Aguarelas Finas, Le Corbusier | Maison La Roche, Paris

12 novembro 2012

O Mundo | Algures, de certo modo

A capacidade que temos para manobrar o mundo complexo que nos rodeia
depende desta possibilidade de apreender e de recordar -
apenas reconhecemos pessoas e locais porque criamos registos da sua aparência
e recuperamos parte desses registos na altura própria.
A nossa capacidade para imaginar eventuais acontecimentos
também depende da aprendizagem e da recordação,
e é o fundamento do raciocínio e da navegação imaginária do futuro e,
de uma forma mais geral, da criação de soluções inovadoras para um problema.
Para entendermos como tudo isto acontece temos de desvendar no cérebro os segredos
do "certo modo" e localizar o "algures".
Esse é um dos problemas mais complexos da neurologia contemporânea.
(…)
Aquilo que normalmente nos referimos como sendo a memória de um objecto
é a memória composta das actividades sensoriais e motoras com a interacção
entre o organismo e o objecto durante um certo período de tempo.
A gama de actividades sensório-motoras varia com o valor do objecto e com as circunstâncias,
o mesmo sucedendo com o registo dessas actividades.
As nossas memórias de determinados objectos são regidas pelo conhecimento passado de objectos comparáveis ou de situações semelhantes àquela que estamos a viver.
As nossas recordações são afectadas por preconceitos, na verdadeira acepção do termo, dada a nossa história passada e as nossas crenças.
A memória inteiramente fidedigna é um mito,
apenas aplicável a objectos triviais.
A noção de que o cérebro retém seja o que for como uma "memória isolada do objecto" não parece sustentável.
O cérebro retém uma memória daquilo que aconteceu durante a interacção,
e a interacção inclui de forma relevante o nosso próprio passado, e muitas vezes o passado da nossa espécie biológica e da nossa cultura.
O facto de apreendermos por interactividade, e não por recepção passiva, é o segredo do
"efeito proustiano" na memória, a razão pela qual muitas vezes recordamos contextos e não apenas coisas isoladas.

in: António Damásio, O Livro da Consciência, p. 169 a 171.