Aguarelas Finas, Le Corbusier | Maison La Roche, Paris

05 dezembro 2025

A Metamorfose | Franz Kafka

Certa manhã, ao acordar após sonhos agitados, Gregor Samsa viu-se na sua cama, metamorfoseado num monstruoso insecto. Estava deitado de costas, umas costas tão duras como uma carapaça, e, ao levantar um pouco a cabeça, viu o seu ventre acastanhado, inchado e arredondado em anéis rígidos, sobre o qual o cobertor, quase a escorregar, dificilmente se mantinha. As suas numerosas patas, lamentavelmente raquíticas, comparadas com a sua corpulência, remexiam-se desesperadamente diante dos seus olhos. «O que me aconteceu?», pensou. Mas não era um sonho. O seu quarto, um verdadeiro quarto humano, apenas um pouco acanhado, ali estava, tranquilo, entre as quatro paredes que ele bem conhecia. (…)

Gregor - disse uma voz, que era a da mãe - é um quarto para as sete. Não tinhas de apanhar o comboio? (…) Gregor, abre a porta, anda. (…)

Era uma voz de animal. (…)

Será que isto significa que estou com menor sensibilidade? - Pensou, ao sugar avidamente o queijo (…)

Se ao menos conseguisse falar com a irmã e agradecer-lhe por tudo o que ela tinha sido obrigada a fazer por ele, estaria mais à vontade para aceitar os seus cuidados, mas nas condições em que se encontrava, isso fazia-o sofrer. (…)

Um dia - já tinha decorrido cerca de um mês desde a metamorfose de Gregor e a sua irmã já não deveria espantar-se ao vê-lo (…)

Queridos pais - disse a irmã, batendo com mão na mesa, à laia de início de conversa - isto não pode continuar assim. Talvez não estejam convencidos, mas eu sim. Não quero, em frente deste monstruoso animal, pronunciar o nome do meu irmão, unicamente afirmo: devemos desembaraçar-nos dele. Tentámos de tudo o que era humanamente possível para tomar conta dele e suportá-lo com paciência; creio que ninguém nos pode censurar seja do que for. - Ela tem toda a razão - disse o pai para si mesmo. A mãe, que não conseguia retomar uma respiração normal, levou a mão à boca e, revirando os olhos, tossiu surdamente. (…)

Mas Gregor, de modo algum, pensava em meter medo a quem quer que fosse, sobretudo à sua irmã. (…)

«E Agora?», perguntou para si mesmo Gregor, olhando em volta, na obscuridade. Bem depressa descobriu que não conseguia mover-se. Não ficou surpreendido com isso; ter conseguido até agora deslocar-se com aquelas patinhas raquíticas, isso é que era pouco natural. Entretanto, sentia um aparente bem estar, apesar de sentir dores um pouco por todo o corpo, mas tinha a impressão de que se tornaram gradualmente mais fracas e que acabariam por desaparecer. A maçã podre cravada no seu dorso e a parte inflamada à sua volta, sob uma camada de pó pegajosa, já não se faziam sentir. Voltou a pensar na sua família com ternura e amor. A ideia de que ele deveria desaparecer era mais firme nele, possivelmente, do que na sua irmã. Permaneceu naquele estado de sonho vago e apaziguador até ao momento em que as três horas da madrugada soaram no relógio. Ainda viu a claridade que alastrava diante da sua janela, lá fora. Depois, finalmente, sem nada poder fazer, a cabeça descaiu e deixou escapar debilmente um último sopro de vida. (…)


in: A Metamorfose, de Franz Kafka, Ed. Leya, Portugal, 2013

15 novembro 2025

Se Isto é Um Homem | Primo Levi

As suas mulheres foram ciosas e rápidas, de forma a terem tempo para o luto; e quando tudo ficou pronto, as fogaças cozidas, as trouxas atadas, então tiraram os sapatos, soltaram os cabelos, dispuseram no chão as velas fúnebres, acenderam-nas conforme o costume dos antepassados, sentaram-se no chão em círculos para a lamentação, e toda a noite rezaram e choraram. Muitos de nós parámos diante da sua porta, e nas nossas almas desceu, nova para nós, a dor antiga do povo que não tem terra, a dor sem esperança do êxodo renovado século após século. (…)

Toquei o fundo. A apagar o passado e o futuro aprende-se rapidamente, se a necessidade empurra. Passados quinze dias da chegada, já sofro da fome regulamentar, a fome crónica desconhecida dos homens livres, que provoca sonhos de noite e se espalha em todos os membros dos nossos corpos; já aprendi a não me deixar roubar, pelo contrário, se encontro alguma colher, um cordel, um botão que possa apanhar sem perigo de punição, ponho-os no bolso e passo a considerá-los meus de pleno direito. Já apareceram, na sola dos meus pés, as chagas que não saram. Empurro vagões, trabalho com a pá, canso-me à chuva, tremo ao vento; até o meu próprio corpo já não me pertence. (…)

Vamos morrer todos, estamos prestes a morrer; se me sobrarem dez minutos entre o acordar e o trabalho, quero dedicá-los a outras coisas, fechar-me em mim próprio, fazer o balanço, ou então olhar o céu e pensar que talvez esteja a vê-lo pela última vez; ou mesmo só deixar-me viver, conceder-me o luxo de um breve ócio. (…)

Que somos escravos, privados de qualquer direito, expostos a qualquer injúria, condenados quase com certeza à morte, mas que uma faculdade nos restou, e temos de a defender com todo o vigor porque é a última: a faculdade de negar o nosso consentimento. Temos portanto, sem dúvida de lavar a cara sem sabão na água suja, e limparmo-nos ao casaco. Temos de engraxar os sapatos, não porque a tal obriga o regulamento, mas por dignidade e por propriedade. Temos de caminhar direitos, sem arrastar as socas, certamente não em homenagem à disciplina prussiana, mas para nos mantermos vivos, para não começarmos a morrer. (…)

Os dias são todos iguais, e não é fácil contá-los. (…) Homens e mais homens, escravos e patrões, os patrões eles próprios escravos; uns empurrados pelo medo, os outros pelo ódio, todas as outras forças emudeceram. Todos são nossos inimigos ou nossos rivais. (…)

Não se deve sonhar: o momento de consciência que acompanha o acordar é o sofrimento mais intenso. Mas não nos acontece muitas vezes, e os sonhos não duram muito tempo: mais não somos do que animais cansados. (…)

A fama de sedutor, de «organizado», provoca, ao mesmo tempo, inveja, escárnio, desprezo e admiração. Quem deixa que o vejam, enquanto come qualquer coisa de «organizado» é julgado muito severamente; trata-se de uma falta grave de pudor e de diplomacia (…)

21. Janeiro. (…) Desejava apenas uma coisa: ficar na cama debaixo dos cobertores, abandonar-me ao cansaço total de músculos, nervos e vontade, esperar que acabasse, ou não, era a mesma coisa, como um morto. (…)


 in: Se Isto é um Homem, de Primo Levi, Coleção Mil Folhas, Porto, Maio 2002 (1ª Ed. 1958) 

Devaneios com Linhas | Exposição

 


in: Devaneios com Linhas, de Ana Gaspar, 2019, 2020 e 2021

28 outubro 2025

Alice no País das Maravilhas | Lewis Carroll

 «Era muito mais agradável em casa, quando não estava sempre a crescer e a encolher, nem a receber ordens de ratos e de coelhos» pensou a pobre Alice. «Quase me arrependo de ter descido pela toca do coelho… E, no entanto… no entanto… Este género de vida é muito interessante! O que me terá acontecido? Era isso que gostava de saber! Dantes, quando lia contos de fadas, julgava que aquelas histórias não aconteciam, e agora estou no meio de uma! Deviam escrever um livro acerca de mim - ah, isso é que deviam! Quando eu for grande hei-de escrevê-lo.» (…)

- Lamento não ser capaz de lhe explicar melhor - retorquiu Alice, com toda a delicadeza. - Para começar, porque nem eu entendo. E depois, porque é muito confuso ter vários tamanhos diferentes num só dia. (…)

- Mas oito centímetros é uma altura excelente! - ripostou a Lagarta, levantando-se (media exatamente sete centímetros e sessenta e dois milímetros). 

- Mas eu não estou habituada - defendeu-se a pobre Alice, numa voz chorosa. E para consigo: «Quem me dera que estes bichos não se ofendessem tão facilmente!» (…)

- Que género de pessoas moram aqui? 

- Naquela direção - disse o Gato, acenando a pata direita - vive o Chapeleiro. E naquela direção (acenou a outra pata) vive a Lebre de Março. Podes visitar quem tu quiseres: são ambos malucos.

- Mas eu não quero estar no meio de malucos - observou a Alice. 

- Oh, não podes evitá-lo. Aqui, somos todos malucos. Eu sou maluco. Tu és maluca.

- Como é que sabes que eu sou maluca? 

- Deves ser, ou não terias chegado até aqui. (…)

- Se conhecesses o Tempo tão bem como eu, não falarias assim - disse o Chapeleiro. - O Tempo é um senhor. (…) Ele não suporta que o marquem. Mas, se o tivesses tratado como deve ser, ele faria com o relógio quase tudo o que quisesses. (…)

- Bom, eu não tinha completado o primeiro verso - continuou o Chapeleiro - quando a Rainha deu um salto e berrou: «Ele está a matar o tempo! Cortem-lhe a cabeça!» 

- Que crueldade horrorosa! exclamou Alice.

- E desde aí, o relógio deixou de fazer o que lhe peço - concluiu o Chapeleiro, com tristeza. - Agora são sempre seis da tarde. (…)

- Juro que nunca mais hei-de voltar ali! - exclamou Alice, enquanto caminhava em direção à floresta. (…) Ainda mal acabara de dizer isso quando notou que uma das árvores tinha uma porta por onde se podia entrar. «Muito interessante», pensou. «Mas hoje é tudo interessante. Acho que vou já entrar.» E assim foi. (…) Então, atravessou aquela passagem estreita e viu-se, finalmente, no lindo jardim de flores viçosas e fontes refrescantes. (…)

Havia uma grande roseira à entrada do Jardim. Dava rosas brancas, mas três jardineiros estavam muito atarefados a pintá-las de vermelho. (…) 

Alice nunca vira um campo como aquele, todo aos altos e baixos. As bolas eram porco-espinhos vivos, os maços eram flamingos (também vivos) e os soldados tinham de se dobrar em semicírculo para formarem os arcos, apoiados nos pés e nas mãos.

- Assim é - concordou a Duquesa. - E a moral que devemos retirar daí é: «Oh, é o amor! É o amor que faz girar o mundo!» (…)

E a moral disso é: «Olha pelo significado, que o significado olha por si.» (…)


in: Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll, Editora Fábula, Lisboa, 2022

30 setembro 2025

Perto do Coração Selvagem | Clarice Lispector

 Mente-se e cai-se na verdade. (…) Ser livre era seguir-se afinal e eis de novo o caminho traçado. Ela só veria o que já possuía dentro de si. Perdido pois o gosto de imaginar. (…)

Lembro-me de um estudo cromático de Bach e perco a inteligência (…) Quem sou? (…)

Piedade é a minha forma de amor. (…) Por ter sofrido e continuar docemente. A dor cansada numa lágrima simplificada. Mas agora já é desejo de poesia, isso eu confesso, Deus. Durmamos de mãos dadas. O mundo rola e em alguma parte há coisas que não conheço. (…)

Era um pouco de febre sim. Se existisse pecado, ela pecara. Toda a sua vida fora um erro, ela era fútil. Onde estava a mulher da voz? Onde estavam as mulheres apenas fêmeas? (…)

Ser feliz é para se conseguir o quê? (…) Não gosto de me divertir, disse Joana com orgulho. (…)

Desceu das rochas, caminhou fracamente pela praia solitária até receber a água nos pés. (…) Era uma coisa que vinha do mar, que vinha do gosto de sal na boca, e dela, dela própria. Não era tristeza, uma alegria quase horrível (…)

A impossibilidade de ultrapassar a eternidade era a eternidade. (…)

O pensamento só era igual à música criando-se. (…)

Era a segunda vertigem num só dia! (…) Com mais raiva de tudo (…) No entanto, não era raiva, era amor. Amor tão forte que só se esgotava no ódio. (…) Sozinha. (…)

Liberdade é pouco, o que desejo ainda não tem nome. (…) Grito-me. (…) O movimento explica a forma. (…)

A plenitude tornou-se dolorosa e pesada e Joana era uma nuvem prestes a chover. (…) Sofrer pelo que a tornara terrivelmente feliz! (…) Sabia que o professor adoecera e fora abandonado pela mulher. (…) 

Porque tudo segue o caminho da inspiração. O início de toda a construção é porquê? (…)

Jamais se entregara. (…) É que tudo o que tenho não se pode dar. (…) Tudo o que sei nunca aprendi e nunca poderei ensinar. (…)

A solidão está misturada à minha essência. (…) Está gravado em mim que o amor cessa na morte. (…) Pois seu corpo, nunca precisava de ninguém, era livre. (…)

Eternidade é não ser. (…) Imortal para todo o sempre. (…) Uma nova matéria e não sabia (…)

Nada impedirá meu caminho até à morte-sem-medo, de qualquer luta ou descanso me levantarei forte e bela como um cavalo novo. 


in: Perto do Coração Selvagem, de Clarice Lispector, Companhia das Letras, Lisboa, Março 2025

13 agosto 2025

Uma Sociedade | Virginia Woolf

- Poesia! Poesia! - gritámos, impacientes.

- Lê-nos poesia! - Nem consigo descrever a desolação que se apoderou de nós quando ela abriu um pequeno volume e começou a declamar a verbosa e sentimental tolice que continha. (…)

- Deve ter sido escrito por uma mulher - atalhou uma de nós.

Mas não. Ela disse-nos que fora escrito por um jovem, um dos mais célebres poetas do momento. Mal podem imaginar o estado de choque em que esta descoberta nos deixou. (…)

Ficámos todas em silêncio; e, nesse silêncio, ouvia-se a desgraçada da Poll a soluçar: 

- Porquê que o meu pai me ensinou a ler? 

Clorinda foi a primeira a cair em si.

- A culpa é toda nossa - disse. Todas nós sabemos ler. Mas nenhuma de nós, tirando a Poll, se deu ao trabalho de o fazer. Eu, por exemplo tomei como certo que era dever de uma mulher passar a juventude a dar à luz. Venerava a minha mãe por ter tido dez filhos; a minha avó, que pôs quinze neste mundo; a minha própria ambição, devo confessar, era ter uma vintena. Ao longo de todo este tempo, sempre acreditámos que os homens eram igualmente laboriosos e que as suas obras tinham igual mérito. Enquanto dávamos à luz os filhos, eles, julgávamos nós, davam à luz os livros e as pinturas. Nós povoámos o mundo. Eles civilizaram-no. Mas, agora que sabemos ler, o que nos impede de julgar os resultados? Antes de trazermos outra criança ao mundo, devemos prometer que iremos descobrir a verdadeira natureza deste. 

Por isso, constituímo-nos numa sociedade destinada a fazer perguntas. (…)

- Desde Safo, não houve mais nenhuma mulher de primeira categoria … - começou a Eleanor, citando um semanário. (…)

- Assim, nunca mais chegaremos a nenhuma conclusão - queixou-se. - Como a civilização parece muito mais complexa do que imaginámos, não seria melhor limitarmos-nos à nossa questão original? Concordámos que o objetivo da vida era produzir boas pessoas e bons livros. (…)

- Assim que aprender a ler, só há uma coisa em que podes ensiná-la a acreditar, e é em si mesma. (…)

 

in: Uma Sociedade, de Virginia Woolf, Penguim Clássicos, Nº4, Lisboa, 2025

28 julho 2025

A Dama de Espadas | Puskine

O jogo interessa-me muito- disse Hermann - mas não posso arriscar o necessário para obter o supérfluo. 

- Hermann é alemão: é económico, está tudo dito - observou Tomski. - Mas, se há alguém a quem eu, neste caso, não compreenda, é a minha avó, a condenssa Ana Fédovna. (…) - Ora essa! - disse Narumof. - Que pode haver de estranho em que uma mulher de oitenta anos não jogue? (…) - Pois então, ouçam.

Antes de mais, importa dizer-lhes que a minha avó, há uns sessenta anos, foi a Paris, onde fez furor. Seguiam-na aos grupos; toda a gente queria ver a Vénus Moscovita. Richelieu, que lhe fez corte, quase se suicidou por ela não corresponder aos seus desejos. Nesse tempo as damas tomavam atitudes de rainhas. (…) Uma noite, na corte, a minha avó, que estava a jogar contra o duque de Orleães, perdeu (…) confessou a sua dívida ao meu avô; convidou-o a pagá-la. (…) Temia-a como ao fogo. (…) Em resumo, recusou-se a pagar. A avó deu-lhe uma bofetada e, para consumar a desgraça, foi dormir noutro quarto. (…) 

Mas, meu caro Conde - respondeu a minha avó - já lhe disse que não ficámos com dinheiro nenhum! - Nem é preciso - replicou Saint- Germain. - Ora faça favor de ouvir o que lhe vou dizer … E revelou-lhe então um segredo que qualquer de nós pagaria por um bom preço … Os jovens jogadores redobraram de atenção. Tomski acendeu o cachimbo, tirou uma fumaça e continuou: (…) 

Como está o tempo? Há vento, não? - Não, excelência - respondeu o criado de quarto - está muito agradável. - Vocês respondem sempre ao acaso. Abre a janela. Bem dizia eu! Está vento; e um vento desabrido. Manda desatrelar! Lisanka, não saímos. (…) "E é isto a minha vida!" pensou Lisavete Ivanovna. 

 Lisavete Ivanovana era na verdade, muito infeliz. (…) Era avara e comprazia-se num pio egoísmo, como todos os velhos para os quais o amor morreu e que são hostis ao presente. (…) Vestida e pintada à moda antiga, ficava sentada a um canto, adorno repugnante e obrigatório dos salões de baile. (…) Em sociedade, o seu papel era dos mais miseráveis. Todos a conheciam, ninguém reparava nela. (…)

A condessa não respondeu. Hermann apercebeu-se então de que estava morta. (…) Ninguém chorava (…) A condessa era tão velha que a sua morte não podia surpreender ninguém e há muito tempo os parentes a consideravam como já não fazendo parte deste mundo. (…) 

Mas a mulher vestida de branco aproximou-se mais, colocou-se diante dele e Hermann reconheceu a condessa. (…) Vim a tua casa contra a minha vontade - disse em voz firme - Mas foi-me ordenado que satisfizesse o teu pedido. Terno … sete … às … ganharão a seguir,  mas é preciso que jogues só uma carta por noite e que nunca mais voltes a jogar em toda a tua vida. Perdoar-te-ei a minha morte com a condição de casares com a minha protegida Lisavete Ivanovna. (…) e escreveu a narrativa da sua visão. (…) Hermann bebeu um copo de limonada e voltou para casa. (…)

O às ganha! Disse Hermann - A sua dama perdeu - disse Tchekalinski com suavidade. Hermann estremeceu: com efeito, em vez de um ás, tinha na mão a dama de espadas. Não acreditava no que lhe diziam os seus olhos, não compreendia qual a razão do seu equívoco. No mesmo instante pareceu-lhe que a dama de espadas piscava maliciosamente um olho e lhe sorria. De súbito, reparou na semelhança extraordinária … - A velha! - exclamou espantado. Tchekalinski recolhia as notas. (…)

Hermann enlouqueceu. (…) murmura numa obcecação contínua: «Terno, sete, às! Terno, sete, dama!»


in: A Dama de Espadas, de Puskine, Publicações Europa-América, Lisboa, Julho de 2007 (Diário de Notícias)

12 julho 2025

O Coração da Bruxa | Genevieve Gornichec

 Asgard era um lugar novo, apareceu uma bruxa vinda dos confins dos mundos. Conhecia muitos feitiços antigos, mas era especialmente habilidosa com seior, uma magia que permitia viajar para fora do corpo e adivinhar o futuro. (…)

Espetaram-lhe lanças e queimaram-na três vezes, e três vezes a bruxa renasceu. (…) Quando os Vanir souberam do modo como os Aesir a estavam a tratar, ficaram furiosos, e assim foi declarada a primeira guerra no cosmos. De terceira vez que renasceu, Gulleveig fugiu, no entanto, deixou algo para trás: o coração trespassado por uma lança e ainda a fumegar na pira. Foi aí que ele o encontrou. (…) 

Encontrou a bruxa a contemplar a deusa floresta e as montanhas que se viam ao longe (…) o sol brilhava, mas ela estava sentada à sombra, encostada ao tronco de uma árvore, com as mãos cruzadas no colo. (…)

És uma mulher difícil de encontrar (…) Estava ali para devolver o que ela deixara no salão de Odin (…) algo o atraía nesse dia, até à floresta de ferro, com o coração da bruxa no saco. (…) A princípio a bruxa não respondeu, optando por estudar o estranho homem que se aproximava. (…) Admiro sinceramente o teu trabalho. (…) consegues semear o caos onde quer que vás. Fazes com que os poderosos lutem pelos seus talentos. É realmente impressionante. - Não era essa a minha intenção - replicou a bruxa, passado um momento. (…)

Angrboda fez a sua casa no extremo oriental da Floresta de Ferro, onde as árvores se agarram precariamente às montanhas escarpadas (…)

Não sabia quanto tempo passara desde que se tinham encontrado junto ao rio, mas o seu cabelo castanho-claro já tinha crescido, liso e bonito. (…)

E assim Skadi construiu-lhe uma mesa, dois bancos e um estrado de cama, que encostaram à parede e cobriram com cobertores e peles (…) mas a melhor criação da caçadora foi a última: uma cadeira, para colocar junto à lareira. Angboda gravou-a com padrões e espirais e colocaram peles sobre o assento para ficar mais confortável. (…)

Desde que chegara à Floresta de Ferro, depois de ter sido queimada, os bosques tornavam-se mais verdes a cada primavera (…)

Loki (…) quando deixo o meu corpo sinto-me ligada a tudo. Sou parte de todos os mundos (…) coisas que ainda não aconteceram (…)

Ali ficaram a olhar uma para a outra (…) passou o dedo numa das espirais que gravara no braço à muito tempo! (…)

Havia aqui uma bruxa que deu à luz os lobos (…)

Com poções e feitiços curou os doentes (…) aquela ajuda parecia-lhe natural. (…)

Dormia quase sempre sozinha, sob a capa, nas florestas ou nas montanhas (…) os únicos ornamentos que possuía eram as contas de âmbar, o cinto e a faca (…) Por vezes a cabeça doía-lhe tanto que nem sequer conseguia andar (…) 

Concebe o último desejo a uma mulher morta - sussurrou Skadi (…) e deixa-me partilhar a tua cama, partilhá-la verdadeiramente, esta e todas as noites até ao fim. E, Angrboda assim fez. Os meses que se seguiram pareciam quase um sonho (…)

Quando o dera à luz, era apenas uma cobra verde, pequena, agora a sua cabeça assemelhava-se mais à de um dragão. (…)

Quando voltou a abrir os olhos (…) envolta dos ombros da amante. (…) Conseguiste. Está na hora. (…) 

(…) a faca de cabo de cifre de Angboda, aquela que usava no cinto (…) olhou para a espada à cintura de Skadi e perguntou: - Era do teu pai? (…)


in: O Coração da Bruxa, de Genevieve Gornichec, Editora Minotauro, 2023