Aguarelas Finas, Le Corbusier | Maison La Roche, Paris

14 fevereiro 2014

Amor | Alimento


A.M.O.R.  
»»» Sen-ti-men-to que nos im-pe-le para o objecto dos nossos de-se-jos…
»»» Objecto da nossa afeição; paixão; afecto; inclinação…

» A.LI.MEN.TAR. O. A.M.O.R.»

Começar é fácil. Acabar é mais fácil ainda. Chega-se sempre à primeira frase, ao primeiro número da revista, ao primeiro mês de amor. Cada começo é uma mudança e o coração humano vicia-se em mudar. Vicia-se na novidade do arranque, do início, da inauguração, da primeira linha na página branca, da luz e do barulho das portas a abrir.
Começar é fácil. Acabar é mais fácil ainda. Por isso respeito cada vez menos estas actividades. Aprendi que o mais natural é criar e o mais difícil de tudo é continuar. A actividade que eu mais amo e respeito é a actividade de manter. Em Portugal quase tudo se resume a começos e a encerramentos. Arranca-se com qualquer coisa, de qualquer maneira, com todo o aparato. À mínima comichão aparece uma "iniciativa", que depois não tem prosseguimento ou perseverança e cai no esquecimento. Nem damos pela morte. É por isso que eu hoje respeito mais os continuadores que os criadores. Criadores não nos faltam. Chefes não nos faltam. Faltam-nos continuadores. Faltam-nos tenentes. Heróis não nos faltam. Faltam-nos guardiões.

É como no Amor.
A manutenção do amor exige um cuidado maior. Qualquer palerma se apaixona, mas é preciso paciência para fazer durar uma paixão. O esforço de fazer continuar no tempo coisas que se julgam boas - é o que distingue os seres humanos. O nascimento e a morte não têm valor - são os fados da animalidade. Procriar é bestial. O que é lindo é educar. Estou um pouco farto de revolucionários. Sei do que falo porque eu próprio sou revolucionário. Como toda a gente. Mudo quando posso e, apesar dos meus princípios, não suporto a autoridade. (…)

Mudar é um instinto animal.
Conservar, porque vai contra a natureza, é que é humano. Gosto mais de quem desenterra do que de quem planta. Gosto mais do arqueólogo do que do arquitecto. Gosto de académicos, de coleccionadores, de bibliotecários, de antologistas, de jardineiros.
Percebo hoje a razão por que Auden disse que qualquer casamento duradoiro é mais apaixonante do que a mais acesa das paixões. Guardar é um trabalho custoso. As coisas têm tendência horrível para morrer. Salvá-las desse destino é a coisa mais bonita que se pode fazer. Haverá verbo mais bonito do que "Salvaguardar"? É Fácil para uma pessoa bater com a porta, zangar-se e ir-se embora. O que é difícil é ficar. Isto ensinou-me o amor da minha vida, rapariga de esquerda, a mim, rapaz conservador. (…)

Preservar é defender a alma do ataque da matéria e da animalidade. Deixadas sozinhas, as coisas amarelecem, apodrecem e morrem. Não há nada mais fácil do que esquecer o que já não existe. Começar do zero, ao contrário do que sempre pretenderam todos os revolucionários do mundo, é gratuito. Faz com que não seja preciso estudar, aprender, respeitar, absorver, continuar. Criar é fácil. As obras de arte criam-se como as galinhas. O difícil é continuar.

in: As Minhas Aventuras na República Portuguesa, por Miguel Esteves Cardoso, 2014