As suas mulheres foram ciosas e rápidas, de forma a terem tempo para o luto; e quando tudo ficou pronto, as fogaças cozidas, as trouxas atadas, então tiraram os sapatos, soltaram os cabelos, dispuseram no chão as velas fúnebres, acenderam-nas conforme o costume dos antepassados, sentaram-se no chão em círculos para a lamentação, e toda a noite rezaram e choraram. Muitos de nós parámos diante da sua porta, e nas nossas almas desceu, nova para nós, a dor antiga do povo que não tem terra, a dor sem esperança do êxodo renovado século após século. (…)
Toquei o fundo. A apagar o passado e o futuro aprende-se rapidamente, se a necessidade empurra. Passados quinze dias da chegada, já sofro da fome regulamentar, a fome crónica desconhecida dos homens livres, que provoca sonhos de noite e se espalha em todos os membros dos nossos corpos; já aprendi a não me deixar roubar, pelo contrário, se encontro alguma colher, um cordel, um botão que possa apanhar sem perigo de punição, ponho-os no bolso e passo a considerá-los meus de pleno direito. Já apareceram, na sola dos meus pés, as chagas que não saram. Empurro vagões, trabalho com a pá, canso-me à chuva, tremo ao vento; até o meu próprio corpo já não me pertence. (…)
Vamos morrer todos, estamos prestes a morrer; se me sobrarem dez minutos entre o acordar e o trabalho, quero dedicá-los a outras coisas, fechar-me em mim próprio, fazer o balanço, ou então olhar o céu e pensar que talvez esteja a vê-lo pela última vez; ou mesmo só deixar-me viver, conceder-me o luxo de um breve ócio. (…)
Que somos escravos, privados de qualquer direito, expostos a qualquer injúria, condenados quase com certeza à morte, mas que uma faculdade nos restou, e temos de a defender com todo o vigor porque é a última: a faculdade de negar o nosso consentimento. Temos portanto, sem dúvida de lavar a cara sem sabão na água suja, e limparmo-nos ao casaco. Temos de engraxar os sapatos, não porque a tal obriga o regulamento, mas por dignidade e por propriedade. Temos de caminhar direitos, sem arrastar as socas, certamente não em homenagem à disciplina prussiana, mas para nos mantermos vivos, para não começarmos a morrer. (…)
Os dias são todos iguais, e não é fácil contá-los. (…) Homens e mais homens, escravos e patrões, os patrões eles próprios escravos; uns empurrados pelo medo, os outros pelo ódio, todas as outras forças emudeceram. Todos são nossos inimigos ou nossos rivais. (…)
Não se deve sonhar: o momento de consciência que acompanha o acordar é o sofrimento mais intenso. Mas não nos acontece muitas vezes, e os sonhos não duram muito tempo: mais não somos do que animais cansados. (…)
A fama de sedutor, de «organizado», provoca, ao mesmo tempo, inveja, escárnio, desprezo e admiração. Quem deixa que o vejam, enquanto come qualquer coisa de «organizado» é julgado muito severamente; trata-se de uma falta grave de pudor e de diplomacia (…)
21. Janeiro. (…) Desejava apenas uma coisa: ficar na cama debaixo dos cobertores, abandonar-me ao cansaço total de músculos, nervos e vontade, esperar que acabasse, ou não, era a mesma coisa, como um morto. (…)
in: Se Isto é um Homem, de Primo Levi, Coleção Mil Folhas, Porto, Maio 2002 (1ª Ed. 1958)