Aguarelas Finas, Le Corbusier | Maison La Roche, Paris

02 março 2015

Franz Kafka | O Abutre e Outras Histórias

Resoluções

Sair de um estado de espírito miserável, mesmo que o tenhamos de fazer por pura força de vontade, deveria ser fácil. Eu forço-me a sair da cadeira, a caminhar até à mesa, a exercitar a minha cabeça e pescoço, a fazer os meus olhos brilharem, a apertar os músculos à volta deles. Desafio os meus próprios sentimentos, dou entusiasticamente as boas-vindas a A supondo que ele me vem ver, tolero amavelmente B na minha sala, engulo tudo o que é dito em casa de C, qualquer que seja a dor e a preocupação que tal me possa custar, em longas goladas.
No entanto, o que eu consiga, um único deslize, e um deslize não pode ser evitado, interromperá o processo todo, seja ele fácil ou doloroso, e terei de me reduzir novamente ao meu próprio círculo.
Portanto, talvez o melhor recurso seja ir passivamente ao encontro de tudo, fazer de mim mesmo uma massa inerte e, se sentir que estou a deixar-me levar, para que não me deixe convencer a dar um único passo desnecessário, olhar os outros fixamente com os olhos de um animal, não sentir remorso; em suma, reduzir ao mínimo qualquer réstia de vida que ainda me sobre, ou seja, ampliar a paz final do cemitério e não permitir que, para além dela, algo mais sobreviva.
Um movimento característico numa tal condição é passar o dedo mínimo ao longo das sobrancelhas.

in: Resoluções, de Franz Kafka, in: O Abutre e Outras Histórias, Estrofes e Versos, 2009, p. 89 e 90.