A água do rio continua a correr… O presente espaço é uma partilha de palavras e de imagens, desabafos e expressões com emoção e significado próprio…
25 setembro 2014
O Jardim | Poema
O jardim é o meu refúgio
As árvores protegem
As flores sorriem
Os pássaros cantam
As plantas salpicam a terra
Tudo enquanto descanso
As folhas que se soltaram esvoaçam por ali
Tudo tranquilo
O ritmo da vida na Terra é sereno
Só nós corremos contra o vento
Corremos contra nós mesmos
Corremos para uma morte anunciada
O jardim esse adapta-se
Congratula-se pelas estações do ano
Veste-se e despe-se naturalmente
Deixa-se estar
Vive simplesmente.
17 setembro 2014
Simples Diários Complexos | Edgar Morin
Opor questões científicas com humanistas, para Morin, é perder dos dois lados. Vivemos em um mundo onde nunca se disseminou tanto conhecimento e, por isso, articular as diferentes áreas nunca foi tão necessário, segundo o filósofo. Justamente pelo facto de o mundo ter ficado mais complexo, Morin busca novas estruturas mentais de compreensão desse novo universo, formas alternativas de integração.
(…)
Quando se escreve um livro vira uma testemunha.
(…)
Há muitas razões: para os críticos, os escritores, os filósofos, os sociólogos, eu sou uma espécie de camaleão, não sou um escritor, não sou um filósofo, um sociólogo, não tenho forma, não tenho etiqueta, logo não inspiro interesse. Então, uma maneira de fazer as minhas ideias serem conhecidas é fazê-las passar também pelas entrevistas. Me sinto um pouco obrigado a dar entrevistas.
(…)
Bom, para começar a curiosidade é própria das crianças, mas se os professores não têm paixão, se estão entediados, acabam arrefecendo a curiosidade delas. Creio que há dois problemas: uma coisa que diria Platão é que para ensinar é necessário amor, paixão. Essas condições não estão num manual, porém são fundamentais; o segundo problema é que precisamos relacionar as disciplinas múltiplas. Se você fizer a seguinte pergunta: "o que é ser humano?" Essa é uma pergunta sobre os diversos saberes que temos em relação ao ser humano. Eu vejo que as ciências humanas estão dispersas, a Psicologia, a Sociologia. Também temos os conhecimentos que nos dá a Literatura, porque ela nos ensina sobre o ser humano. Podemos pensar também na Biologia… Se você ensina o que é o ser humano aos seus alunos, você os cativa. Eu acho que uma ciência muito interessante é a História.
(…)
Bom, a complexidade foi formulada pela primeira vez entre matemáticos, engenheiros e cibernéticos. … Eu creio que nós estamos numa época em que a complexidade se impõe sobre a compartimentação. É um novo caminho para o mundo, para o ensino. Isso já acontece em alguns países da América Latina, o Brasil, por exemplo. Sobretudo é necessária uma mudança de estrutura mental.
(…)
É muito difícil definir a inteligência porque não é um quociente individual. A inteligência é um conjunto de qualidades muito diferentes porque necessita de capacidades de síntese, de análise e, no mínimo, de capacidade reflexiva e autocrítica. A inteligência necessita também de sensibilidade, porque a razão fria é muito limitada, mas uma paixão sem razão é muito limitada também. É necessária a mistura de razão e paixão. Então penso que a inteligência não tem uma definição simples. Há uma complexidade de elementos que permitem a inteligência. Há outra coisa que ultrapassa a inteligência, que é a capacidade de criar. A criatividade é algo em que é preciso capacidade intelectual, mental, cerebral. A possibilidade de fazer uma combinação nova, de fazer descobertas novas também exige inteligência. … Então, a inteligência é a capacidade de admiração, de se inquietar, a curiosidade… muitas coisas se somam à inteligência, é um coktail, e quando bem feito é como uma boa caipirinha.
in: Simples Diários Complexos, Edgar Morin por Sérgio Mélega, Revista Filosofia, Nº 78, 2013, pp. 5 a 13.
(…)
Quando se escreve um livro vira uma testemunha.
(…)
Há muitas razões: para os críticos, os escritores, os filósofos, os sociólogos, eu sou uma espécie de camaleão, não sou um escritor, não sou um filósofo, um sociólogo, não tenho forma, não tenho etiqueta, logo não inspiro interesse. Então, uma maneira de fazer as minhas ideias serem conhecidas é fazê-las passar também pelas entrevistas. Me sinto um pouco obrigado a dar entrevistas.
(…)
Bom, para começar a curiosidade é própria das crianças, mas se os professores não têm paixão, se estão entediados, acabam arrefecendo a curiosidade delas. Creio que há dois problemas: uma coisa que diria Platão é que para ensinar é necessário amor, paixão. Essas condições não estão num manual, porém são fundamentais; o segundo problema é que precisamos relacionar as disciplinas múltiplas. Se você fizer a seguinte pergunta: "o que é ser humano?" Essa é uma pergunta sobre os diversos saberes que temos em relação ao ser humano. Eu vejo que as ciências humanas estão dispersas, a Psicologia, a Sociologia. Também temos os conhecimentos que nos dá a Literatura, porque ela nos ensina sobre o ser humano. Podemos pensar também na Biologia… Se você ensina o que é o ser humano aos seus alunos, você os cativa. Eu acho que uma ciência muito interessante é a História.
(…)
Bom, a complexidade foi formulada pela primeira vez entre matemáticos, engenheiros e cibernéticos. … Eu creio que nós estamos numa época em que a complexidade se impõe sobre a compartimentação. É um novo caminho para o mundo, para o ensino. Isso já acontece em alguns países da América Latina, o Brasil, por exemplo. Sobretudo é necessária uma mudança de estrutura mental.
(…)
É muito difícil definir a inteligência porque não é um quociente individual. A inteligência é um conjunto de qualidades muito diferentes porque necessita de capacidades de síntese, de análise e, no mínimo, de capacidade reflexiva e autocrítica. A inteligência necessita também de sensibilidade, porque a razão fria é muito limitada, mas uma paixão sem razão é muito limitada também. É necessária a mistura de razão e paixão. Então penso que a inteligência não tem uma definição simples. Há uma complexidade de elementos que permitem a inteligência. Há outra coisa que ultrapassa a inteligência, que é a capacidade de criar. A criatividade é algo em que é preciso capacidade intelectual, mental, cerebral. A possibilidade de fazer uma combinação nova, de fazer descobertas novas também exige inteligência. … Então, a inteligência é a capacidade de admiração, de se inquietar, a curiosidade… muitas coisas se somam à inteligência, é um coktail, e quando bem feito é como uma boa caipirinha.
in: Simples Diários Complexos, Edgar Morin por Sérgio Mélega, Revista Filosofia, Nº 78, 2013, pp. 5 a 13.
10 setembro 2014
No Teu Deserto | Miguel Sousa Tavares
… tu foste tomar banho em primeiro lugar. E porque a porta da casa de banho não encostava bem - e não sei se reparaste nisso - de onde eu estava, estirado na cama, a repousar das oito horas ao volante mais o resto, vi-te a despir, a ficares toda nua e a entrares na banheira de água quente e nem por um momento me ocorreu deixar de o fazer. Estava cansado de mais para desviar o olhar.
(…)
Dormias profundamente, com a cara virada para mim e a tua mão direita pousada sobre o meu ombro. Como se fôssemos íntimos.
(…)
- Claudia, desculpa se te tratei mal: estava muito cansado. Mas, por favor, vem para a tenda!
O meu querido companheiro do deserto!
(…)
- Vira-te de costas, que me vou despir.
Mas, depois, veio e deitou-se abraçada a mim. Ou assim me pareceu.
(…)
Sim, é verdade: eu encostei-me a ti e abracei-te, nessa primeira noite na nossa tenda, no camping de Ghardaia, quando nos deitámos as duas horas que faltavam antes de partirmos para o deserto.
Encostei-me a ti e abracei-te sem sequer pensar no que estava a fazer: apeteceu-me, senti que não havia nenhuma razão para não o fazer. O teu cansaço comoveu-me e a tua delicadeza, ao deixares tanto espaço livre para mim ao lado do teu saco-cama, foi irresistível.
(…)
- Claudia, não precisas de falar só porque vamos calados. A coisa mais difícil e mais bonita de partilhar entre duas pessoas é o silêncio.
(…)
- Mas tu não poupas as palavras: tu escreves. Todas as noites gastas uma hora a escrever um diário nesse teu caderno…
(…)
Não me acordes agora, não me fales alto antes de me falares ao ouvido, não me tragas de volta do deserto.
(…)
- Sabes apetecia-me estar lá, no deserto. Não consegui ainda habituar-me a isto.
- Tens de te habituar. A vida é assim mesmo, nada dura para sempre. Só os rios e as montanhas, como diziam os índios da América.
(…)
Sem que eu tivesse de pensar em nada quando acordava, sem ter de planear os dias, de encher os dias, de enganar o vazio de tudo. Era isso, meu querido, mais do que tudo, que me dava essa incrível sensação de conforto, de segurança. Eras tu: tu estavas ali, tu tinhas tudo planeado e pensado e, por mais insuportável que às vezes me parecesse essa tua obsessiva organização e teimosia, por mais que tantas vezes te contrariasse só para te ver irritado ou para simular uma revolta que de todo não sentia nem queria que sentisses, esses foram os dias inesquecíveis em que soube que alguém cuidava de mim, que alguém me tinha pegado na mão e me conduzia por onde não havia nada - nem estradas, nem casas … nem árvores … - e a minha única tarefa era deixar-me conduzir por ti, entre a lucidez e o sonho.
(…)
Já sei, já sei que nada dura para sempre - só as montanhas e os rios, meu sábio.
in: No Teu Deserto, de Miguel Sousa Tavares, Oficina do Livro, Lisboa, 2009, p. 54, 62, 73, 89, 91, 97, 100, 105, 107, 108, 111.
(…)
Dormias profundamente, com a cara virada para mim e a tua mão direita pousada sobre o meu ombro. Como se fôssemos íntimos.
(…)
- Claudia, desculpa se te tratei mal: estava muito cansado. Mas, por favor, vem para a tenda!
O meu querido companheiro do deserto!
(…)
- Vira-te de costas, que me vou despir.
Mas, depois, veio e deitou-se abraçada a mim. Ou assim me pareceu.
(…)
Sim, é verdade: eu encostei-me a ti e abracei-te, nessa primeira noite na nossa tenda, no camping de Ghardaia, quando nos deitámos as duas horas que faltavam antes de partirmos para o deserto.
Encostei-me a ti e abracei-te sem sequer pensar no que estava a fazer: apeteceu-me, senti que não havia nenhuma razão para não o fazer. O teu cansaço comoveu-me e a tua delicadeza, ao deixares tanto espaço livre para mim ao lado do teu saco-cama, foi irresistível.
(…)
- Claudia, não precisas de falar só porque vamos calados. A coisa mais difícil e mais bonita de partilhar entre duas pessoas é o silêncio.
(…)
- Mas tu não poupas as palavras: tu escreves. Todas as noites gastas uma hora a escrever um diário nesse teu caderno…
(…)
Não me acordes agora, não me fales alto antes de me falares ao ouvido, não me tragas de volta do deserto.
(…)
- Sabes apetecia-me estar lá, no deserto. Não consegui ainda habituar-me a isto.
- Tens de te habituar. A vida é assim mesmo, nada dura para sempre. Só os rios e as montanhas, como diziam os índios da América.
(…)
Sem que eu tivesse de pensar em nada quando acordava, sem ter de planear os dias, de encher os dias, de enganar o vazio de tudo. Era isso, meu querido, mais do que tudo, que me dava essa incrível sensação de conforto, de segurança. Eras tu: tu estavas ali, tu tinhas tudo planeado e pensado e, por mais insuportável que às vezes me parecesse essa tua obsessiva organização e teimosia, por mais que tantas vezes te contrariasse só para te ver irritado ou para simular uma revolta que de todo não sentia nem queria que sentisses, esses foram os dias inesquecíveis em que soube que alguém cuidava de mim, que alguém me tinha pegado na mão e me conduzia por onde não havia nada - nem estradas, nem casas … nem árvores … - e a minha única tarefa era deixar-me conduzir por ti, entre a lucidez e o sonho.
(…)
Já sei, já sei que nada dura para sempre - só as montanhas e os rios, meu sábio.
in: No Teu Deserto, de Miguel Sousa Tavares, Oficina do Livro, Lisboa, 2009, p. 54, 62, 73, 89, 91, 97, 100, 105, 107, 108, 111.
05 setembro 2014
Quando as Paixões Ultrapassam a Razão | Daniel Goleman
(…) Mal-grado estas restrições sociais, as paixões estão permanentemente a sobrepor-se à razão. Esta constante da natureza humana decorre da arquitectura básica da vida mental. Em termos de concepção biológica do circuito neuronal de emoções básico, aquilo com que nascemos é o resultado melhor para as últimas 50 000 gerações humanas. As forças lentas e deliberadas da evolução que moldaram as nossas emoções fizeram o seu trabalho ao longo de um milhão de anos; os últimos 10 000 - apesar de terem assistido à rápida ascenção da civilização humana e à explosão da população de cinco milhões para cinco biliões - quase não deixaram marca nas nossas matrizes biológicas para a vida emocional.
Para o melhor ou para o pior, a nossa avaliação de cada encontro pessoal e as nossas respostas a estes encontros não são determinadas apenas pelo nossos juízos racionais ou a nossa história pessoal, mas também pelo nosso passado ancestral. (…) Em resumo, muito frequentemente confrontamos dilemas pós-modernos com um repertório emocional feito à medida das exigências do Pleistoceno.
in: Inteligência Emocional, de Daniel Goleman, p. 27.
Para o melhor ou para o pior, a nossa avaliação de cada encontro pessoal e as nossas respostas a estes encontros não são determinadas apenas pelo nossos juízos racionais ou a nossa história pessoal, mas também pelo nosso passado ancestral. (…) Em resumo, muito frequentemente confrontamos dilemas pós-modernos com um repertório emocional feito à medida das exigências do Pleistoceno.
in: Inteligência Emocional, de Daniel Goleman, p. 27.
11 agosto 2014
Três Níveis de Subtileza
Três níveis distintos de informação e compreensão (...) Neste sentido, um famoso rabi do século XVII, Menasseh ben Israel, dizia que o Pentateuco, tem, como o homem, três níveis de subtileza:
. O Corpo Físico - o nível mais básico e imediatista, lido e entendido histórica e literalmente, (com proveito!), pelos "homens ignorantes".
. A Alma Racional - o nível intermédio, objecto do estudo dos "homens eruditos".
. O Espírito Imortal - o nível superior, sobre o qual os "homens sábios" meditam.
in: Letras Sagradas e Textos Inspirados, Revista Biosofia, Nº 41, 2012, p. 14.
31 julho 2014
O Guardador de Rebanho | Alberto Caeiro
Eu nunca guardei rebanhos,
Mas é como se os guardasse.
Minha alma é como um pastor,
Conhece o vento e o sol,
E anda pela mão das Estações
A seguir e a olhar.
Toda a paz da Natureza sem gente
Vem sentar-se a meu lado.
Mas eu fico triste como um pôr-do-sol
Para a nossa imaginação,
Quando esfria no fundo da planície
E se sente a noite entrada
Como uma borboleta pela janela.
Mas a minha tristeza é sossego
Porque é natural e justa
E é o que deve estar na alma
Quando já pensa que existe
E as mãos colhem flores sem ela dar por isso.
(…)
Não tenho ambições nem desejos.
Ser poeta não é uma ambição minha.
É a minha maneira de estar sozinho.
in: O Guardador de Rebanhos, (Textos seleccionados), de Alberto Caeiro, Edição Alma Azul, Coimbra, Poema I, p. 3 e 4.
Mas é como se os guardasse.
Minha alma é como um pastor,
Conhece o vento e o sol,
E anda pela mão das Estações
A seguir e a olhar.
Toda a paz da Natureza sem gente
Vem sentar-se a meu lado.
Mas eu fico triste como um pôr-do-sol
Para a nossa imaginação,
Quando esfria no fundo da planície
E se sente a noite entrada
Como uma borboleta pela janela.
Mas a minha tristeza é sossego
Porque é natural e justa
E é o que deve estar na alma
Quando já pensa que existe
E as mãos colhem flores sem ela dar por isso.
(…)
Não tenho ambições nem desejos.
Ser poeta não é uma ambição minha.
É a minha maneira de estar sozinho.
in: O Guardador de Rebanhos, (Textos seleccionados), de Alberto Caeiro, Edição Alma Azul, Coimbra, Poema I, p. 3 e 4.
22 junho 2014
William Morris | Casa da Cerca
Padrões de William Morris (1834 - 1896), um dos fundadores do movimento de Artes e Ofícios. Artista inglês, escritor e poeta.
in: Casa da Cerca, Almada, Portugal, Junho de 2014.
09 junho 2014
O Donjuanismo
Se amar fosse bastante, as coisas seriam simples de mais.
Quanto mais amamos mais o absurdo se consolida. Não é por falta de amor que Don Juan vai de mulher em mulher. É ridículo representá-lo como um iluminado, em busca do amor total. Mas é porque ele as ama com idêntico entusiasmo e sempre com inteireza, que lhe é necessário repetir esse dom e esse aprofundamento. Daí todas esperarem ofertar-lhe aquilo que nunca ninguém lhe deu. De todas as vezes se enganam profundamente e só conseguem fazer-lhe sentir a necessidade de tal repetição. «Finalmente - exclama uma delas - dei-te o amor.» E há quem se espante por Don Juan sorrir dessa ingenuidade. «Finalmente, não - diz ele - mas uma vez mais.» Porque seria necessário amar raramente para amar muito?
(…)
Não saber alegrar a alma já era vendê-la. Don Juan domina, pelo contrário, a saciedade. Se deixa uma mulher, não é em absoluto porque já não a deseja. Uma mulher bela é sempre desejável. É, sim, porque deseja outra, e, de facto, não se trata da mesma coisa.
Esta vida satisfá-lo, nada pior que perdê-la. Esse louco é um grande sábio. Mas os homens que vivem de esperança dão-se mal neste universo, onde a bondade cede o seu lugar à generosidade, a ternura ao silêncio viril, a convulsão à coragem solitária. E todos dizem: «Era um fraco, um idealista ou um santo.» Assim se minimiza a grandeza que insulta.
(…)
O inferno para ele é coisa que o provoca. Só tem uma resposta para dar à cólera divina, e é a honra humana: «Tenho honra - disse ele ao Comendador - e, cumpro a minha promessa porque sou cavaleiro.» Mas seria igualmente erróneo querer fazer dele um moralista. Pois ele é, a esse respeito, «como toda a gente»: tem a moral da sua simpatia ou da sua antipatia.
(…)
Seduzir é o seu estado. (…) O que Don Juan põe em acto é uma ética da quantidade, ao contrário do santo, que tende para a qualidade. Não acreditar no sentido profundo das coisas é próprio do homem absurdo. Percorre esses rostos calorosos ou maravilhados, enceleira-os e queima-os. O tempo avança com ele. O homem absurdo é aquele que não se separa do tempo. Don Juan não pensa em «coleccionar mulheres». Esgota-lhes o número e com elas esgota as suas possibilidades de vida. Coleccionar é ser capaz de viver do seu passado. Mas ele recusa a saudade, essa outra forma de esperança. Não sabe olhar os retratos.
Será por isso egoísta? À sua maneira, sem dúvida. Mas ainda nesse ponto, temos que nos entender. Há aqueles que são feitos para viver e os que são feitos para amar. Don Juan, pelo menos, di-lo-ia de boa vontade. Mas di-lo-ia metendo por um atalho, à sua maneira. Porque o amor de que aqui se fala é enfeitado com as ilusões do eterno. Todos os especialistas da paixão no-lo dizem, não há amor eterno, a não ser contrariado. Não existe paixão sem luta. Tal amor só encontra fim na derradeira contradição, que é a morte. É preciso ser Werther ou nada. Ainda aí, há várias maneiras de alguém se suicidar, uma das quais é o dom total e o esquecimento de si próprio.
(…)
Só chamamos amor àquilo que nos liga a certos seres, em referência a um modo de ver colectivo, de que são responsáveis os livros e as lendas. Mas do amor só conheço essa miniatura de desejo, de ternura e de inteligência que se liga a determinado ser. Esse composto não é o mesmo em relação a outra qualquer criatura. (…) O homem absurdo ainda multiplica aqui aquilo que não pode unificar. Assim, descobre nova maneira de ser, que pelo menos, liberta tanto quanto liberta os que dele se aproximam. Não há amor generoso, a não ser aquele que ao mesmo tempo se sabe passageiro e singular.
in: O Mito de Sísifo, de Albert Camus, Editora Livros do Brasil, pp. 76 a 80.
Quanto mais amamos mais o absurdo se consolida. Não é por falta de amor que Don Juan vai de mulher em mulher. É ridículo representá-lo como um iluminado, em busca do amor total. Mas é porque ele as ama com idêntico entusiasmo e sempre com inteireza, que lhe é necessário repetir esse dom e esse aprofundamento. Daí todas esperarem ofertar-lhe aquilo que nunca ninguém lhe deu. De todas as vezes se enganam profundamente e só conseguem fazer-lhe sentir a necessidade de tal repetição. «Finalmente - exclama uma delas - dei-te o amor.» E há quem se espante por Don Juan sorrir dessa ingenuidade. «Finalmente, não - diz ele - mas uma vez mais.» Porque seria necessário amar raramente para amar muito?
(…)
Não saber alegrar a alma já era vendê-la. Don Juan domina, pelo contrário, a saciedade. Se deixa uma mulher, não é em absoluto porque já não a deseja. Uma mulher bela é sempre desejável. É, sim, porque deseja outra, e, de facto, não se trata da mesma coisa.
Esta vida satisfá-lo, nada pior que perdê-la. Esse louco é um grande sábio. Mas os homens que vivem de esperança dão-se mal neste universo, onde a bondade cede o seu lugar à generosidade, a ternura ao silêncio viril, a convulsão à coragem solitária. E todos dizem: «Era um fraco, um idealista ou um santo.» Assim se minimiza a grandeza que insulta.
(…)
O inferno para ele é coisa que o provoca. Só tem uma resposta para dar à cólera divina, e é a honra humana: «Tenho honra - disse ele ao Comendador - e, cumpro a minha promessa porque sou cavaleiro.» Mas seria igualmente erróneo querer fazer dele um moralista. Pois ele é, a esse respeito, «como toda a gente»: tem a moral da sua simpatia ou da sua antipatia.
(…)
Seduzir é o seu estado. (…) O que Don Juan põe em acto é uma ética da quantidade, ao contrário do santo, que tende para a qualidade. Não acreditar no sentido profundo das coisas é próprio do homem absurdo. Percorre esses rostos calorosos ou maravilhados, enceleira-os e queima-os. O tempo avança com ele. O homem absurdo é aquele que não se separa do tempo. Don Juan não pensa em «coleccionar mulheres». Esgota-lhes o número e com elas esgota as suas possibilidades de vida. Coleccionar é ser capaz de viver do seu passado. Mas ele recusa a saudade, essa outra forma de esperança. Não sabe olhar os retratos.
Será por isso egoísta? À sua maneira, sem dúvida. Mas ainda nesse ponto, temos que nos entender. Há aqueles que são feitos para viver e os que são feitos para amar. Don Juan, pelo menos, di-lo-ia de boa vontade. Mas di-lo-ia metendo por um atalho, à sua maneira. Porque o amor de que aqui se fala é enfeitado com as ilusões do eterno. Todos os especialistas da paixão no-lo dizem, não há amor eterno, a não ser contrariado. Não existe paixão sem luta. Tal amor só encontra fim na derradeira contradição, que é a morte. É preciso ser Werther ou nada. Ainda aí, há várias maneiras de alguém se suicidar, uma das quais é o dom total e o esquecimento de si próprio.
(…)
Só chamamos amor àquilo que nos liga a certos seres, em referência a um modo de ver colectivo, de que são responsáveis os livros e as lendas. Mas do amor só conheço essa miniatura de desejo, de ternura e de inteligência que se liga a determinado ser. Esse composto não é o mesmo em relação a outra qualquer criatura. (…) O homem absurdo ainda multiplica aqui aquilo que não pode unificar. Assim, descobre nova maneira de ser, que pelo menos, liberta tanto quanto liberta os que dele se aproximam. Não há amor generoso, a não ser aquele que ao mesmo tempo se sabe passageiro e singular.
in: O Mito de Sísifo, de Albert Camus, Editora Livros do Brasil, pp. 76 a 80.
04 junho 2014
A Liberdade Absurda
Viver é fazer viver o absurdo.
Fazê-lo viver é, antes de mais, olhá-lo. Ao contrário de Eurídice, o absurdo só morre quando dele nos afastamos, sem voltar a cara para trás. Uma das únicas posições filosóficas coerentes é, assim, a revolta. Ela é um confronto perpétuo do homem e da sua própria obscuridade. É a exigência de uma impossível transparência. Equaciona o problema do mundo a cada segundo. Tal como o perigo fornece ao homem possibilidades insubstituíveis de tomada de consciência, assim a revolta metafísica dilata a consciência ao longo da experiência. É a presença constante do homem em si próprio. Não é aspiração, pois é sem esperança. Esta revolta não passa da certeza de um destino esmagador, mas sem a resignação que deveria acompanhá-la.
in: O Mito de Sísifo, de Albert Camus, p. 59 e 60.
26 maio 2014
O Estúdio | Alberto Giacometti
Zona secreta, solidão onde se refugiam os seres - e as coisas - é ela que dá beleza à rua: por exemplo, se for sentado num autocarro basta olhar pela janela. A rua cede o que o autocarro devassa. Sigo demasiado depressa para ter tempo de reter rostos ou gestos, a velocidade exige do meu olhar igual velocidade, e por isso nem um rosto, um corpo, ou atitude sequer, me esperam: tudo está ali a nu. Registo: um homem enorme, curvado, muito magro, peito escavado, óculos, o nariz comprido; uma dona-de-casa gorda caminha lentamente, pesada, triste; um velho sem graça, uma árvore solitária, ao lado outra árvore solitária, e outra… um empregado, outro, uma multidão de empregados, a cidade inteira cheia de empregados curvados, todos juntos num pormenor que os meus olhos registam: bocas crispadas, ombros caídos… uma a uma, talvez devido à velocidade dos meus olhos e do veículo, as suas atitudes ficam rabiscadas tão depressa, tão rápido surpreendidas em seu arabesco, que cada ente é-me revelado no que tem de novo e insubstituível - invariavelmente uma ferida - graças à solidão onde essa ferida os coloca e eles mal reconhecem, se bem que todo o seu ser aí aflua…
in: O Estúdio de Alberto Giacometti, de Jean Genet, p. 35.
in: O Estúdio de Alberto Giacometti, de Jean Genet, p. 35.
21 maio 2014
João da Câmara Leme | Designer
Uma linha recta
Convicta e correcta
é um grito de linha
que chega ao infinito
é a única estrada
que não vai dar a nada!
Um segmento de recta
pode parar na esquina
subir uma parede
beijar uma menina
Por sobre os longos campos
e o vale em flor e o mar,
desenhada pelo vento
lá vai ela a passar…
Um segmento de recta
pode ter alegria
pode subir às árvores
e num raio de luz
descer até ao chão
anunciando o dia!
in: Exposição de design gráfico, do Designer João da Câmara Leme, Museu das Tapeçarias de Portalegre, Maio.2014
Ver: https://almanaquesilva.wordpress.com/category/joao-da-camara-leme/?blogsub=confirming#subscribe-blog
04 maio 2014
Ser | Solitário
Acompanhado da fragilidade pós-moderna em todos os âmbitos da sociedade, os relacionamentos são mais uma questão a trazer angústia para indivíduos esvaziados e que vão buscar em um parceiro um alento para satisfazer suas frustrações. Mas que não sabem mais como se relacionar.
Segundo Arthur Schopenhauer, a felicidade vem de uma forma de vida auto-suficiente, e ainda segundo André Comte Sponville que diz que mesmo o amor a dois deve ser solitário.
Então, será que estar sozinho não pode ser uma opção, uma escolha? Não existe um meio-termo entre um relacionamento ortodoxo e um estilo de vida hedonista conhecido como "vida de solteiro"?
Não estar acompanhado de um parceiro parece estranho aos olhos da sociedade. Isso pode se dever ao facto de inúmeros exemplos no nosso quotidiano, seja no cinema, em letras de música, no senso comum, ou nas obras de autoajuda, em que proliferam abordagens simplórias sobre o amor e que alimentam ainda mais as frustrações de relacionamentos por oferecer visões distorcidas e incentivar um posicionamento romântico e raso sobre o tema. (…) A solidão não é outra possibilidade? E outros tipos de comportamentos em diferentes momentos da vida? Calma, tempo para si, contemplação… relacionamentos distintos, com outros contornos, não seriam válidos? (…)
Tratando-se do amor, especificamente, ele defendia que, em função da vontade, ambicionamos preservar a espécie. O amor, nessa esteira, seria uma ilusão: "Nenhuma união é tão infeliz quanto esses casamentos por amor - e precisamente pelo facto de que o seu objectivo é a perpetuação da espécie, e não o prazer do indivíduo". "Só um filósofo pode ser feliz no casamento, e os filósofos não casam". O verdadeiro mote, por trás da vontade de reproduzir, seria, em suma, a preservação da espécie, e para isso, "cada qual procura um companheiro que vá neutralizar seus defeitos, para que esses não sejam transmitidos".
Amor e Relacionamento Versus Felicidade, in: Filosofia, Ano VII, Nº 76, Novembro 2012, pp. 14 a 23.
Segundo Arthur Schopenhauer, a felicidade vem de uma forma de vida auto-suficiente, e ainda segundo André Comte Sponville que diz que mesmo o amor a dois deve ser solitário.
Então, será que estar sozinho não pode ser uma opção, uma escolha? Não existe um meio-termo entre um relacionamento ortodoxo e um estilo de vida hedonista conhecido como "vida de solteiro"?
Não estar acompanhado de um parceiro parece estranho aos olhos da sociedade. Isso pode se dever ao facto de inúmeros exemplos no nosso quotidiano, seja no cinema, em letras de música, no senso comum, ou nas obras de autoajuda, em que proliferam abordagens simplórias sobre o amor e que alimentam ainda mais as frustrações de relacionamentos por oferecer visões distorcidas e incentivar um posicionamento romântico e raso sobre o tema. (…) A solidão não é outra possibilidade? E outros tipos de comportamentos em diferentes momentos da vida? Calma, tempo para si, contemplação… relacionamentos distintos, com outros contornos, não seriam válidos? (…)
Tratando-se do amor, especificamente, ele defendia que, em função da vontade, ambicionamos preservar a espécie. O amor, nessa esteira, seria uma ilusão: "Nenhuma união é tão infeliz quanto esses casamentos por amor - e precisamente pelo facto de que o seu objectivo é a perpetuação da espécie, e não o prazer do indivíduo". "Só um filósofo pode ser feliz no casamento, e os filósofos não casam". O verdadeiro mote, por trás da vontade de reproduzir, seria, em suma, a preservação da espécie, e para isso, "cada qual procura um companheiro que vá neutralizar seus defeitos, para que esses não sejam transmitidos".
Amor e Relacionamento Versus Felicidade, in: Filosofia, Ano VII, Nº 76, Novembro 2012, pp. 14 a 23.
21 abril 2014
O Suícidio Filosófico
Existe um facto evidente que parece absolutamente moral: é que o homem é sempre a presa das suas verdades. Uma vez reconhecidas, não pode libertar-se delas. É preciso pagar esse preço. Um homem que se torna consciente do absurdo fica-lhe ligado para todo o sempre. O homem sem esperança e consciente disso, já não pertence ao futuro. Isso está na ordem natural das coisas. Mas também está na ordem natural das coisas que ele faça esforços para escapar ao universo de que é o criador.
in: O Mito de Sísifo, de Albert Camus, Editora Livros do Brasil, p. 41.
in: O Mito de Sísifo, de Albert Camus, Editora Livros do Brasil, p. 41.
16 abril 2014
As Paredes Absurdas
Eis umas árvores e eu conheço-lhes a rugosidade, eis a água e eu conheço-lhe o sabor. Estes perfumes de erva e de estrelas, a noite, certas tardes em que o coração se dilata, como negar esse mundo cujo poder e cujas forças experimento? No entanto, toda a ciência desta terra não me dará nada que possa certificar-me de que este mundo é meu. As pessoas descrevem-mo e ensinam-me a classificá-lo. Enumeram as suas leis e eu, na minha sede de saber, consinto em que elas sejam autênticas. Demonstrem o seu mecanismo, e a minha esperança aumenta. Por fim, ensinam-me que este universo prestigioso e matizado se reduz ao átomo, e que o próprio átomo se reduz ao electrão. Tudo isto é bom e espero que continuem. Mas falam-me de um invisível sistema planetário, onde os electrões gravitam em redor de um núcleo. Explicam-me este mundo com uma imagem. Reconheço então que os homens se embrenharam pela poesia: Jamais «conhecerei« nada disso. Terei sequer tempo de me indignar? Já mudaram de teoria. Assim, essa ciência que devia ensinar-me tudo, acaba na hipótese, essa lucidez cai na metáfora, essa incerteza resolve-se em obra de arte. Que precisão tinha eu de fazer tantos esforços? As linhas suaves dessas colinas e mão da tarde no meu coração agitado ensinam-me muito mais. Volto ao princípio.
[...]
Estranho a mim próprio e a esse mundo, unicamente armado de um pensamento que se nega a si próprio logo que se afirma, que condição é essa em que só posso ter paz recusando-me a saber e a viver, em que o apetite de conquista vai de encontro a paredes que desafiam os seus assaltos? Querer é suscitar paradoxos. Tudo está ordenado para que essa paz envenenada que resulta da negligência, do sono do coração ou das renúncias mortais.
A inteligência também me diz, a seu modo, que este mundo é absurdo.
[...]
Negam a sua verdade profunda, que é a de estar acorrentado. Nesse universo indecifrável e limitado, o destino do homem toma, daí em diante, o seu sentido. Ergueu-se um povo de irracionais, que o cerca até ao seu fim derradeiro.
in: O Mito de Sísifo, de Albert Camus, p. 30 e 31.
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Estranho a mim próprio e a esse mundo, unicamente armado de um pensamento que se nega a si próprio logo que se afirma, que condição é essa em que só posso ter paz recusando-me a saber e a viver, em que o apetite de conquista vai de encontro a paredes que desafiam os seus assaltos? Querer é suscitar paradoxos. Tudo está ordenado para que essa paz envenenada que resulta da negligência, do sono do coração ou das renúncias mortais.
A inteligência também me diz, a seu modo, que este mundo é absurdo.
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Negam a sua verdade profunda, que é a de estar acorrentado. Nesse universo indecifrável e limitado, o destino do homem toma, daí em diante, o seu sentido. Ergueu-se um povo de irracionais, que o cerca até ao seu fim derradeiro.
in: O Mito de Sísifo, de Albert Camus, p. 30 e 31.
03 abril 2014
O Absurdo e o Suicídio
Na afeição de um homem pela vida há qualquer coisa de mais forte que todas as misérias do mundo. O julgamento do corpo vale bem o do espírito, e o corpo recua ante o aniquilamento. Ganhamos o hábito de viver, antes de adquirirmos o de pensar. Nesta corrida, que todos os dias nos precipita um pouco mais para a morte, o corpo guarda esse avanço irreparável. Enfim, o essencial de tal contradição reside naquilo a que chamarei a esquiva, porque ela é, ao mesmo tempo, menos e mais do que a diversão no sentido pascaliano. A esquiva mortal, que constitui o terceiro tema deste ensaio, é a esperança. Esperança noutra vida que é necessário «merecer», ou batota dos que vivem, não pela própria vida mas por qualquer grande ideia que a ultrapassa, a sublima, lhe dá um sentido e a atraiçoa. (…)
É preciso afastar tudo e ir direito ao verdadeiro problema. As pessoas matam-se porque a vida não vale a pena ser vivida, eis uma verdade, sem dúvida - infecunda, no entanto, porque é truísmo. (…)
A reflexão sobre o suicídio dá-me, então, ocasião de apresentar o único problema que me interessa: haverá uma lógica até à morte? Só posso sabê-lo prosseguindo, sem paixão desordenada, à luz única da evidência, o raciocínio cuja origem aqui indico. É aquilo a que chamo um raciocínio absurdo. Muitos o começaram. Ainda não sei se o respeitaram.
in: O Mito de Sísifo, de Albert Camus, pp. 19 e 20.
31 março 2014
Albert Camus
O Absurdo e o Suicídio
Só há um problema filosófico verdadeiramente sério: é o suicídio.
Julgar se a vida merece ou não ser vivida, é responder a uma questão fundamental da filosofia. O resto, se o mundo tem três dimensões, se o espírito tem nove ou doze categorias, vem depois. São apenas jogos; primeiro é necessário responder. E, se é verdade, tal como Nietzsche o quer, que um filósofo, para ser estimável, deve dar o exemplo, avalia-se a importância desta resposta, visto que ela vai preceder o gesto definitivo. São evidências sensíveis ao coração, mas é preciso aprofundá-las para as tornar claras ao espírito.
in: O Mito de Sísifo, de Albert Camus, Editora Livros do Brasil, p. 15.
Só há um problema filosófico verdadeiramente sério: é o suicídio.
Julgar se a vida merece ou não ser vivida, é responder a uma questão fundamental da filosofia. O resto, se o mundo tem três dimensões, se o espírito tem nove ou doze categorias, vem depois. São apenas jogos; primeiro é necessário responder. E, se é verdade, tal como Nietzsche o quer, que um filósofo, para ser estimável, deve dar o exemplo, avalia-se a importância desta resposta, visto que ela vai preceder o gesto definitivo. São evidências sensíveis ao coração, mas é preciso aprofundá-las para as tornar claras ao espírito.
in: O Mito de Sísifo, de Albert Camus, Editora Livros do Brasil, p. 15.
15 março 2014
Às Vezes | Poema
Às vezes julgo ver nos meus olhos
A promessa de outros seres
Que eu podia ter sido,
Se a vida tivesse sido outra.
Mas dessa fabulosa descoberta
Só me vem o terror e a mágoa
De me sentir sem forma, vaga e incerta
Como a água.
in: Às Vezes, de Sophia de Mello Breyner Andresen
[Fotografia na Praia Grande, Sintra | Portugal]
07 março 2014
Pragmatismo | Filosofia
Charles Sanders Peirce (1839-1914, EUA)
Mais conhecido como um dos fundadores da abordagem filosófica americana denominada "pragmatismo", C. S. Peirce foi influenciado por Kant e influenciou muito o seu amigo William James*.
Peirce foi mais um cientista profissional do que um filósofo e a sua experiência laboratorial foi uma influência central no seu pensamento. Contra a tradição moderna da filosofia, ele defendia que o conhecimento podia ser adquirido, não por um investigador solitário em busca da certeza, mas através da abordagem experimental de uma comunidade de investigadores científicos que examinem incertezas dentro de um sistema de crenças aceites.
Kant foi a principal influência filosófica de Peirce, que se via como um continuador do projecto de Kant à luz dos avanços modernos na lógica, muitos feitos por ele próprio. Segundo o pragmatismo de Peirce, o significado de um termo esgota-se pelos efeitos práticos que tem sobre as nossas acções e pela forma como conduzimos a investigação, sendo definível em termos da sua utilidade racional.
Em vida, Peirce não foi famoso, não tendo conseguido manter nenhum cargo académico durante mais de uns anos. Contudo, produziu um vasto conjunto de textos (Philosophical Papers, 1931-5) que ajudaram a consolidar a sua importância.
* Wiliam James (1842-1910, EUA)
A sua carreira desenrolou-se em Harvard, tendo começado pela Medicina e passado pela Psicologia e depois pela Filosofia. Num dos primeiros textos, A Vontade de crer (1897), revelou a sua atracção pela crença religiosa, defendendo que a crença em Deus pode ser justificada por outra coisa além dos dados.
in: Filosofia, Stephen Law, p. 313.
03 março 2014
A Experiência Partilhada
Cada experiência das nossas vidas é acompanhada por algum grau de emoção, por mais pequeno que seja, e este facto é especialmente notável em relação a problemas sociais e pessoais importantes. Quer a emoção responda a um estímulo escolhido pela evolução, tal como acontece no caso da simpatia, ou a um estímulo apreendido individualmente, tal como acontece no medo que podemos ter adquirido em relação a um certo objecto, como consequência de o termos associado a um estímulo de medo primário, o facto é que as emoções, positivas ou negativas, bem como os sentimentos que se lhes seguem, se tornam componentes obrigatórios das nossas experiências sociais.
A ideia que estou a apresentar é a de que, ao longo do tempo, não respondemos apenas aos componentes de uma situação social com o repertório de emoções sociais inatas de que dispomos. Sob a influência das emoções sociais (desde a simpatia e a vergonha ao orgulho e à indignação moral), e das emoções que são induzidas pelas punições e recompensas (que são variantes da alegria e da mágoa), somos capazes de categorizar gradualmente as situações de que temos experiência. Categorizamos os erros em que participamos, os seus componentes e o seu significado em termos de grande narrativa pessoal. Somos capazes, além disso, de associar as categorias conceptuais que vamos formando - tanto a nível mental como a nível neural - com os dispositivos cerebrais que desencadeiam as emoções. (…)
Dou especial valor às emoções e sentimentos ligados às consequências futuras das decisões, visto que eles constituem uma antecipação da consequência das acções, uma espécie de previsão do futuro.
in: Ao Encontro de Espinosa, António Damásio, p. 161.
[Imagem: Maquetes do Designer Raul Cunca, in: O Design Plural, Casa da Cerca, Almada, Fevereiro de 2014]
21 fevereiro 2014
O Que Importa
Às vezes apetece mudar tudo
Uma libertação de quase tudo
Fraca, demasiadamente fraca
A fraqueza, a falta de quase tudo
Quando não se precisa de quase nada
Apenas ar, sol e alegria
E também da música
Quase tudo o que é preciso.
O que importa uma multidão
O que importam os objectos
O que importa quase tudo
O que importa quase nada
O que realmente importa
A relação, a troca
O tempo, o tempo que não é contado
A sabedoria, a humildade, a simplicidade.
in: Fevereiro, 2014
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