-se na direção oposta do curso de água geral. (…)

Alcibíades abriu uma brecha no mundo clássico, tal como o fez na História. Companheiro do filósofo Sócrates no exército, seu futuro amante, era tudo aquilo que o pensador ateniense não era. Débil, obcecado  por sexo, desmedido, resplandecente, elegante, ordinário, Alcibíades seria descrito por autores antigos como «o adorado tirano de Atenas». Aristófanes escreveu que o povo de Atenas «se consome por ele, o odeia, mas anseia pelo seu regresso». Era irritantemente irresistível, e impossível de ignorar, pavoneando-se pela cidade de Atenas com um manto de cor púrpura, apesar de essas exibições pouco democráticas não serem vistas com bons olhos, recusando-se a tocar aulos (semelhante ao oboé), porque faziam com que a sua boca se enrugasse de uma forma pouco atraente, dando-se à bebida logo de manhã cedo e, segundo o poeta cómico Eupólide, iniciando-se a tendência de urinar (…) Alcibíades - egocêntrico, ceceoso, com os seus longos cabelos - parece ter estado no seu elemento ao fazer de Bizâncio e das cercanias o seu palco predilecto, não tardando a ser visto a calcorrear as águas entre a Ásia e a Europa. (…)

Estimulada pelo desejo de mercadorias de terras distantes que elevassem o estatuto, o comércio internacional garantiria o caráter, o estatuto e o prestígio de Bizâncio. Uma cidade que ligara o Extremo Oriente a um Oeste selvagem. Tornar-se-ia uma cidade pela qual valia a pena lutar e merecia ser protegida. Em vez de ser apenas uma recompensa militar bem localizada, graças à sua posição no extremo de continentes, as pessoas queriam estar ali por motivos emocionais e, em termos económicos, concretizaria o seu maciço potencial. Contudo, primeiro, Bizâncio tinha de granjear a sua reputação como uma cidade de essência, prazer e pecado. (…)

Em 73 d.C. Vespasiano incorporou formalmente Bizâncio como província do Império Romano, e depois fundou uma casa da moeda na sua antiga acrópole. Os engenheiros de Adriano também puseram as mãos à obra, dando início a um aqueduto algum tempo depois de 117 d. C. (…) abrindo uma nascente na floresta de Belgrado para abastecer a baixa da cidade. (…) Agora, oitocentos anos depois da fundação grega, Bizâncio começava a ter os sons, os sabores e os cheiros das outras cidades romanas (…) 

Enquanto isso, Cibele teria sido venerada nos seus santuários de pedra, Hécate nas muralhas da cidade e Dionísio louvado nos portos da cidade. No mosaico de credos religiosos que foi o Império Romano, o Cristianismo era, no século III d.C., ainda uma de muitas seitas que procuravam o seu lugar, conforme é ilustrado por uma carta eloquente enviada ao imperador Marco Aurélio. Escrita em 176 d.C por um Cristão chamado Atenágoras, a súplica da carta para que os romanos deixem de perseguir os cristãos. (…)

Assim que Constantino deixou claro que o cristianismo seria tolerado no seu império, não tardou a construir-se uma igreja no interior do próprio anfiteatro, e os cristãos passaram a ser ali enterrados depois das suas mortes naturais, onde outrora tinham sido massacrados para diversão de terceiros. (…)

De repente, aquelas luzes de Constantino criaram outras imagens: não mais Leda, mãe espartana de Helena de Tróia, seria raptada por Zeus transmutado em cisne, nem Eros esvoaçaria a disparar as suas dolorosas flechas, mas uma série de peixes e cruzes - que surgiriam às dezenas nas escavações na insigne Istambul. (…)

Constava que um anjo velara pela reconstrução de Hagia Sofia e que a sua estrutura era abençoada, porque  Justino utilizara madeira da Arca de Noé no seu interior. Originalmente edificada na antiga acrópole grega por Constantino, O Grande, depois reconstruída por Teodósio, incendiada, reutilizada por Justiniano e construída de novo após destruição causada pelos motins, a cúpula distintiva desta Igreja da Santa Sabedoria (com 55 metros de altura) parecia estar suspensa nos céus por uma corrente dourada. Durante mais de um milénio, Hagia Sofia seria o maior edifício religioso do mundo. (…)

Os banhos de Zeuxipo e o Grande Palácio foram restaurados, e os sistemas de abastecimento de água renovados. (…) Istambul localiza-se sobre uma série de falhas geológicas. (…)

Quem subisse o Bósforo de barco desde o Mar de Mármara há quinhentos anos, conseguiria distinguir duas cidades diferentes, a Istambul muçulmana a assomar na costa ocidental, e o distrito infiel, a terra dos Gavur ou Giaour (não muçulmana), em frente, na costa ocidental do Corno de Ouro. Enquanto a própria Istambul se tornou mais verdejante, a terra dos Giaour ficou cada vez mais apinhada de armazéns e casas em cima umas das outras. (…)

Em 2006, as autoridades de Istambul plantaram três milhões de bolbos de tulipas à volta da cidade. (…)

A caligrafia podia ser feita em pergaminho, papel ou até em delicadas folhas caídas. Estes requintados escritos também começaram a ser apreciados no ocidente. (…)

Durante pelo menos vinte e cinco séculos, Istambul tem sido uma cidade que muitos desejam e precisam. Oriente e Ocidente continuam a querer impressionar a corte da Turquia. Desde a sua fundação grega - como Bizâncio, depois como Constantinopla cristã e, por fim, sob o califado de Islambol - que Istambul foi buscar forças à convicção de ser uma cidade protegida pela graça divina. Hagia Sofia, que já foi igreja e mesquita, erigida sobre um santuário pagão, sustentada pela fé, pelo tempo e pelo esforço humano, cujas curvas há muito são eco das sete colinas de Istambul. (…) 

Istambul não é onde o Oriente se encontra com o Ocidente, mas onde o Oriente e o Ocidente se entreolham com atenção e nostalgia, por vezes ofendidos com aquilo que veem, mas interessados em saber que partilham sonhos, história e sangue. (…) 


in: Istambul, a História de Três Cidades, de Bettany Hughes, Planeta Livros Portugal - Crítica, Nov. 2023