Aguarelas Finas, Le Corbusier | Maison La Roche, Paris

05 outubro 2020

O Banquete | Platão

 O que distingue eros de outros termos, também traduzíveis por "amor", como philia (amor/amizade) ou ágape (amor/afeição), é o cambiante típico de impulsividade e sobreposse, cujo potencial destrutivo a tragédia explora à saciedade, como é patente n'As Traquínias de Sófocles ou no Hipólito de Eurípides.

Independentemente desse cambiante, que passaria talvez despercebido no uso comum, eros é sempre um sentimento que mobiliza as forças da psique humana na prossecução de um objetivo - de algo que se quer ter ou dominar (…)

Sabe-se que a passagem do jantar à bebida era acompanhada de libações, preces e cânticos; seguidamente fixava-se um programa, estabelecendo-se não só o modo de beber mas também os assuntos que regulariam a conversação; um presidente (symposiarkhos) velava pela execução do programa - papel que neste diálogo será primeiro desempenhado por Fedro, o "pai do assunto", e mais tarde por Alcibíades. Por outro lado, era costume o dono da casa proporcionar aos seus hóspedes espectáculos variados e divertidos em que intervinham a tocadora de flauta, a dançarina ou mesmo uma companhia de artistas, como sucede em Xenofonte. O ambiente geral caracterizava-se pela boa disposição e liberdade, não raro terminando em orgia. (…)

… o amante (eron) é a parte activa da relação, competindo-lhe assumir as iniciativas e o encargo do aperfeiçoamento do amado (eromenos); a este cabe o papel meramente passivo, retribuindo o amor do amante com a philia, "amizade", e a obrigação de o gratificar (kharizesthai) em tudo o que lhe for solicitado. (…)

Com Aristófanes, penetramos numa esfera de sonho e idealidade onde a dynamis, "poder", do Amor se liberta de todas as suas implicações sociais e sociológicas para encontrar na physis humana a sua origem mais remota e verdadeira, e cujos padecimentos apenas eros pode curar. (…)

A realidade contraditória do Amor prefigura-se com o mito do seu nascimento (203 a-c), onde Platão alcança uma das suas mais belas e sugestivas criações artísticas: Eros, filho de Penia, a Pobreza, e de Poros, o deus Engenho, resume em si as qualidades antitéticas que opõem os seus progenitores: é por um lado pobre, o que equivale a dizer indigente e ignorante; por outro lado é rico, herdando do pai a sabedoria e o engenho que o levam a superar o estado natural de Pobreza, a sua mãe; ainda, o facto de ter sido concebido no dia do nascimento de Afrodite determina a sua natureza essencial como um "apaixonado do belo"(…)

Ao longo delas, o filósofo vai apreendendo, pelo amor, a beleza dos corpos, depois, a beleza das almas e dos conhecimentos, desviando-se a cada passo de um "belo objeto" para outro, onde lhe será possível gerar e produzir novos logoi, sucessivamente profundos e enriquecidos, pelos quais a sua ânsia de imortalidade se firma. É a revelação do Belo - o ser divino, simples e imutável - que culmina esta dialética ascendente do sensível ao inteligível. Pela sua contemplação e em união com ele (ephaptomenoi), o filósofo não só alcança gerar a verdadeira virtude (arete), mas ainda assegura uma imortalidade que lhe advém como prémio do seu esforço. (…) 

in: O Banquete, de Platão, Relógio d'Água Editores, 2018