Aguarelas Finas, Le Corbusier | Maison La Roche, Paris

11 dezembro 2013

Uma coisa curiosa … | António Damásio

Gostava ainda de chamar a atenção para uma coisa curiosa e também cronicamente esquecida: os sensores nervosos que transmitem informações do corpo para o cérebro e os núcleos e feixes nervosos que mapeiam essa informação são, eles próprios, feitos de células vivas, sujeitos ao mesmo risco de vida de qualquer outra célula, e precisam, também eles, de regulação homeostática. Estas células nervosas não são observadores passivos e imparciais. Não são espelhos inocentes à espera de reflectir o que quer que seja, ou ardósias limpas à espera de que alguém nelas inscreva uma fórmula mágica. Os neurónios encarregados de sinalizar e mapear têm qualquer coisa a dizer no que toca àquilo que sinalizam e mapeiam. É evidente que as atividades do corpo dão uma certa forma ao mapa, lhe conferem uma certa intensidade e perfil temporal, e contribuem no seu conjunto para aquilo que sentimos. Mas uma certa parte da qualidade daquilo que sentimos depende, provavelmente, do desenho íntimo dos próprios neurónios. A qualidade daquilo que sentimos depende, provavelmente, do "meio" (medium) em que são instanciados. (…)
Em conclusão, os sentimentos baseiam-se em representações integradas do estado da vida a par e passo com os ajustamentos necessários para que esse estado seja compatível com a sobrevida. Aquilo que sentimos tem, portanto, a ver com o seguinte:
1. O desenho íntimo do processo da vida num organismo multicelular com um cérebro complexo.
2. As operações do processo da vida.
3. As reacções correctivas que certos estados da vida provocam automaticamente, e as reacções inatas e adquiridas que os organismos desencadeiam quando certos objectos e situações são mapeados nos seus cérebros.
4. O facto de que, quando se desencadeiam as reacções regulatórias, o fluir da vida se torna mais eficiente ou, pelo contrário, menos eficiente.
5. A natureza do medium neural no qual todas estas estruturas e processos são mapeados.
Várias vezes me tem sido perguntado se estas ideias podem explicar a negatividade ou positividade dos sentimentos, sendo a implicação da pergunta que o sinal positivo dos sentimentos não pode ser explicado. Discordo dessa posição. Há estados do organismo em que a regulação da vida se torna extremamente eficiente, óptima, digamos, fluindo com facilidade e liberdade. Isto é um facto fisiológico bem estabelecido. Não se trata de uma hipótese. Os sentimentos que acompanham esses estados fisiológicos ideais são naturalmente considerados "positivos". São caracterizados não só pela ausência de dor, mas também por variedades de prazer. E há também estados do organismo em que os processos da vida lutam arduamente por recuperar o equilíbrio e podem até perder essa luta e entrar em caos. Os sentimentos que ocorrem nesses estados são considerados "negativos" e caracterizam-se não só pela ausência de prazer, mas por variedades de dor.
Julgo que é possível dizer, com alguma confiança, que os sentimentos positivos e negativos são determinados pela regulação da vida. O sinal positivo ou negativo é conferido pela proximidade ou distância relativamente aos estados que representam uma regulação óptima da vida.
A propósito, a intensidade dos sentimentos também está naturalmente provavelmente ligada ao grau de correcções que é necessário fazer nos estados ditos negativos, e à medida em que os estados ditos positivos excedem o nível homeostático necessário para a sobrevida e traduzem uma regulação optimizada.

in: Ao encontro de Espinosa, de António Damásio, p. 143 a p. 145.