Aguarelas Finas, Le Corbusier | Maison La Roche, Paris

19 março 2024

A Vida Nova | Orhan Pamuk

Um dia li um livro e toda a minha vida mudou. 

Desde a primeira página, sofri com tanta força o poder do livro que senti o meu corpo apartado da cadeira e da mesa a que me sentava. No entanto, ao mesmo tempo que experimentava a sensação de que o meu corpo se afastava de mim, todo o meu ser continuava, mais do que nunca, sentado na cadeira, à mesa, e o livro manifestava todo o seu poder não só na minha alma, mas em tudo o que compunha a minha identidade. Era uma influência tão forte que me parecia que a luz emanada das páginas me atingiu como um jorro: o seu brilho cegara toda a minha inteligência, mas, ao mesmo tempo, tornara-a mais cintilante. Fiquei com a certeza de que esta luz iria reconstruir-me, que graças a ela deixaria de percorrer os caminhos já trilhados. Vislumbrei as sombras de uma vida ainda por conhecer e por adoptar. (…) Toda a minha vida mudava à medida que lia palavras novas, virando novas páginas; sentia-me tão pouco preparado para tudo o que iria acontecer-me, tão desarmado que, ao cabo de algum tempo, desviei os olhos, como para me proteger da força que jorrava das páginas. Foi com terror que notei que o mundo à minha volta se transformava completamente, e invadiu-me um sentimento de solidão que até então nunca experimentara - como se me achasse sozinho num país de que ignorava a língua, os costumes e a geografia. Depressa a impotência nascida deste sentimento de solidão me levou a agarrar-me cada vez mais ao livro; era ele que iria ensinar-me o que fazer neste país desconhecido onde me achava perdido, dizer-me aquilo em que podia acreditar, o que nele podia observar, a direção que a minha vida ia tomar. Continuava a ler; página atrás de página, como se estudasse um guia que me orientaria através desta terra desconhecida e selvagem. Tinha vontade de lhe dizer: vem em meu socorro, ajuda-me a descobrir a vida nova sem muitos sofrimentos nem desgraças. Mas sabia também que esta vida nova se ia construindo a partir das palavras e do que lia. (…)

Adivinhei desde o princípio que o livro tinha sido escrito para mim, e era por isso, não que as suas palavras fossem extraordinárias e brilhantes. (…)

Eu gostava muito da minha mãe, era uma bela mulher, distinta, competente e compreensiva, e eu sentia-me culpado porque lia esse livro e penetrara num mundo que não era o dela. (…)

Tinha medo de dizer a mim mesmo que o livro poderia ser um mistério imaginado tão-somente para a minha pessoa. (…)

 Por um breve instante invadiu-me uma tristeza de me fazer vir as lágrimas aos olhos, mas recompus-me com orgulho: deveria abrir o meu coração, sim, mas aqueles que doravante escolhesse entre os que viviam já no universo do livro. (…)

Tinha medo da solidão. Medo de ter compreendido mal o livro, o que não era de estranhar num idiota como eu; medo de não aprofundar as coisas ou, pelo contrário, de as aprofundar demasiado; quero eu dizer: de não poder ser como toda a gente, de me tornar louco de amor, ou de descobrir os mistérios do universo e me tornar ridículo passando o tempo a contar a minha vida a pessoas sem qualquer desejo de a conhecerem (…) de acabar por perceber que o mundo é definitivamente muito mais cruel do que eu imaginava e de não conseguir agradar às raparigas bonitas (…).

No dia seguinte apaixonei-me. O amor era tão perturbante como a luz que jorrava do livro e me atingia no rosto, e, com todo o seu peso, provava que a minha vida já tinha saído dos eixos (…). 

Nevara durante a noite, a neve acumulada nos parapeitos das janelas, nos passeios e nos telhados. O livro, que eu tinha deixado aberto em cima da mesa, envolvido por esta impressionante luz branca parecia ainda mais anódino, mais inocente; o que o tornava aterrador. (…)

Ao contrário de tudo o que se conta sobre o amor nos filmes, afastei-me sem pensar, sentindo-me extremamente miserável. (…) Primeiro, os corvos bateram as asas com cólera por cima da minha cabeça, depois instalaram-se nos ramos para me vigiarem melhor (…).

O homem a quem a leitura de um livro mudara a vida toda, que se apaixonara, que descobrira que se seguiria o rumo de uma vida nova - era eu. (…) De cada vez que a heroína tomara a palavra, o ecrã tingia-se da mesma cor violácea do casaco de Janan (…) Porquê esta solidão que, à noite, cai sobre mim como um falcão? (…)

A maioria das pessoas não quer uma vida nova nem um mundo novo. Foi por isso que mataram o autor do livro. (…)

O amor mostra-nos o caminho, desembaraça-nos de toda a tralha da vida quotidiana e, percebo isso agora, acaba por nos conduzir rumo ao segredo do coração. É para lá que vamos agora. (…)

E enquanto ela se debatia, ó meu Anjo, beijei-a a ponto de lhe fazer sangrar os lábios, com todas as minhas forças, com todo o meu desejo e com toda a minha fúria. (…) O sofrimento entre as minhas pernas tornou-se intolerável, eu morria de desejo de me expandir, de explodir, de, por fim, me relaxar. O meu desejo tornou-se ainda mais profundo, invadiu o mundo inteiro, um mundo novo de que ignorava tudo. Esperava, com lágrimas nos olhos, todo a suar, esperava sem saber o que esperava, quando tudo explodiu, nem muito depressa nem muito devagar, na alegria e tudo se acalmou e desapareceu. (…)

Eu estava triste, porque percebia que as nossas viagens nunca mais voltariam a ser o que tinham sido. (…)

Reconheci-a pelos batimentos do meu coração (…) vi um extraordinário arco-íris. Quando as pessoas contemplam a natureza (…) quanto a mim, vejo na natureza uma mensagem eloquente, que me interroga, que me lembra que devo conservar intacta a minha vontade (…).

Descobria como tocar alguém podia transformar completamente os lugares, as camas, os quartos, os cheiros, as coisas, mesmo as mais vulgares. (…)

Servi-me de um café e fui sentar-me a um canto. (…)

Eu tinha envelhecido antes das idade, cansara-me depressa, caminhava o menos possível. (…)


in: A Vida Nova, de Orhan Pamuk, Edições ASA, Porto, 2007 (O autor foi Prémio Nobel da Literatura em 2006)